sábado, 27 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21115: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (16): A DGS boa ou má e outras siglas, ou Lembrando a resistência dos meus conterrâneos



1. Em mensagem do dia 8 de Junho de 2020, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta Boa memória da sua paz, desta vez dedicada à sigla DGS, antes de má memória, hoje um serviço que olha pela nossa saúde.


BOAS MEMÓRIAS DA MINHA PAZ - 15

A DGS boa ou má e outras siglas ou 
Lembrando a resistência dos meus conterrâneos 

Como vulgar cidadão, assumidamente como pouco culto e pouco informado, não sou mais que um Zé-ninguém, Zé português do Norte e mais um fruto da minha geração. Por isso, lamento não esticar mais os comentários, para os quais não tenho a pretensão nem a capacidade de os desenvolver. Resta-me, apenas, recordar a minha “leve ligação” a alguma destas siglas.

Por via do Covid-19, esse vírus que alegadamente veio da China, direcionado para matar os “cotas” ou gente de deficiente qualidade, possivelmente inspirado em critérios próximos do famigerado Nacional Socialismo (National Sozialistische Deutsche Arbeiterpartei), somos levados a repensar na sigla que outrora tanto nos atormentava: a DGS - Direcção Geral de Segurança.

A DGS foi uma inovação promovida pelo “governo de abertura” de Marcelo Caetano em 1969 que, com desmedido destaque publicitário, “acabou” com a PIDE – Polícia Internacional da Defesa do Estado. Pelo que se sabe, apenas a sigla foi substituída.

A PIDE, em 1945, substituiu a PVDE - Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, que havia sido criada em 1933.

Ora, os “cotas” da minha geração, sabem bem do que estamos a falar. Podem ser poucos os que sofreram na pele o verdadeiro “tratamento” dessa “segurança”, mas são muitos os portugueses que foram condicionados por ela.

São milhares as histórias contadas, umas mais reais que outras, mas quase todas apontadas para a aversão e o ódio ao comportamento dessas organizações.
Com o 25 de Abril, assistimos a uma certa luta pelo controlo dos arquivos da PIDE/DGS. Diz-se que houve um trabalho muito eficaz por parte do PCP que,até, os fizera deslocar para Moscovo. Por outro lado, também houve pressões que levaram à destruição e desaparecimento de documentação. Curioso o facto de recentemente a PJ ter apreendido mais de 700 fichas pessoais dos mesmos arquivos, que estavam à venda.

(“Fonte: Publico de 23 de Abril de 2020, por Luís Miguel Queirós”)

“A DGS foi extinta a 25 de Abril de 1974. No entanto em Angola os serviços desta Polícia continuaram a funcionar até à independência daquele território em 1975, embora sob a designação de Polícia de Informação Militar e de Gabinete Especial de Informação, e com outras atribuições.
Quanto à integridade do Arquivo, são de assinalar os efeitos negativos das destruições e anulações de processos efectuadas pela própria PIDE/DGS, as destruições ou desvios ocorridos entre 1974 e 1990, e o desmembramento de algumas séries de processos, levado a cabo pelo Serviço de Coordenação da Extinção da PIDE/DGS e Legião Portuguesa, seguido da integração desses processos noutras séries do Arquivo da PIDE/DGS ou em séries do próprio Arquivo dos Serviços de Extinção.”

(“Fonte: História custódial e arquivística da Pide, na Torre do Tombo”)

Fichas aparecidas à venda na internet “Fonte: Público de 23 de Abril de 2020, por Luís Miguel Queirós”

Fui habituado a olhar permanentemente para o grande quadro negro da escola, em cuja parede se destacavam os retratos de Oliveira Salazar e de Óscar Carmona, tendo, no meio deles, uma cruz com Jesus Cristo crucificado. Ainda apanhei Craveiro Lopes, que substituiu Carmona em 1951.
Nessa altura tinha um sentimento patriótico acentuado, por influência da Profª. D. Irene, uma figura marcante no Ensino Primário de Fiães. Ela ensinou-nos a cantar o Hino Nacional e punha-nos de mão estendida a cantar as várias canções- marcha de adoração à Pátria, à semelhança do que se fazia na Mocidade Portuguesa. Sempre que entrava alguém na escola, tínhamos que nos levantar e fazer a saudação nazi, até que nos mandasse o “à vontade”. Todavia, em criança, eu não ligava esse patriotismo a qualquer idolatria aos governantes. Já se sentiam, então, os murmúrios de familiares e amigos, pondo em causa essas lideranças.
Nesses anos seguintes à instrução primária, o que se sabia da polícia política era em segredo e muito devido à audição da Rádio Moscovo. Ainda poucos tinham aparelho de rádio e muito poucos tinham a coragem de sintonizar essa rádio comunista. Nessa altura, todos estavam bem informados quanto à noção do espaço e das limitações sobre esse assunto melindroso.
O medo e a desconfiança estavam amplamente instalados. O respeito pelo professor e pelo padre, também era acentuado. E também eles seriam importantes nos costumes pidescos.
O certo é que todos sabíamos que a PIDE nos controlava e nos poderia castigar à menor acusação. E todos sabiam dos vários exemplos marcantes que nos rodeavam.

Na minha terra, em Fiães da Feira, sempre houve tradição relacionada com a política de oposição. Conheci pessoas vigiadas e perseguidas, na sua vida pessoal e profissional. Porém, mais que isso, tenho que destacar várias personalidades que marcaram a história da nossa democracia.

Começo por uma que, apesar de não estar referida nas prisões e perseguições como outros estão, merece todo o realce pela importante evidência política que mostrou na sua difícil geração.

Em 6 de Janeiro de 1869 nasceu o Dr. Elisio Pinto de Almeida e Castro, filho de António Pinto de Almeida e Castro e de D. Marcelina Barbosa. Seus pais viviam em Fiães, No Palacete da Quinta das Camélias, que o pai mandara construir quando regressou, rico, do Brasil. Todavia, em registos (alguns contraditórios), aponta-se que o nascimento de Elísio e de sua irmã Amélia, ocorreram no Porto, na freguesia de Cedofeita, onde foram baptizados na Igreja de S. Martinho. Mais informam que foram considerados filhos de pai incógnito (os pais ainda não haviam casado), e que só viriam a ser perfilhados em 1880, pouco antes do pai António falecer.

Na minha modesta opinião, esta disparidade em relação ao registo do nascimento dos filhos, no Porto (Cedofeita), poderá ter a ver com a “indesejável/intolerável” situação do casal aos olhos do clero e dos bons costumes locais.

O Dr. Elísio Castro que ficou órfão de pai com 11 anos, licenciou-se em Direito em Coimbra, com 21 anos.
Casou em 22.08.1892, com D. Maria Emília Bessa de Carvalho, no mesmo dia que sua irmã Amélia casou com o irmão de sua noiva.


O Dr. Elísio absorveu, logo em criança, o espírito aberto a novas ideias trazidas pelo seu pai do Brasil e, mercê dos bons relacionamentos por ele criados, procurou dar-lhes continuidade, atingindo o mais alto nível da política e dos poderes.

Apesar de o pai militar na área do Partido Regenerador e de vir a salientar-se mais entre as doutrinas republicanas, o Dr. Elísio conviveu bastante com a Corte, tendo participado em caçadas e torneios de tiro com o próprio Rei D. Carlos. A taça que se mostra na foto ao lado diz respeito a uma finalíssima de tiro aos pombos, ganha pelo Dr. Elísio ao Monarca.
Quando ocorreu o regicídio, o Dr. Elísio manifestou-se grandemente contra esse ignóbil acto que, quanto a ele, não resolveria os problemas do País.

