A centenária Bó Coelha
1. Em mensagem do dia 9 de Abril de 2020, o nosso
camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART
1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá,
1967/69), enviou-nos esta Boa memória da sua paz, dedicada à senhora sua Mãe, uma centenária que parece ter vencido o terrível Coronavírus.
BOAS MEMÓRIAS DA MINHA PAZ
5 - Com 100 anos está a resistir ao Coronavírus!
Bó Coelha, essa força da natureza.
Faz hoje 62 anos que ficou viúva!
Por ter acusado sintomas de COVID 19, no dia 30 de Março deu entrada no Hospital S. Sebastião de St.ª Maria da Feira, a centenária Emília Delfina da Conceição, também conhecida por Emília Coelha.
Foi medicada e fez os testes. No dia seguinte acusou positivo. Ficou no Quarto 540, no 5.º piso.
Reagiu muito bem, normalizou a temperatura, baixou o oxigénio e fez novos testes. O resultado deu Negativo. Hoje, dia 10 de Abril, vai fazer novos testes.
Como seu descendente, sinto uma alegria incontida e um orgulho enorme pela nossa Bó Coelha.
A Emília Coelha, nasceu a 11 de Dezembro de 1919, num pequeno lugar de Fiães, junto à Estrada Real, também conhecida como Via Romana
Filha de José Ribeiro e de Rita de Jesus. Ele, conhecido como Zé Linardo, trabalhava de Serrador e ela de Mulher à Jorna. Deste casamento, nasceram também o Noé (1927) e a Josefina (1933). Ambos já falecidos. Ele fez-se Soldado da GNR e ela de Empregada de Pensão e Mulher-a-dias.
Nasceu um ano depois de ter terminado a I Grande Guerra.
Como criança, sofreu os efeitos dessa guerra, acumulados com a crise política e social reinante até o fim da I República, em 1926.
Os primeiros anos da Coelha coincidem com o pior período da governação republicana. Basta referir que entre 1920 e o golpe de 28 de Maio de 1926, chefiado pelo General Gomes da Costa, passaram 23 Governos!
Com o triunfo dessa Ditadura Militar, abriu-se a formalização da Ditadura Nacional em 1928 e a formalização do Estado Novo em 1933.
Naqueles tempos difíceis, havia fases em que os homens chegavam a trabalhar quase só pela comida e as mulheres esforçavam-se também em serviços, especialmente naqueles para onde arrastavam os filhos/crianças, na esperança de alguma ajuda alimentar.
É neste ambiente de crise nacional, em que os pobres desesperam pela sobrevivência, que a Coelhinha ajuda os pais e os irmãos, sempre na procura de compensar, em serviços, em especial os apoios dos Senhorios de sua mãe, a “Mãe Rita”. Tanto a Rita como os seus irmãos Rafael, Mário, José, Vicente e Arminda, eram pessoas saudáveis e robustas. Saíam ao pai José que era da raça dos “Rusgas”. O “Zé Rusga” foi vítima de um tiro, disparado durante uma discussão, junto à loja da Ti Quitas, entre pretendentes das suas filhas. Viúva, a avó Albina, era acarinhada como “Mãe Bina”. (Aproveitamos para referir que o avô do Zé Linardo chegou aos 105 anos!).
Como adolescente, sentiu as limitações impostas pelo rigor do Estado Novo.
Tal como seus pais, a Emília não teve a possibilidade de frequentar a escola. Todavia, tal como os seus vizinhos, que assim pareciam viver felizes, não perdia as oportunidades festivas ou de lazer.
Com toda a naturalidade, a Emília teve os seus namoricos. Apaixonou-se por um jovem Fianense, com quem esperava casar. Com 18 anos engravidou, sem que o namorado assumisse o casamento, tendo, até, fugido para o Brasil, por imposição de seus pais.
Desse amor, nasceu a Deolinda da Conceição (Junho de 1939).
Desgostoso com a situação criada, o Zé Linardo aproveitou a oferta de trabalho na zona transmontana do Barroso, para onde se deslocou, vindo a fixar-se em Boticas.
Com o passar do tempo, a Emília apercebeu-se de que essa sua relação amorosa havia terminado. E foi numa dessas festas tradicionais de carnaval em que o jovem Zé da Bia, ou Zé Pum, fixou a sua atenção naquela rapariga jeitosa, parecida com a Amália Rodrigues, ali mais recatada.
Esse namoro progrediu rapidamente, tendo dado origem a um casamento tão discreto como apressado.
Casaram sem boda, sem pais e sem padrinhos. Valeu-lhes o apoio da família “Avelino Caldeirada” que os orientaram e testemunharam o acto. E foi pelas oito horas da manhã, depois da primeira missa, daquele dia 18 de Julho de 1942, que o acto se consumou na Capela da Sr.ª da Conceição, em Fiães. Era Sábado e dizem que, a seguir, ainda foram trabalhar.
O Zé Linardo veio buscar a família, levando a pequena Deolinda e deixando a Emília e o Zé a viver numa casa dos Pixelos.
Seguiram-se anos de felicidade, daquela felicidade própria dos pobres que iam tendo algo que comer e onde dormir, em tempos de crise agudizada com as restrições impostas por um governo condicionado pelos efeitos da II Grande Guerra Mundial.
Nasceram sete filhos de enfiada e foi por isso que a Emília passou a ser conhecida por Coelha.
Em 1943 nasceu o Zeca e seguiram-se o Benjamim, o Fernando, a Guida, o Daniel, o Mário (que faleceu com 8 meses) e a Fernanda.
Foram anos difíceis, compensados por muito trabalho e alguma sorte na procura do volfrâmio. Foram os melhores.
