1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Dezembro de 2018:
Queridos amigos,
Quando
“Racismos” apareceu em finais de 2015, o professor Diogo Ramada Curto escreveu
“Um marco da historiografia portuguesa. Um grande livro que revela uma maturidade excecional, única no caso de um historiador português”. Francisco Bethencourt é autor da primeira história do racismo, das Cruzadas ao século XX. O seu enfoque não está centrado, como o do professor Charles Boxer nas relações raciais no império português, é muitíssimo mais abrangente, abarcará as Cruzadas, os encontros entre povos decorrente dos Descobrimentos, as sociedades coloniais, as teorias de raça e a emergência dos nacionalismos até chegarmos aos fenómenos mais insidiosos, como o nazismo.
A pretexto da pureza de sangue, da casta, da religião, temos aqui uma longa e dolorosa viagem com matanças, escravidão, imolações, genocídios, tráfico de seres humanos, espezinhamento de direitos. Isto para sublinhar que o colonialismo e as sociedades coloniais, na sua amplitude, são uma das dimensões do racismo.
O que se passou no pós-guerra, com a ascensão dos nacionalismos e o clamor pela libertação do jugo colonial deve ser encarado como a reposição da identidade nacional, mesmo sabendo-se, no caso de África e da Ásia, que muitos novos Estados não tinham a configuração de nações, e no seu interior mantiveram-se (e nalguns casos mantém-se) tremendos conflitos interétnicos.
Um abraço do
Mário
A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (3)
Beja Santos
Entendamo-nos: não há uma modalidade única de racismo, daí ser completamente inútil procurar comparar as práticas de racialidade no nosso colonialismo multisecular com outras práticas de outras potências coloniais. A obra monumental intitulada
“Racismos, Das Cruzadas ao Século XX”, por Francisco Bethencourt, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2015, é um completo guia para analisar a teoria das raças, o conceito de racismo num arco histórico que vai desde a Idade Média ao nosso tempo, e nos diferentes continentes. Como observa o historiador português que é titular da cátedra Charles Boxer de História no King’s College de Londres, a discriminação e os preconceitos vêm de muito longe, atenda-se ao que sabemos da Antiguidade Clássica, dos povos bárbaros que invadiram a Europa Ocidental, dos muçulmanos, do que ocorreu na Reconquista Cristã, o tratamento dado a judeus ou a ciganos.
A exploração oceânica trouxe mais conhecimentos e basta ver as representações dadas por cartógrafos ou artistas através de imagens dos povos do mundo conhecido para se sentir claramente que havia hierarquias, categorizações, gente que se dava como superior e que subjugava a gente dada como inferior, em tantos casos os despojos das conquistas.
|
Francisco Bethencourt |
Francisco Bethencourt lembra-nos o príncipe jalofo Bemoim que governava um território próximo da foz do rio Senegal, onde os portugueses comerciavam escravos e ouro, o príncipe foi deposto em 1488, e partiu para Lisboa, em busca de ajuda militar junto de D. João II. Foi recebido com honras de Estado, Bemoim era muçulmano, decidiu que seria convertido ao cristianismo, partiu para recuperar o seu domínio com 20 caravelas comandadas por Pêro Vaz da Cunha. Ao chegarem à foz do rio Senegal, por razão ainda não hoje compreensível, o capitão português mandou matar Bemoim e regressou a Lisboa, o capitão reprovado com veemência, mas o temível monarca não mandou castigar o capitão. O que esta história revela é a força do preconceito étnico. Está hoje bem estudado o projeto político que acompanhou esta aventura dos Descobrimentos, havia necessidade de alianças em África, elas materializaram-se no Congo, em finais da década de 1480, início da de 1490.
Lembra-nos o autor que Duarte Barbosa, feitor do rei português na costa de Malabar, descreveu pela primeira vez o sistema de castas em termos europeus, entre 1512 e 1515.
E escreve:
“Os clérigos das dioceses portuguesas do Estado da Índia receavam o impacto do sistema de castas nas relações entre hindus e a comunidade cristã, já que os convertidos eram considerados inferiores às castas mais honradas, pois eles tinham de se misturar com indivíduos de diferentes origens. As resoluções do sínodo de Goa proibiam os cristãos de alimentar os indianos contra a sua vontade. O princípio indiano de hierarquia, por oposição ao princípio cristão e muçulmano de igualdade entre os crentes levantaria a questão no seio das comunidades cristãs na Índia suscetíveis ao conceito de pureza”.