No dia 23 de Janeiro de 1907, sob a coordenação do Dr. Elísio de Castro, realizou-se, em sua casa, em Fiães, no Palacete da Quinta das Camélias, mais uma reunião, que culminou com a criação da Comissão Republicana Municipal da Feira. Na acta divulgada no dia 30 desse mês, verifica-se que o Dr. Elísio de Castro foi eleito Presidente. Nessa Comissão, composta por 10 elementos eleitos, consta, também, outro Fianense, o Médico António Mota.

A implantação da República foi muito desejada em Fiães.
Em 15.05.11, o Dr. Elísio foi eleito Deputado à Assembleia Nacional Constituinte e, em 08.07.11, deixa a Comissão Municipal para acompanhar e colaborar melhor a Assembleia Constituinte de 1911.
Em 02 de Setembro de 1911 o Dr. Elísio de Castro foi eleito o Senador, para um período de 6 anos. Foi condecorado com a Medalha Comemorativa da Revolução do 31 de Janeiro de 1891.

Vista parcial da Avenida Dr. António Mota, de Fiães e a Escola primária de Macieira

Em 27.04.12 foi aberta a Avenida de Fiães, graças à doação de terrenos pelo Dr. Elísio de Castro que, além disso, pagou de seu bolso as expropriações a outros proprietários.

Foto de Abril de 1918, com a presença do Dr. Afonso Costa.

Dadas as boas relações deste Fianense com os seus ilustres colegas republicanos Dr. António José de Almeida e Dr. Afonso Costa (e outros), eles hospedavam-se, periodicamente, na sua casa, em Fiães.
O Dr. Elísio fez parte da Comissão de Honra da candidatura do General Norton de Matos.
Teve dois filhos, ambos licenciados; o Fernando e o Elísio. O Fernando veio a casar com D. Maria Costa, que era filha do Dr. Afonso Costa, que foi Presidente da República.
Faleceu a 12 de Novembro de 1942.

(“Fontes: Publicações no Jornal “Correio da Feira”, Manuel Strecht Monteiro em “Um Fianense na Ascensão e Queda da I República” e José Rodrigues em “Palacete da Quinta das Camélias”).


Nota: O Palacete da Quinta das Camélias veio a funcionar como Escola Preparatória. Ali trabalhou, como Professor de Educação Física, Bernardino Ribeiro, quando chegado de Moçambique, da Guerra do Ultramar. O Bernardino veio a destacar-se como excelente autarca, durante mais de 30 anos.

Lembro o Inspector Escolar Adelino Soares Bastos, a quem, diziam, arrancavam as unhas e as sobrancelhas nas torturas da PVDE. A sua casa, hoje um Infantário, ainda tem os esconderijos nas suas próprias paredes.

Nasceu em Fiães da Feira, no dia 30-11-1882.
Foi empossado como Inspector Escolar em 28-10-1919.
Foi preso, provavelmente, em Abril de 1928. Passou a ser encarcerado/perseguido/fugitivo periodicamente.
Em Maio de 1938 é detido pela Delegação da PVDE do Porto que o leva para o Aljube de Lisboa.
Voltou para a Delegação do Porto, mas regressou ao Aljube em 24-04-39.
Foi julgado pelo Tribunal Militar Especial em 27-06-39 e em 19-08-39.
Transferido para Caxias em 21-05.40.
Libertado por amnistia, em 03-06-40

(“Fonte: João Esteves em “Silêncios e Memórias”)

Casa do Inspector Adelino Soares Bastos. Hoje funciona como Infantário do Centro Social do Pe. José Coelho

O Dr. Alcides Strecht Monteiro, nasceu no lugar do Souto, Fiães da Feira, no dia 1910.
Foi casado com Ana Celeste Ferreira da Silva
Destacados lutadores no MUD - Movimento de Unidade Democrática e nas candidaturas de Norton de Matos e de Humberto Delgado.
Estão ligados no apoio à ASP (1964) e à fundação do PS (1973).
Foi sempre o chefe da oposição no Distrito de Aveiro.
Foi Deputado de 1975 a 1977.
Faleceu a caminho da Assembleia da República na tarde de 14 de Junho de 1977.
Foi condecorado com a Ordem da Liberdade.
Este ilustre Fianense era o Advogado dos pobres e o abrigo dos perseguidos politicamente.

(“Fonte: Prof José Rodrigues em “Biografias de Ilustres Fianenses”)

O PS substituiu a ASP em BadMunstereifel, Alemanha, em 19-04-73.

A Drª. Alcina Bastos nasceu em Fiães, concelho de Vila da Feira, a 7 de abril de 1915. Era filha do Inspector Escolar Adelino Soares Bastos e da Dr.ª Filomena de Sousa Vilarinho Bastos.
Formou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, onde colaborou com o Socorro Vermelho Internacional (SVI).
Exerceu a advocacia no Porto, Espinho e Vila da Feira. Aí aderiu ao Movimento de Unidade Democrática (MUD).
Influenciada por motivos familiares já que o pai, republicano, muito lutara e muito sofrera nas prisões. Alcina Bastos preencheu a sua vida em actividades em prol da liberdade, sendo, não raras vezes, a única mulher a marcar presença nas mesas das sessões políticas então realizadas, apesar de se omitir a sua identificação.
Em 1949, empenhou-se na candidatura do general Norton de Matos à Presidência da República e, em 1958, integrou, juntamente com o irmão Joaquim Bastos, também advogado, a equipa que promoveu e organizou a candidatura presidencial do general Humberto Delgado
Reconquistada a liberdade, empenhou-se no julgamento dos assassinos de Humberto Delgado, marcando presença nas audiências dos agentes da PIDE e na trasladação dos restos mortais do general para Portugal. Integrou a Liga Portuguesa dos Direitos do Homem

O Tenente Armando Agatão Lança, aqui de espada em punho, evidenciou-se na Revolta dos Marinheiros

Foi casada com o militar republicano Armando Pereira de Castro AgatãoLança (19/08/1894-23/05/1965), também interveniente ativo nas conspirações para derrubar o regime que pôs fim à I República (1927 e Revolta dos Marinheiros em 1936).
Teve uma filha (n. 1955) que seguiu o mesmo trajeto profissional da mãe.
Faleceu em 17-08-1993. Quis ser enterrada com a sua toga no Cemitério dos Prazeres e, um ano depois, a título póstumo, foi-lhe atribuída a Ordem da Liberdade.

Alcina Bastos sentada, à direita, durante o comício do general Humberto Delgado no Liceu Camões a 18 de Maio de 1958.

(“Fonte: João Esteves em “Silêncios e Memórias”)

Também Antero Canastro, o “Regedor da Mamoa”, que casou com uma sobrinha do Inspector Adelino Bastos, esteve preso. Por altura de um movimento revolucionário em Lisboa (8 de Setembro de 1936 - Revolta dos Marinheiros), o Inspector que talvez beneficiasse do contacto optimista do seu futuro genro, Tenente Armando Agatão Lança, envolvido no comando dessa revolta, estava convicto do seu êxito e, empolgado, entregou a Bandeira Nacional a Antero:
- O Salazar foi com o caralho, vais hastear a bandeira na Capela da Nossa Senhora da Conceição, a Padroeira de Portugal!