Naquele mundo de analfabetos, até o pai Zé frequentou a escola nocturna. Porém, concluída a escola de cada um, lá estava o trabalho fabril à espera. Era preciso ajudar a criar o rebanho de irmãos que ia crescendo.
Aos 33 anos de idade o Zé foi acometido de grave doença. Foi-lhe diagnosticado uma cirrose no fígado que o fez sofrer imenso cerca de um ano. Não foi por causa de álcool nem de outro vício. Foi causada pela fome e das privações que sofreu em criança. Foi muito chocante assistir às visitas dos seus amigos, que não se continham com tanto sofrimento. Faleceu a 10 de Abril de 1958.
Com 6 filhos em casa, tendo o mais velho acabado de fazer 15 anos, a Emília viu-se ainda mais desesperada com o corte do abono de família.
Seguiram-se anos terríveis para a sustentação da família. O Zeca completara os 15 anos, o Benjamim 13 e os outros 4 eram crianças. Perdido o abono família, a Emília quase não dorme. Ela trabalha intensamente e inventa serviços que a possam ajudar. Além da fábrica do papel e das rendas de bilros, ela aproveita a prestação de serviços na funerária, na jorna e na apanha da lenha. Também vendia fruta, ovos e regueifa.
Nesta fase dolorosa, a Emília mantém a sua fé religiosa inabalável. Ela acredita que Deus nunca a abandonou. Foram anos de muita adoração. Devotada a N.ª Sr.ª de Fátima, passa a fazer-lhe promessas, para que os filhos se salvem da Guerra do Ultramar.
Regressaram sãos e salvos após a espinhosa missão patriótica. Foram para a guerra 3 filhos e 4 genros!
Merecia bem uma condecoração:
- o Benjamim esteve em Angola
- o Zeca na Guiné,
- o Arnaldo, marido da Linda, na Guiné
- o Fernando da Nanda, Guiné
- o Armindo, marido da Margarida, na Guiné
- o Daniel em Angola
- o Fonseca, marido da Fernanda, em Angola
Os filhos
Os filhos foram casando, os netos foram aparecendo e a Bó Coelha recuperou a alegria de viver.
Os netos
Os bisnetos
Sempre ligada à Igreja, comungava das actividades religiosas, solidárias e recreativas. São muito lembradas as excursões que organizou, especialmente a partir da sua impossibilidade do cumprimento das promessas de “ir a Fátima a pé”.
Essas excursões eram muito populares e serviam de pretexto para bons passeios e para grandes convívios.
Teve alguns problemas de saúde, mas todos venceu com muita fé e gratidão religiosa.
Os filhos nunca se esqueceram dela, mas seguiram seus caminhos e criaram os seus descendentes. E quando tudo parecia agradavelmente harmonioso, a Coelha sentia-se cada vez mais só. Nem com a companhia de amigas a dormirem lá em casa se sentia bem. Também não se sentia à vontade na casa das filhas, que tanto a acarinhavam.
Começou a manifestar o desejo de ir para Cucujães, para o Lar Santa Teresinha nas Missões da Boa Nova, para onde muito corria levando coisas que angariava. Falava dos padres de lá e de outras pessoas, com muita amizade e admiração.
O Lar Santa Teresinha
Então, decidimos ir lá pedir a sua admissão no Lar. Não levou muitos dias a sua aceitação, com carinho e muita atenção.
O carinho no Lar
Já são sete anos de vivência no Lar. A Coelha confessa que está a passar os melhores tempos da sua vida. Cansada, mas feliz e sempre activa. Ainda recentemente, cantava e dançava. Como no casamento da Liana e Miguel, em que me obrigou a dançar com ela. E logo eu… que nunca aprendi tal coisa.
Ultimamente mexe-se menos
No dia 11 de Dezembro de 2019, festejámos o seu Centenário.
Foi um dia inesquecível! O Lar organizou uma linda festa que ficará na memória de todos seus descendentes.
A família, sempre dispersa, apareceu em cheio. E era uma quarta-feira. Foi feriado para todos. O amigo Emídio Sousa, Presidente da Câmara, também lá esteve.
Até dois grupos de ex-Combatentes vieram à festa: “O Conjunto Musical dos Periquitos da Tabanca de Matosinhos” e “O Bando do Café Progresso”.
A festa começou com uma missa na capela do refeitório, celebrada pelos padres ligados àquela grande obra social. Foi um óptimo ambiente, onde reinou a alegria, boas e lindas palavras e muito orgulho.
A Coelha sentia-se no Céu.
Abaixo transcrevo as palavras que lhe dediquei num breve discurso:
...Mãe, mais que guerreira, és uma vencedora!
Subiste ao mais alto da montanha da vida
Arrumaste as pedras do seu caminho
E plantaste nele as mais lindas flores!
Olha aqui os teus descendentes
São sangue do teu sangue
São todos coelhinhos!
Eles vêm mostrando a tua raça
No desporto, chegaram ao topo da Europa e ao topo do Mundo!
Herdaram a tua resistência impar!
Na escola chegaram a Professores, Doutores e Engenheiros.
Herdaram a tua sabedoria!
Na vida social, têm merecido o apreço da sociedade.
Herdaram a tua humilde simpatia!
Na vida familiar, têm sido bons pais e bons filhos.
Herdaram o teu exemplo!
Todos orgulhosos por descenderem de uma pessoa especial.
Uma mulher de excepção.
A nossa “Bó Coelha”!
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Nota do editor
Último poste da série de 8 de abril de 2020 >
Guiné 61/74 - P20831: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (5): Op. Sarrabulho (com o covidis por perto) - II Parte