E, mais adiante:
“O conceito português de casta, aplicado ao sistema social indiano, disseminou-se, durante os séculos XVII e XVIII, pelo trabalho de autores franceses, holandeses e ingleses. O conceito de pureza e impureza era expresso através da descrição das fórmulas estabelecidas de tratamento dos alimentos, bem como da sua confeção e apresentação às castas mais elevadas”.
Esta impressionante investigação abarca a perceção europeia da China e do Japão, e voltando à Europa somos confrontados com a questão dos cristãos-novos e de novo com a pureza de sangue, a condição judaica. E assim chegamos às sociedades coloniais e as suas classificações étnicas. Bethencourt fala-nos dessa classificação em África, verifica-se que a taxonomia andava muito próxima nos vocabulários espanhol e português, e que os holandeses no golfo da Guiné adaptaram as anteriores práticas portuguesas no terreno.
Mais adiante, no capítulo que dedica às sociedades coloniais em África, o historiador dá-nos um apontamento de muita utilidade para entender o colonialismo português:
“Os portugueses viviam acima de tudo em portos ou em enclaves onde comerciavam escravos ou ouro, como por exemplo, na Mina, na Costa do Ouro do Golfo da Guiné. Em cada entreposto residia um número limitado de brancos, os quais estabeleciam uniões mistas e tinham filhos com nativas, mas estes descendentes eram reabsorvidos pela sociedade nativa local, pois não existia uma verdadeira colónia de dimensões mínimas. Na África Ocidental, na região dos rios da Guiné, muitas centenas de portugueses conhecidos como lançados ou tangomaus instalaram-se nas comunidades locais. Os tangomaus introduziram-se nas chefaturas locais e desempenharam um papel importante como mediadores entre as potências africanas e a portuguesa.
Nas últimas décadas do século XV criou-se uma sociedade colonial nas ilhas de Cabo Verde. Durante quase dois séculos, as ilhas funcionaram como plataforma para o comércio negreiro a partir da África Ocidental. Em 1582 viviam cerca de 16 mil pessoas nas ilhas, sendo a sua grande maioria escravos (87% da população total). Brancos e mulatos viviam lado a lado num curioso agrupamento de 1600 ‘vizinhos’, havendo já 400 negros livres casados e provavelmente menos de 200 brancos. Em 1731, os escravos representavam apenas 15% da população; a maior parte dos habitantes eram indivíduos livres de raça mista e negros”.
No prosseguimento de uma investigação tão gigantesca como esta, Bethencourt analisa os projetos e as políticas das principais potências coloniais, os modos de discriminação e segregação e envolve-se nas teorias da raça, uma matéria que é verdadeiramente fascinante para nos ajudar a compreender aquilo que se chamou racialidade científica e depois o arianismo forjado pelos ideólogos nazis.
Nas conclusões, Bethencourt dá como comprovado que o racismo foi motivado historicamente por projetos políticos e falando dos dias de hoje, deixa-nos uma importante chamada de atenção:
“A norma do comportamento antirracista prevalece agora na maior parte do mundo. Todavia, o racismo não desapareceu. Abandonou, isso sim, a reivindicação de diferenças físicas, substituindo-as pela incapacidade cultural. A migração não é criticada com argumentos físicos, mas sim através da ideia de atraso cultural e de incapacidade de adaptação. O argumento da inferioridade foi abandonado no debate político; agora, os imigrantes são acusados de desfrutarem de assistência social que não foi criada para eles. Continua a haver disputas sobre a identidade e exclusão; os critérios para a atribuição da cidadania são ainda a principal ferramenta para definir a pertença. Não obstante, as identidades nem sempre coincidem com a cidadania formal, já que as formas informais de discriminação podem ser extremamente poderosas sem enquadramentos institucionais ou a sua aplicação estatal. Sem este o estado da discussão no mundo ocidental, isso não quer dizer que os velhos problemas tenham sido resolvidos, quer aí, quer em qualquer outra parte. A violência diária entre etnias continua a ser visível em diferentes partes do mundo, tal como o são a escravatura e a escravidão, frequentemente baseadas nos preconceitos relacionados com a descendência étnica. Em resumo, é preciso ainda percorrer um longo caminho para cumprir o sonho da dignidade humana e da real implementação dos direitos humanos”.
Para conhecer mais sobre o pensamento de Francisco Bethencourt e os fundamentos deste monumental trabalho, ver o site do jornal
Ionline
(Continua)
____________
Nota do editor
Último poste da série de 13 de novembro de 2019 >
Guiné 61/74 - P20341: Historiografia da presença portuguesa em África (186): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (2): "Portugal Vasto Império", por Augusto da Costa (Mário Beja Santos)