O Antero gritava de alegria, enquanto corria e atravessava o centro da freguesia. De braços abertos, alternava e corrigia a posição da imagem da esfera armilar, por forma a honrar e valorizar condignamente a feliz referência ao acontecimento nacional.

Capela de Nª. Sª. da Conceição, Padroeira de Portugal

Já tinha atravessado a Ponte de Chão do Rio, sobre o Rio Azavessas, e seguia subindo o Monte de Stª. Maria, aproximando-se da Capela, quando lhe gritaram:
- Cuidado Antero, olha que o filho da puta, afinal não morreu! Não morreu e os bufos vão-te foder.

Passados uns dias, o Antero saiu da prisão. Só esteve lá três dias. Perguntavam-lhe uns amigos:
- Porque é que já vieste embora? Não nos digas que te vais armar em bufo da “Pevide”? Nem penses no tal! Enterramos-te vivo, seu caralho!

E o Antero, revoltado afirmava:
- Foi o sacana do Professor Reinaldo que me acusou. Eles só me perguntavam quem me deu a bandeira. Eu disse-lhes que nem reparei a quem a tirei das mãos. Mas eles não me querem fazer mal. Penso que querem mostrar à família da minha mulher que são uns gajos porreiros. Se calhar, até pensam que vou melar e colaborar com eles, esses filhos da puta.

Há dias, o amigo Zéquita do Calvário, que foi aluno do Professor Reinaldo, contava-me que ele pendurava os alunos, pelas orelhas, com os seus braços enormes, levando-os junto do quadro do Salazar enquanto os “acusava” de incumpridores e de falta de patriotismo.

Desde a infância que fomos tomando conhecimento destes lutadores pela democracia e das implicações que sentiriam os seus seguidores.

Aquele ano de 1958 ficaria marcado para o resto das nossas vidas. Meu pai faleceu a 11 de Abril e as eleições realizaram-se a 8 de Junho. Eu completava os 15 anos, mas já era um entusiasta pelo élan de vitória de Humberto Delgado. Parecia que ele iria ganhar e bem. Porém, vivi ainda uma outra frustração, porque não conseguia convencer a minha mãe, a votar Humberto Delgado, apesar da miséria em que tínhamos caído. A influência da igreja e das “pessoas de bem” faziam-na vergar para a habitual condição de subserviência.
O nosso grupo restrito constava de uma lista “fornecida” pelo Padre Inácio ao Presidente da Câmara. De JOCistas, passámos a perigosos vadios que ficavam fora da igreja durante a missa. É verdade que o padre aparentava a preocupação de nos condenar publicamente. Por vezes, suspendia a missa e vinha insultar-nos cá fora.

O Bernardino Ribeiro foi chamado à PIDE e só tinha 17 anos. Quando o viram na sede, no Campo 24 de Agosto, um dos “gorilas”, exclamou:
- Que caralho vem a ser isto, agora mandam canalha para aqui? Isto não é nenhum infantário. Temos mais que fazer.

Mandaram-no embora dizendo:
- Ó miúdo, tem juizinho e quando disseres mal do Salazar, olha bem para os lados.

Ao Carlos Fontes também lhe disseram a mesma coisa. Tinha sido chamado por ter afirmado no café que as despesas das festas políticas da Câmara Municipal eram legalizadas com camiões de pedra ou de areia.

Chegado da guerra, em Março de 1969, estive, juntamente com o Bernardino, na crise estudantil de Coimbra e assistimos parcialmente ao II Congresso Republicano, realizado em Aveiro, 15 a 17 de Maio, distrito onde predominava a luta pela democracia.

Nesse ano da “abertura Marcelista”, regressou dos 10 anos de exílio D. António Ferreira Gomes, o famoso Bispo do Porto. Como o Pe. Artur da Paróquia de Espinho, regressou ao Secretariado da sede Episcopal, o “afastado” Pe. Manuel Henriques Ribeiro, foi para esse lugar, em Espinho. Este Fianense, visitante assíduo do amigo D. António Ferreira Gomes no exílio, em Espanha, também sofria da descriminação no próprio clero. Salazar, por mais que insistisse junto da Santa Sé, para que o lugar do Bispo do Porto fosse preenchido, nunca o conseguiu, mas o nomeado como Delegado Adjunto, D. Florentino Andrade fazia de sua a justiça mais conveniente ao poder civil.

E em Outubro, votámos para as eleições legislativas.

O Dr. Alcides Strecht Monteiro era o chefe da oposição de Aveiro e, como candidato, enviou o seu boletim, pelos CTT, para quem estava inscrito nos cadernos eleitorais. Porém, nos últimos dias, o “bufo” de cada lugar, dirigiu-se às pessoas pedindo a entrega desse boletim, alegadamente por indicação do Sr. Presidente da Câmara. Penso que todas as pessoas lhe fizeram essa vontade.
O Dr. Alcides ainda editou novos boletins que, perigosamente, andámos, durante a última noite, a distribuir pelas pessoas da oposição e de maior confiança, num esforço inglório para suavizar a anormal derrota. Numa dessas ruas e vielas, acabei por embater com o carro do “Inhecas”, num meco de granito.

O Inhecas - José Henriques Ribeiro, que havia sido ferido em 1967, na guerra da Guiné, continuou muito activo na oposição ao regime que nos governava. Militou no MDP, salientou-se como autarca, professor e dirigente associativo. Foi participante no III Congresso da Oposição (e último), realizado, também, em Aveiro. Não o incomodavam, talvez por recearem a firmeza do seu carácter e a sua utilização contínua da cadeira de rodas.

O jovem Dr. Manuel Lima Bastos, que era o nosso mentor revolucionário, foi sempre perseguido e controlado pela DGS. É sobrinho-neto do Inspector Adelino Soares Bastos. Foi ele que nos levou às crises de 68 e 69 em Coimbra, aos Congressos da Oposição e aos seus Comícios. O seu irmão Ângelo seguia-o sempre que podia.
Ligado ao MDP, veio a ocupar lugares de responsabilidade política após o 25 de Abril.
Hoje dedica-se à escrita, tendo publicados cerca de duas dezenas de livros.

Havia, ainda, o médico Carlos Ferreira Soares, de Nogueira da Regedoura, grande amigo e camarada do Inspector Adelino Bastos nessa luta antifascista.

Nasceu em 1903 e faleceu em 1942.
Era conhecido por Dr. Prata, o médico dos pobres. Dizem que, além das consultas grátis, dava e comprava medicamentos para os mais necessitados.
Tal como o seu amigo, andou clandestino e em fuga da PVDE. É célebre o seu esconderijo numa pequena japoneira situada no meio do cemitério.
Foi condenado à revelia em Tribunal Militar Especial do Porto, em Agosto de 1937, com multa elevada e um ano depois, com 4 anos de prisão correcional.
Foi assassinado em 4 de Julho de 1942.

(“Fonte: Antifascistas da resistência”)

Sempre que eu, adolescente, passava no autocarro da Feirense, junto à igreja de Nogueira, a caminho de Espinho, e olhava para o cemitério anexo, fixava a japoneira e prolongava essa visão, imaginando e admirando a bravura desses meus vizinhos patriotas antifascistas a quem muito devemos.

Os restos mortais do Dr. Carlos Ferreira Soares jazem junto da Japoneira (entretanto a primeira já foi substituída) que o escondeu muitas vezes da perseguição da PVDE.

