1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do
BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.
Os conflitos e a dedicação do povo
Camaradas,
O momento sanitário que irreversivelmente
fustiga a humanidade global, por via de um inimigo invisível que dá pelo nome
de Covid-19, leva-nos, amiúde, procurar no nosso baú eternas lembranças de
outras guerras, Guiné em concreto, onde fomos simplesmente atores numa peleja
onde existiam duas frentes em combate, conhecendo-se, então, quem era afinal o
inimigo nas trincheiras da morte. Combatia-se com armas de fogo, cujos
resultados foram catastróficos.
Hoje, o figurino mudou e a invisibilidade
do inimigo não conhece, por ora, a vacina para a sua cura.
Neste âmbito, resolvi debitar mais um
texto que surge no meu último livro "Um Ranger na Guerra Colonial
Guiné-Bissau 1973/74", para vos "matar" um pouco do vosso tempo
da quarentena que, por força real das circunstancias, fomos submetidos.
Os conflitos e a dedicação do povo
Gratidão
Olhares distantes das mulheres
grandes
Há histórias hilariantes de vida onde a
encruzilhada da guerrilha se cruzou com a nobreza exótica de gentes que
compartilhavam sentimentos comuns. A gratidão do povo guineense, no dar e
receber, era enorme. O confronto no terreno, sendo real, não eliminava de todo
um contacto permanente com uma população civil que se desfazia no ato “de bem
servir” a tropa tuga.
Não vou, por razões realmente díspares,
debruçar-me sobre acontecimentos reais da chamada guerrilha no terreno a qual,
na minha modesta opinião, estava, aparentemente, condenada ao fracasso.
Negociar? Talvez! Restava saber quando e como o processo poderia eventualmente
evoluir.
A Guiné apresentava, no seu todo, um
cenário deveras perspicaz tendo em conta a sua curta dimensão territorial e a
forma como o PAIGC controlava os buracos no espaço. As
emboscadas, ou os ataques aos quartéis, teriam pressupostamente um maior ronco
se os guerrilheiros fossem possuidores de conhecimentos mais profícuos sobre a
sua minuciosidade em usar as armas, ou na conceção mais exata em preparar uma
guerrilha que, para nós, se apresentava transversalmente desigual.
O PAIGC contava com a ajuda de
guerrilheiros cubanos que comandavam alguns dos estratos operacionais.
Comentava-se, à época, que a sua operacionalidade assumia-se deveras importante
nos confrontos. Tinham largos anos de experiência na guerrilha, comentava-se no
interior dos arames que delimitavam os aquartelamentos no mato.
O IN abastecia-se com armamento russo,
sendo disso exemplo as kalachinikovs, normalmente utilizadas
nos confrontos diretos, a que se associavam armas de calibre superior. Ainda
assim, as nossas tropas debitavam capacidades quando deparadas com o conflito.
Foram heróis!
Esta minha análise, embora sintética,
enquadrou-se em absoluto quando pela primeira vez me deparei com a fragilidade,
penso eu, do IN. Estávamos no mês de novembro de 1973. Na transparência de um
dia levado ao êxtase, tinha completado 23 risonhas primaveras, sendo que da
metrópole tinham chegado queijos de ovelha e enchidos alentejanos, comestíveis
enviados carinhosamente pela minha saudosa mãe, sendo que o “material”, embora
escasso, foi de pronto devorado pelos meus companheiros de lides, lembro-me que
pelo meio da festança e das muitas cervejas emborcadas, chegou,
inesperadamente, uma mensagem que nos deixou algo desalentados.
Cerca das quatro horas da tarde, e sem que
nada o fizesse prever, fui chamado ao capitão Ramalhete, o militar graduado que
controlava o gabinete de operações, que me colocou a par das novidades
acabadinhas de chegar: “temos conhecimento de um grupo IN perto da tabanca (não
me lembro do seu nome), sendo urgente a nossa intervenção. Prepare o grupo de
imediato e siga para o terreno”. E assim foi.
A estrada ligava Nova Lamego a Piche. Uma
hora depois estávamos em contacto com a realidade da guerrilha. Em pé, e de
peito aberto, o Jau (guia), já conhecedor do perigo que a situação impunha,
aconselhava a deitar-me uma vez que o risco ganhava uma maior grandeza.
Vincando a minha condição de ranger, tentei
apaziguar as hostes porque a reação do IN, à primeira vista, parecia-me algo
dispersa. A sua cadência de tiro um pouco anárquica e os sons da sua algazarra
confusa. O certo é que o tiroteio serenou e a malta, antes de anoitecer,
retirou sem prejuízos de maior monta.
No dia seguinte, em reconhecimento ao
local, constatou-se que se tratou de um grupo, quiçá em instrução, que deixou
antever inexperiência, permitindo que o pessoal no terreno não tivesse sofrido
sequelas físicas, nem tão-pouco baixas para engrossar o rol de jovens infelizes
tombados em combate.