Em 1970, quando eu seguia de barco para Angola, fui chamado à DGS para complementar as informações que pretendiam e ouvir algumas advertências.
Vim a verificar que todos os funcionários públicos eram “obrigados/aconselhados” a preencher a ficha de filiação na União Nacional. Sem negar essa inscrição, fui protelando e prometendo fazê-la. Porém, nunca o fiz.
Passei a ser visitado periodicamente na Câmara Municipal de Cabinda e sempre com o “convite amistoso” de passar por lá, pela DGS.
Por último, foram à Câmara no dia 20 de Abril de 1974, intimar-me para comparecer nas suas instalações “na próxima Quarta-feira, dia 24”.
Como não o fizeram por escrito, eu entendi que ainda não deveria lá ir “voluntariamente”.
Durante a noite, senti alguma preocupação. Apesar de não esconder a minha antipatia ao regime, estava convicto de que não havia nada de comprometedor no meu comportamento de cidadão português, cumpridor e patriota.

A manhã raiou com o desejado 25 de Abril. Quando tive conhecimento da revolta, senti uma satisfação indescritível.

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Felizmente que hoje, a sigla DGS, ao contrário da outra, é a de uma organização que muito orgulha os portugueses.


E é nesta luta que enfrentamos contra a Covid-19 que a ela mais nos sentimos ligados.
Obrigado DGS – DIREÇÃO GERAL DA SAÚDE!

José Ferreira
(Silva da Cart 1689)
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Nota do editor

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Guiné 61/74 - P21114: Os nossos seres, saberes e lazeres (399): Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (10) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Novembro de 2019:

Queridos amigos,
É muito desconfortável estar aqui a organizar o último dia da viagem a Nápoles. Pressentir que foi disparate grande não ter reservado, pelo menos uma tarde inteira para andar pelo Museu Arqueológico. O Museu de Capodimonte é uma galeria de arte de elevado valor, também não entrou nos planos da visita. O viandante embrenha-se pelas ruas, quis ir a Ravello e a Herculano, meteu o nariz nas igrejas e nas praças, e do alto da Cartuxa, junto ao Castelo de Sant'Elmo, de onde a vista é quase de 360º, torceu a orelha, bem arrependido por dar asas aos procedimentos do andarilho, mexeriqueiro, assombrado quando descobre que as pedras daquele casario vieram do teatro romano, como se em Itália isto não acontecesse por toda a parte. Resta a consolação de que o que não se viu agora é bom pretexto para regressar, gosta-se muito de Roma, Florença, Veneza e respetivos arredores, mas é uma séria amputação cultural não descobrir que Nápoles rivaliza com toda a magnificência que o país oferece.
Pois qualquer dia o visitante está de volta.

Um abraço do
Mário


Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (10)

Beja Santos

Não vem a despropósito falar do estado de alma do viandante, amanhã é dia de regresso e ele não gosta de enganos: há lugares fundamentais de Nápoles onde ele não pôs os pés, ou quando pôs foi visita de médico. Um só exemplo, o Museu Arqueológico Nacional de Nápoles, um dos mais antigos e importantes do mundo, dotado de um património arqueológico sem rival, acresce que instalado num edifício de finais do século XVI. Trazia em mente contemplar com tempo o Mosaico de Alexandre, ei-lo aqui numa batalha contra Dario III, este em fuga, uma das maiores belezas que há na arte do mosaico, com dois milhões de peças. Paciência, mais uma razão para voltar.


E a visita continua onde a deixámos no episódio anterior, na Cartuxa e Museu Nacional de São Martinho, monumento nacional, aqui se alberga um extraordinário património não só de arte-sacra como de objetos relevantes para o exercício do poder no tempo dos Bourbon. É uma experiência única, o visitante ingressa num mosteiro, é confrontado com a vida monástica, com uma igreja barroca deslumbrante, pode visitar a sacristia, os claustros e o refeitório, e depois tem à sua disposição um grande conjunto de obras e vestígios da civilização e da história de Nápoles. Museu invulgar, e daí termos selecionado estas imagens de embarcações reais e de coches. Em contraponto, uma espantosa escultura da Virgem com o Menino, veja-se o delicado ângulo em que o artista esculpiu um dos temas cristãos mais iconográficos.





O visitante entra agora nos domínios do Prior da Cartuxa, já visitou presépios e a secção histórica que abarca as dinastias Aragonesa aos Bourbon. O que se escreve no guia terá alguma utilidade para compreender as imagens que se seguem: “O prior, a única pessoa autorizada a contactar com o mundo exterior, governava a vida do mosteiro dos seus aposentos. Esta era uma residência fabulosa, rica em tesouros artísticos e a dar para jardins luxuriantes com vistas para Nápoles e para o mar. Construídos no século XVII e aumentados no século seguinte, os aposentos luxuosos foram restaurados com muito cuidado”. O que se depara ao visitante é uma recriação, e o olhar anda de cima para baixo e de baixo para cima, esparvoado entre pinturas, esculturas, tecidos e mobiliário, acresce a pomposidade dos tetos. Ora vejam.




À despedida da Cartuxa, não há nada como mirar e admirar a deslumbrante panorâmica, e coisa até agora não acontecida, poder ver ao fundo a ilha de Capri e a ilha de Ischia, no termo daquele promontório está Sorrento.



Como se disse, a arquitetura napolitana destinada à média e grande burguesia é um estoiro de prosperidade nestes prédios apalaçados, muitos deles bem intervencionados e requalificados. O visitante quer aproveitar esta boa luz e descer a um outro lugar magnífico, o Castel Dell’Ovo, a fortaleza a entrar pelo mar em frente a Santa Lucia, é o castelo mais antigo de Nápoles, é um belíssimo passeio, atravessa-se o Parco Vigiliano, e na marginal é um encanto ir caminhando até este volume inconfundível do castelo. Como é uso e costume, a construção assenta numa antiga propriedade romana, no século V andou por aqui uma comunidade de monges. A parte mais antiga do castelo data do século IX. Está aqui um pouco da história de Nápoles, por aqui andaram governantes normandos, os Hohenstaufen, os Anjou e os Aragoneses, cada um introduziu as alterações que quis. O aspeto atual é o resultado da reconstrução realizada depois de 1503. É hoje usado para eventos culturais. Anoitece, ainda dá para visitar o pitoresco bairro Borgo Marinaro, os pés já protestam, regressa-se ao casco histórico para amesendar, deitar cedo e cedo erguer, o check-in será feito pelas sete e trinta da manhã. E o visitante pensa, quando a aeronave aponta para Lisboa, que é urgente regressar e ver mais alguma coisa da imensidão que não se viu. E a despedida definitiva desta viagem fica para a próxima semana, far-se-á uma recapitulação de todo o álbum de imagens.




(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21093: Os nossos seres, saberes e lazeres (398): Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (9) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74: P21113: Da Suécia com saudade (72): Guiné-Bissau: milhões e milhões de ajuda sueca desperdiçados: resumo de artigo de Peter Bratt, "Dagens Nyheter", 1994 (José Belo)

1. Mensagem do José Belo, régulo da Tabanca da Lapónia:

[(i) ex-alf mil inf da CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70;

(ii) manteve-se no ativo, no exército português, durante uma década;

(iii) está reformado como capitão de infantaria do exército português;

(iv) jurista, vive entre Estocolmo, Suécia, nem como nas imediações de Abisco, Kiruna, Lapónia, no círculo polar ártico, já próximo da fronteira com a Finlândia, mas também Key-West, Florida, EUA;

(v) é o único régulo da tabanca de um homem só, a Tabanca da Lapónia (, mas sempre bem acompanhado das suas renas, dos seus cães. dos seus alces e dos seus ursos)]

Date: quarta, 24/06/2020 à(s) 15:50
Subject: Suécia / Guiné

Mais uma auto-crítica significativa por parte dos Serviços Estatais suecos quanto ao seu programa de auxílio económico à Guiné-Bissau de 2,2 mil milhöes [de coroas suecas]. (*)

Um abraço.
J. Belo
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**O projecto do auxílio sueco funcionou mal, foi extremamente custoso,e procurou resultados irrealistas***

(Resumo de um artigo de Peter Bratt, publicado no "Dagens Nyheter". em 1994)

O auxílio económico à Guiné-Bissau desde 1974 (2,2 mil milhöes de coroas suecas) [, cerca de 460 milhões de euros, 1 euro=10,47 coroas suecas, ao cambio atual] foi em termos gerais capital perdido. (**)

Pode-se hoje verificar que a totalidade do auxílio internacional ao país acabou por provocar mais danos do que bons resultados.

São as conclusöes de um inquérito efectuado pelo Secretariado do Ministério dos Negócios Estrangeiros Sueco (Secretariado do Auxílio e Cooperação para o Desenvolvimento, SAU).

O relatório deste Secretariado apresenta uma fortíssima crítica quanto ao auxílio prestado pela Agência Estatal responsável pelo auxílio aos países em desenvolvimento (SIDA, em sueco).

Este relatório foi efectuado sob a direção do Ministério dos Negócios Estrangeiros e é da responsabilidade do Prof. Peter Svedberg.

Após a independência, baseando-se fundamentalmente em razöes ideológicas, a Guiné-Bissau passou a fazer, muito rapidamente, parte do programa de auxílio estabelecido pela SIDA.

O que este relatório diz, já há muito que era do conhecimento de todos os implicados no assunto, só que ninguém  foi suficientemente corajoso para o dizer em "voz alta". Um auxílio que,  nas suas "razöes ideológicas", há muito que tinha sido ultrapassado quanto aos enquadramentos políticos iniciais.

O relatório demonstra que o auxílio internacional,  em vez de criar desenvolvimento,  acabou por causar graves entraves quanto ao sistema económico do país. Gigantesco afluxo de capital que acabou por não provocar qualquer crescimento económico. Os investimentos internos acabaram por näo surgir quando as rendas do capital de aforro se tornaram negativas.

Colocar-se capital no Banco tornou-se perca óbvia.

Mais tarde, por razões políticas e para manter a população calma, o Regime apoiou uma enorme
importação de arroz aos preços do mercado internacional.(Importação paga pela Suécia.)

Deste modo,e com estes preços, acabou-se por impedir o desenvolvimento da agricultura interna.
Na práctica o auxílio económico estrangeiro acabou por paralisar a produção alimentar. É um pouco como dar esmola a um pobre em vez de lhe criar condições de trabalho.

Pode concluir-se que o auxílio económico acabou por provocar efeitos negativos abrangedores,entre outros, extensíveis à área da educação.

Näo existem exportações para financiar as importações necessárias. Näo existe uma economia privada funcional em escala representativa fora do sector estatal, sendo este totalmente dependente dos auxílios internacionais.

As disparidades económicas entre rurais e citadinos têm vindo continuamente a agravar-se em resultado destes programas.

Uma análise profundamente negativa que nos leva à conclusão de não ter sido exclusivamente o auxílio sueco a merecer as críticas mais severas,mas sim todos os auxílios económicos internacionais prestados à economia da Guiné-Bissau.

Os resultados a níveis sociais,políticos,e do bem estar das populações,  infelizmente comprovam-no.

Peter Bratt
(Dagens Nyheter)

[Tradução livre / adaptação: JB]

2. Nota do editor:

Peter Bratt , nascido em 1944, é um jornalista sueco, trabalhou, até 2003, para o jornal de referência "Dagens Nyheter". Escreveu muitos textos críticos sobre o partido social-democrata. Em 1974 teve problemas com a justiça, tendo sido condenado a um ano de prisão por espionagem.

Não encontrámos o artigo a que se refere o J. Belo, mas pode ser este: "GUINEA-BISSAU: Svenskt miljardbistånd bortkastat", Dagens Nyheter. 2 de junho de 1994. Não conseguimos confirmar, porque o acesso ao jornal é pago... (Em português, o título seria qualquer como Guiné-Bissau: milhões e milhões de ajuda sueca desperdiçados).

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Nota do editor:



4 de movembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13847: Da Suécia com saudade (41): A ajuda sueca ao PAIGC, de 1969 a 1973, foi de 5,8 milhões de euros (Parte II)... Um apoio estritamente civil, humanitário, não-militar, apesar das pressões a que estavam sujeitos os sociais-democratas, então no poder (José Belo)

5 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13849: Da Suécia com saudade (42): A ajuda sueca ao PAIGC, de 1969 a 1973, foi de 5,8 milhões de euros (Parte III)... Pragmatismos de Amílcar Cabral e do Governo Sueco, de Olaf Palme, que só reconheceu a Guiné-Bissau em 9 de agosto de 1974 (José Belo)


7 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13859: Da Suécia com saudade (44): A ajuda sueca ao PAIGC, de 1969 a 1973, foi de 5,8 milhões de euros (Parte V): Quando se discutia, item a item, o que era ou não era ajuda humanitária: catanas, canetas, latas de sardinha de conserva... (José Belo)


11 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13874: Da Suécia com saudade (46): A ajuda sueca ao PAIGC, de 1969 a 1973, foi de 5,8 milhões de euros (Parte VII): Não deveria ter ficado surpreendido, com algumas reações... (José Belo)

Guiné 61/74 - P21112: Parabéns a você (1829): Fernando Maria Neves Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2404 (Guiné, 1968/70) e Vítor Caseiro, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4641 (Guiné, 1973/74)


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Nota do editor

Último poste da série de 24 de Junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21105: Parabéns a você (1828): António Branco, ex-1.º Cabo Reab Material da CCAÇ 6 (Guiné, 1972/74) e Vasco Joaquim, ex-1.º Cabo Escriturário do BCAÇ 2912 (Guiné, 1970/72)

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21111: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (8): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Naquele encontro de setembro de 1999, no decurso de uma reunião de trabalho em Bruxelas, num ímpeto totalmente imprevisto, o português Paulo Guilherme pediu à intérprete Annete Cantinaux se podiam almoçar, tinha um pedido a fazer-lhe, coisa de alguma monta, desejava, agora que caminhava para os 50 anos, escrever as suas memórias como combatente numa guerra colonial, tinha idealizado um romance, para isso forjara os amores entre belga e português, gente que se irá afeiçoando gradualmente, com o pretexto do português lhe enviar muita documentação correspondente ao histórico dessa comissão militar e como, entretanto, ambos se afeiçoaram, eram dois seres disponíveis, só a distância física os separava, mas era problema irremediável, desde que houvesse cimento para confiar no futuro.
Annette aceita o desafio, não tinha nada a perder em embarcar no devaneio ficcional daquele português, que agia tão corretamente com ela, ainda por cima tinham afinidades culturais, e o português gostava da Bélgica, o que ela sabia que não era muito comum, os eurocratas de diferentes nacionalidades estavam sempre a suspirar por regressar à pátria, aquele português não, aproveitava todas as circunstâncias para se enfronhar na vida belga, não perdia pitada, era entusiasmo suplementar para Annette.
E caminhamos para novembro, já temos três meses em Missirá, num regulado chamado Cuor, Annette vai lendo toda aquela papelada, mas acima de tudo suspira pela companhia de Paulo Guilherme, e não esconde que há para ali o rastilho que leva à germinação de um idílio.
Enfim, coisas de romance.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (8): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Cher Paulo, tenho sentido muita falta dos seus telefonemas noturnos, é uma companhia a que me habituei, começo agora a perceber o sentido da vossa palavra saudade. Quando nos despedimos, admitiu que pode fazer uma semana de férias sugeriu mesmo que gostaria de conhecer a Valónia com uma certa profundidade, fora de cidades que já conhece bem como Liège e Namur. Deixe-me fazer o calendário, sei que há uma semana de novembro em que não teremos reuniões, como bem sabe, os políticos europeus andam numa grande reflexão sobre a realização do grande mercado interno, as instituições irão reunir-se para um debate, já foram escolhidas as equipas intérpretes, informaram-me que eu ficarei de fora, assim que tiver notícias seguras transmito-lhe, pode bem acontecer que tenha então disponibilidade para vir.