Lembro a maneira como o meu camarada ranger Rui
Fernandes Álvares, furriel miliciano, e do meu curso em Lamego, ironizou a
situação quando chegado ao quartel e comentou o diabólico contacto: “vi
um turra a fugir, apenas com uma perna, de arma na mão e a dar
tiros em todas as direções. Fugia que nem uma lebre”.
Depois, embevecia-se a fazer o filme ao
pormenor e a malta ria que se desunhava. O Rui era um rapaz de bom trato, com
um coração enorme e oriundo do concelho de Boticas. As suas telas cinéfilas, entretanto
desenhadas, eram divinais. O seu nome jamais me fugiu da memória. A sua
inclinação para criar um bom ambiente era brilhante. Um moço porreiro.
Brincava com as fatalidades da guerra.
O Rui, tal como a maioria da rapaziada que
pisava o palco da guerrilha, não meditava, creio, a preceito com os buracos
impensáveis que a guerra impingia ao infeliz soldado chamado “carne
para canhão”, propunha-se, isso sim, a disfarçar os confusos e agrestes
contornos que o conflito colocava no terreno.
Éramos jovens. Não temíamos as
adversidades que o rosto da mata adensada e das estreitas picadas impunham. E
tantas foram as ocasiões em que a despreocupação em cima do Unimog,
já caquético, nos conduzia a uma pura brincadeira não temendo o momento
seguinte.
Recordo uma tarde a caminho de Piche a
viatura que seguia atrás embater na traseira daquela que rolava à sua frente e
a malta a atirar-se para o chão embrenhado entre as granadas da bazuca,
do morteiro 60 e das G3 que transportávamos nas mãos. Um arrepio entrou-me no
corpo dado que os arranhões provocados nas minhas pernas e braços deixaram marcas.
Um “acidente” que, felizmente, não causou vítimas a bordo. Tudo correu bem.
Mas… ficou o aviso.
Colocando de parte as ações da guerrilha,
e as vitimizações que ela provocou, vou referir uma alegação que sempre
considerei nobre: A GRATIDÃO! Não me recordo que em tempo algum tivesse sentido
a nefasta opinião que a população guineense se mostrasse desordeira sempre que
solicitada a um eventual pedido para uma pontual colaboração e humildemente
reconhecia que a nossa tropa era um meio intervencionista para a sua própria
sobrevivência.
Dar e receber apresentava-se como uma
reciprocidade maioritariamente perfeita. Reconheço que a sua posição no meio
territorial não se apresentava nada fácil. Lidar com duas frentes da guerrilha,
manifestava uma assimetria desigual. De um lado os guerrilheiros do PAIGC,
homens eventualmente conhecidos na tabanca, filhos da terra, familiares, e com
quem amiúde trocavam opiniões, assumindo-se estes como os verdadeiros mestres para
libertarem o território dos ditos invasores brancos; do outro, a
tropa “tuga” que lutava para defender pressupostos direitos alheios,
desconhecendo por completo as razões pelas quais expunha o seu corpo à bala.
Uma situação dúbia que determinava a neutralidade de uma população carenciada e
sobretudo sofrida.
Neste contexto, ter-me-ei apercebido da
verdadeira ação do povo. Lidar com as duas faces da moeda não era fácil. Um dia
tivemos conhecimento que numa tabanca situada na zona de Gabu o PAIGC se havia
ali instalado. A aproximação à tabanca careceu de cuidados redobrados. Mesmo
assim lá chegámos sem problemas que afligissem o grupo. A nossa ação foi
pronta.
As informações recolhidas no local foram,
a princípio, escassas. O chefe de tabanca dizia desconhecer a existência de
guerrilheiros inimigos naquele local e era convictamente apoiado por quase toda
a população. Só que pelo meio da conversa alguém se descuidou. O Jau, perito
nestas andanças e sempre atento, apercebeu-se e toca a pôr o homem que bufou a
confessar.
Ficámos a saber que um grupo de guerrilheiros
pernoitou na noite anterior na tabanca, mataram uma vaca, comeram e beberam,
fizeram uma festa e ao romper da aurora partiram para um novo rumo.
Esta conceção, tida como perfeitamente
atendível, sublinha o reconhecimento de um povo em guerra que brigava, apenas,
pela sua sobrevivência. Aliás, a forma como toda a população se entregava a uma
missão plenamente percetível, deixava antever que o seu sentimento puro de dar
e receber não suspendia os começos que a guerrilha, desde o seu início, lhe
propusera.
Numa viagem memorial aos idos da década de
1970, recordo os tempos passados na Guiné em que recebi e dei momentos de
enorme gratidão. Um abraço sentido para o povo da Guiné!
Um
abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
Mini-guião de colecção particular: ©
Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
___________
Nota de M.R.:
Vd. também
o último poste desta série:
6
DE FEVEREIRO DE 2020 > Guiné 61/74 - P20626:
(Ex)citações (362): O ventre e o patacão da guerra, segundo duas preciosas
listas de junho de 1974, guardadas pelo Zé Saúde... Cada um de nós tinha
direito a um "per diem" de 24$50 para comer, o equivalente na época a
um dúzia de ovos da Intendência (, a preços de hoje, 4,10 euros)