Jean Favier
Comecei a ler um interessantíssimo livro de divulgação sobre a história dos grandes Descobrimentos, creio que conhece o autor, é Jean Favier, um medievalista, professor na Sorbonne, que teve responsabilidades nos Arquivos de França e foi mesmo Diretor da Biblioteca Nacional. Eu fui tomada pela curiosidade de conhecer um pouco mais a História de Portugal, mas esta narrativa é fascinante sobre os empreendimentos para desencravar o mundo desde a Mesopotâmia até ao Império Romano, viajantes e geógrafos, aquele terramoto que foram as Invasões Bárbaras, a que se seguiram as Conquistas Árabes, com novas rotas no Atlântico Norte, peregrinações e o ideal da Cruzada, fiquei fascinada com toda aquela mitologia à volta do Preste João, que lenda espantosa, li mesmo que um rei escandinavo enviou um emissário, de nome Valarte, à corte do rei D. Afonso V, foi até à Guiné, claro que não havia Preste João nem perto nem longe. Já estou no século XV, há mapas e portulanos, ao nível dos navios já se chegou à caravela, os portugueses já foram a Ceuta e há um príncipe que insiste em explorar a costa africana para Sul, é nessa Costa de África que o Paulo combateu. O livro propicia uma leitura entusiasmante e enquadra a saga do seu povo.


Fiquei atento ao seu pedido para conhecer numa próxima oportunidade património industrial, arquivístico e religioso na cidade, e que não seja de fácil acesso. Lembrei-me que podíamos visitar o Instituto Paul Hankar, eu preparava um roteiro dos edifícios concebidos por este genial arquiteto. Nas jornadas do património de 2020, a municipalidade de Bruxelas prepara uma série de visitas a cristalarias que tiveram grande importância no fim do século XIX, época em que a Bélgica era a quinta potência industrial do mundo, vou estar atenta. Como o Paulo já conhece o principal património religioso católico e protestante, lembrei-me que se podia visitar o esplendoroso templo maçónico, são os Amigos Filantrópicos, junto duas imagens que, estou segura, lhe aguçarão a curiosidade. Continuo a acompanhar os seus primeiros meses no Cuor, tudo se me tornou claro quando me enviou o mapa, caiu-me o coração aos pés quando vi aquela fotografia a dar aulas de português aos seus militares, tudo tão pobre, tão mal acabado, um dó de alma. Nos seus apontamentos, explica perfeitamente o que encontrou, o seu assombro quando saiu da sua casa e tinha à espera uma mulher que espremia o peito dizendo que não tinha leite e que o menino ia morrer, e que pronto marchou para a vila para comprar leite em pó, eram muito curiosas aquelas colunas militares que fazia para se ir reabastecer e também para os civis, escreveu com um certo humor cada vez que o chefe da tabanca lhe batia à porta era para lhe dizer que tinha acabado o arroz e que a população no dia seguinte não tinha nada para fazer… Há imagens pungentes, aquele balneário era tão precário e inseguro, a sua existência em conseguir um chuveiro melhor e como conseguiu trazê-lo dentro de duas canoas, que peripécias, vi também aquele caminho cheio de lama junto do Geba, uma estrada esburacada que levava à tal povoação que ainda estava em muito mais mau estado do que Missirá, Finete.

Um aspeto do Templo Maçónico de Bruxelas, os Amigos Filantrópicos

Vitral do mesmo Templo, situado na Rua de Laeken, em Bruxelas

Comoveu-me outras imagens laboriosas desse povo, parece que ainda estamos nos tempos antigos, nos primórdios da civilização, a construir barreiras para impedir que os arrozais sejam assaltados pela água salgada, a construção com vime, o Paulo disse-me mesmo que os teares são antiquíssimos para fazerem bonitos panos, se trabalha rudimentarmente o couro mas onde os guineenses são primorosos é na escultura, gostei muito daquela imagem do tal pássaro Nalu que afugenta os maus espíritos. Muito obrigado por tudo quanto me manda, já percebi que a sua “paixão belga” tem que ir acompanhando, mês após mês, as vicissitudes, os trabalhos e as dores desse alferes de Missirá.

Balantas trabalhando na construção de um ourique
Mandinga fabricando uma esteira
Missirá, na falta do professor, dei aula de Português junto do armazém de géneros

Bissau - A foto é de Virgínia Maria Yunes, da Guiné-Bissau. O balafon é um instrumento muito tradicional no país e em toda a África Ocidental. Precursor do xilofone, ele possui um reduzido número de teclas e utiliza uma solução de cabaças para os ressonadores. 
Imagem retirada de pordentrodaafrica.com, com a devida vénia

A minha filha Noémie, que tem o apelido do pai, Beuys, licenciada em Geografia, concorreu ao Ministério das Obras Públicas e Planeamento Urbano, foi admitida, estou muitíssimo contente. Trabalhei toda esta semana em Bruxelas, com exceção de quarta-feira, houve uma conferência em Gand, apoiada pela Comissão Europeia, para discutir os grandes problemas da automedicação, pensei mesmo se o Paulo não devia ter vindo, já que representa a Confederação Europeia dos Sindicatos nos dossiês da Saúde, na vertente da Cidadania. Mas tive o cuidado de juntar a documentação das intervenções dos diferentes oradores para lhe entregar. O meu filho Jules, creio que se recordará, é bibliotecário-arquivista na Biblioteca Real e falou-me que se vai realizar a partir de dezembro uma grande exposição de desenhos da nossa tapeçaria feita em Bruxelas e Malines, entre os séculos XVI e XVIII, a par dessa exposição irão ser mostradas, por cedência dos Museus Vaticanos tapeçarias de Rafael. Quando souber datas, transmito-as.

Veja se telefona mais vezes, se fala de si nos subscritos que me manda com os tais elementos da sua guerra na Guiné. No nosso último encontro eu senti-me um tanto desorientada, quando me lembrei que o Paulo não tinha mais de 23 anos e que lhe davam aquele fardo imenso de irem praticamente quase todos os dias vigiar a passagem de navios no principal rio da Guiné, para evitar que fossem destruídos pelos nacionalistas. Vendo as fotografias de como tudo era precário, os seus cadernos de apontamentos de como preenchia o seu dia, o correio enviado, o rol de leituras, o atendimento constante de casos pessoais, li mesmo com dificuldade aquela escrita um tanto garatujada de cartas onde lhe pediam dinheiro emprestado, empregando expressões pomposas, chamando-lhe pai, excelência, enviado do Divino Redentor, dei comigo a pensar na razão de ser do seu cuidado em transmitir às novas gerações como se vivia naquela África colonial. Mas penso que o seu sofrimento não acabou, como intérprete tenho assistido àquelas reuniões da área da cooperação com o grupo de África, Caraíbas e Pacífico, como se instalaram poderes corruptos, autocracias despóticas, saque de riquezas, a sina de sobreviver graças às ajudas humanitárias e a empréstimos que não se podem pagar. Por isso, o acompanho com carinho que não escondo, habituei-me à sua companhia, guardo-o com sentida devoção, e por isso lhe peço que venha depressa. A ver se esta noite me telefona, a ver se amanhã chega nova carta sua, é sempre uma bela surpresa.
Afetuosamente, Annette.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21090: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (7): A funda que arremessa para o fundo da memória

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21110: Armamento (10): As novas Armas Ligeiras para o Exército (Conclusão) (Luís Dias, ex-Alf Mil Inf)

1. Lembrando a mensagem de 22 de Junho de 2020 do nosso camarada Luís Dias, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872 (Dulombi e Galomaro, 1971/74):

Caríssimo Luís Graça 
Junto remeto um trabalho de informação sobre as armas que irão substituir a velha pistola Walther P38, as velhas HK G3 e as ML MG42 e HK 21. 
Também uma referência para o novo tipo de camuflado. 
Se achares que é de interesse para a nossa "Tabanca Grande" podes publicar. 

Obrigado e um grande abraço. 
Luís Dias

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Nota do editor

Postes anteriores de:

23 de Junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21103: Armamento (8): As novas Armas Ligeiras para o Exército (1) (Luís Dias, ex-Alf Mil Inf)
e
24 de Junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21106: Armamento (9): As novas Armas Ligeiras para o Exército (2) (Luís Dias, ex-Alf Mil Inf)

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21109: Manuscrito(s) (Luís Graça) (186): "Enquanto há saúde, quedos estão os santos"...Mas hoje nem o são João roga por nós... Afinal, "quando Deus não quer, os santos não podem"... E não houve santos populares para ninguém, nem na Tabanca de Candoz...





Tabanca de Candoz > 24 de junho de 2020 > Dia de São João... À mesa, só nove, que onze já é demais, e dá coima...

Foto (e legenda): © Luís Graça (2020) Todos os direitos reservados.
[Edição e legendagem comlementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Há um velho provérbio popular que diz: "Enquanto há saúde, quedos estão os santos"... Trocado por miúdos, o povo, interesseiro, só reza aos santos, quando está aflito...Ou, como ironiza o crítico do Zé Povinho: "Só se lembram de Santa Bárbara, quando troveja"... 


Afinal, ainda bem que a gente tem os santos para se agarrar... e para reinar. 


Mas este ano, devido à tal pandemia de COVID-19 que nos está a tramar, lá se foram os santos populares, o santo António, o são João, o são Pedro... Não há santos para ninguém, seja em Lisboa ou no Porto. E pior: não há santo que nos acuda.. 

Estranhamente, não temos saúde e eles estão quedos...Encontrei outra explicação, dentro da sabedoria popular, que no séc. XVII era capaz de dar fogueira da Santa Inquisição, por heresia, a quem a proferisse da boca para fora: "Quando Deus não quer os santos não podem" ou, noutra variante (, esta do séc. XVI,), "Quando Deus não quer,  santos não rogam"...

Não sou, confesso, muito dado aos arraiais juninos, seja em Lisboa, seja no Porto. Mas acho que o povo tem direito a folgar. Não sei se vem na Constituição o direito aos folguedos e, em última análise, o direito à preguiça, mas também não importa, aqui e agora.   Em muitas tabancas hoje foi dia de comer uma sardinha no pão. Há quem coma em honra do santo. Eu como porque sei que no céu não disto...

De qualquer modo, quem não comeu, não foi bom cristão. E não há a desculpa de que a sardinha está pela hora da morte... Este ano há fartura relativa.  Na Tabanca de Candoz, comi a meia-dúzia que me competia. (À mesa, éramos 9, costumam ser muitos mais...).

E, em boa verdade,  a sardinha já se come muito bem , desde que apanhe só um calorzinho, para não  ficar seca.  A sardinha é um peixe delicado... E, por esta altura, ainda tem pouca gordura, pelo menos a de Matosinhos. A da Lourinhã, a do Mar do Cerro (e que vai parar à lota de Peniche), já está mais cheiinha. Ou é impressão minha ? Se calhar,  estou a puxar a brasa à minha sardinha...

Em dia de são João, mesmo que o santo esteja quedo (, tanto ou mais que nós, que andamos um bocado em baixo, com medo do desconfinamento e da segunda vaga da pandemia... que há vir aí, vem/não vem...), nem por issso deixa de merecer um versinho. 

Afinal é o dia dele, do santo. E para o ano a gente não sabe se vai cá estar, nós e o santo. Camaradas e amigos/as  da Guiné, mantenhas para todos/as.  Animem-se. E não liguem ao provérbio, misógino: "A mulher e a sardinha,  quer-se pequenina"...LG


Em louvor do São João 

que este ano está murcho e quedo...


São João, pouco prazenteiro,
Não salta hoje à fogueira,
Não sei se é santo matreiro
Ou se lhe deu a lazeira.

Dizem que é da pandemia,
E, por mim, é de certeza,
A Invicta está vazia,
Um cemitério de tristeza.

Refugiei-me em Candoz,
Onde o vírus ainda não chega,
Mal será p’ra todos nós,
Se o bicho vem e nos pega.

As sardinhas são de Matosinhos,
No almoço, à varanda,
E, como não há cá vizinhos,
A disciplina é mais branda.

P'ró lanche há sapateira,
Com sabores da Lourinhã,
Hoje a festa é caseira,
Mas há mais santos amanhã.

Diz a Mi: "Ai que saudades
De dar beijos e abracinhos,
Aos meus filhos e netinhos,
Que o Covid é só maldades!" 


Deu-me um abracinho por detrás,
A minha querida cunhada,
Chora p'lo tempo de paz,
Detesta a cotovelada.

Quem de Lisboa chegar
Tem de ficar de quarentena,
Não nos venham infetar,
Não quer’mos cá essa cena.

Não se riam, que o Porto
Fica no mesmo planeta,
E, se isto der p’ró torto,
Vamos todos p’ro maneta.

E p'ra ficar p'ra história,
Da Tabanca de Candoz,
Mando-vos esta memória,
Mantenhas (*) p'ra todos vós.

Com saúde e os santos quedos,
Podem todos cá vir ao Norte,
Que p'ro ano e com sorte,
Teremos melhores folguedos.


Quinta de Candoz, São João,
24 de junho de 2020


(*) Mantenhas: saudações (em crioulo da Guiné-Bissau e de Cabo Verde)
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Nota do editor:

Último poste da série > 14 de junho de  2020 > Guiné 61/74 - P21075: Manuscrito(s) (Luís Graça) (185): por favor, não destruam o que resta da caixinha de Pandora, porque nela ainda está o segredo da nossa salvação, a Esperança, o veneno do mal que nos liberta do mal

Guiné 61/74 - P21108: Pré-publicação: "Odisseia 'Magnífica': Uma Volta ao Mundo com Magalhães e Covid 19", de António Graça de Abreu - Excertos, parte II: Relembrando a viagem de circum-navegação do NRP Sagres (5/1/2020 - 10/1/2021), de homenagem a Fernão de Magalhães (1480-1521)


NRP Sagres > Partiu de Lisboa a 5 de janeiro de 2020 para a sua volta ao mundo, com 142 militares a bordo... Por causa da pandemia de COVID 19, a missão teve de ser cancelada, e o navio-escola teve de regressar à base naval do Alfeite... (Acima, magnífica foto dos/as nossos/as bravos/as marinheiros/as!)

Era esperado que a NRP Sagres servisse de "casa de Portugal" nos Jogos Olímpicos de Tóquio (, também foram adiados para 2021).

Deveriam ter sido 371 dias de viagem, em homenagem à viagem de circum-navegação de Fernão de Magalhães (1480-1521). Um português, injustiçado e durante muito tempo esquecido. 

O magnífico veleiro da nossa armada acabou por voltar a Portugal 126 dias depois da partida, . A ordem de cancelamento da missão foi recebida quando a Sagres se aproximava já da África do Sul.  Deveria chegar a Lisboa em 10 de janeiro de 2021,

(Foto do grupo do Facebook Volta ao Mundo do Navio-Escola Sagres, com a devida vénia...)


1. São 137 páginas do diário de bordo do nosso amigo e camarada António Graça de Abreu, na sua última viagem de volta ao mundo (janeiro - abril de 2020). Trata-se de uma pré-publicação: haverá, no dia 11 de setembro +róximo, o lançamento do livro que já tem editor, a Guerra & Paz, com sede em Lisboa. 

O António Graça de Abreu [ ex-alf mil, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), membro sénior da Tabanca Grande, com cerca de 260 referências no nosso blogue] é poeta, escritor, tradutor, sinólogo, autor de livros de poesia (8), história (4), traduções (7), e viagens (3).

Por cortesia do autor,  vamos reproduzir aqui, nesta nova série, dois ou três dos momentos dessa viagem com mais interesse para os nossos leitores e para a história de Portugal no mundo. São excertos selecionados pelo nosso editor LG.(*).. A série será retomada depois do lançamento do livro, em 11 de setembro de 2020.


2. Pré-publicação: "Odisseia 'Magnífica': Uma Volta ao Mundo com Magalhães e Covid 19", de António Graça de Abreu - Excertos: parte II  (pp. 7-12)

Marselha, França, 6 de Janeiro

Xilogravura: o rinoceronte, de Durer (1515).  Museu Britânico, Londres.
Cortesia de Wikimedia Commons
Marselha, mais uma vez.  Da Senhora da Guarda no alto abençoando as boas e más almas.

Marselha da ilha de If, lugar onde foi confinado o rinoceronte que o nosso rei D. Manuel ofereceu ao Papa Leão X, em 1516.

Marselha da mesma ilha de If com a terrífica prisão onde Alexandre Dumas colocou o conde de Monte Cristo apodrecendo aos poucos durante dez anos.

Marselha com Hector Berlioz, depois das sinfonias fantásticas, reorquestrando La Marseillesse, um hino à emancipação e à liberdade humana.

Marselha do Vieux Port, atulhado de barquinhos e os pescadores regressando do mar, com peixe fresco para grelhar ou preparar uma colorida e apaladada bouillabaise, a caldeirada francesa capaz de rivalizar com as nossas de Peniche ou de Sesimbra. (...)


Barcelona, Espanha, 7 de Janeiro

A minha ligação a Barcelona começou há 54 anos atrás, no Verão de 1966. Eu conto.

Como era comum entre muitos jovens da década de sessenta do século passado, aí desde os meus quinze anos correspondia-me com umas tantas donzelas espalhadas pela Europa e anexos, em inglês, trocando fotos, postais, selos, entendimentos, ideias e sonhos.

Num tempo quase sem televisão, quando a Net nem sequer como miragem existia, as cartas eram uma espécie de envio de curiosidades e afectos, em palavras simples que aproximavam os jovens de diferentes países.

Seria, no entanto, improvável chegar um dia a conhecer em pessoa, ao vivo, qualquer uma das penfriends, ou penpals, mas nada era impossível debaixo do céu. Entre as amigas da escrita, a menina de quem eu mais gostava,  tinha nacionalidade alemã, vivia em Hamburgo, loira, de olho azul, Inge Balk, dezoito anos, linda de morrer na fotografia. (...)


Lisboa, Portugal, 9 de Janeiro

Sábado passado deixei Lisboa rumo a Roma, de avião, sob o comando do piloto Miguel Rodrigues, especialista nos mistérios do céu. Hoje, quinta-feira da semana seguinte, regressei à nossa capital num enorme navio, o Magnífica, sob o comando do siciliano Roberto Leotta, antigo capitão de petroleiros, dono de mil segredos do mar, de há uns anos para cá à frente de barcos de cruzeiro.

Em Lisboa, uma ida rápida a casa, sobre quatro rodas, para abraçar os filhos e trazer mais umas bugigangas para completar o enxoval necessário para a Volta ao Mundo.

A entrada em Lisboa, por mar, é sempre altura para originais encantamentos. Alarga-se o tamanho dos olhos, sente-se o borbulhar do coração. Estamos no Inverno, com um dia cinzento aberto por rasgões de luz, com algum sol a escorrer sobre o cabo Espichel, caindo sobre a encosta nebulosa que desce da serra de Sintra para o Guincho e Cascais. O navio a deslizar a seu modo, imponente, afectuoso, em busca dos braços do Tejo.

Leio que o nosso veleiro Sagres se lançou ao mar domingo passado, dia 5, para empreender exactamente uma viagem de circum-navegação bem mais demorada e extensa do que a que nos está destinada.

Para os marinheiros lusitanos preveem-se 371 dias de mar, 41.258 milhas náuticas e 6.782 horas de navegação. Tocarão 22 portos de 19 países que incluirão doze cidades da rede mundial das Cidades Magalhânicas.

A nossa Volta ao Mundo, no Atlântico, no Pacífico e no Índico, como iremos ver, irá cumprir grande parte do itinerário levado a cabo por Fernão de Magalhães entre 1519 e 1521. Temos 43 portos de mar a visitar em 23 países diferentes ao longo de 117 dias, uma jornada mais curta do que a da Sagres, mas não menos interessante. (...)

[Seleção, revisão e fixação de texto, para efeitos de reprodução neste blogue: LG]

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Guiné 61/74 - P21107: Historiografia da presença portuguesa em África (214): A imprensa na Guiné, numa tese de doutoramento de Isadora de Ataíde Fonseca, denominada “A Imprensa e o Império na África Portuguesa, 1842-1974" (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Dezembro de 2019:

Queridos amigos,
Impossível ignorar a grande qualidade da investigação desta tese de doutoramento de Isadora de Ataíde Fonseca. Ao interligar história, sociologia, economia e ciência política para analisar as dinâmicas da imprensa e do jornalismo nos territórios da África Portuguesa, nos séculos XIX e XX, produziu, tanto quanto me é dado saber, pela primeira vez uma leitura abrangente dos contextos sociopolíticos a par da evolução da natureza da imprensa existente. O contexto guineense é observado a fundo.
Tudo começou com o Boletim Oficial, foi a única fonte de imprensa até 1920, suceder-se-ão depois vários jornais, de vida efémera ou muitíssimo contingente. Com Sarmento Rodrigues terá aparecimento aquela publicação que ainda hoje é obrigatória para quem investiga ou sente paixão pelos assuntos guineenses: o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.
Estando acessível o texto integral, é leitura recomendada, sem qualquer hesitação.

Um abraço do
Mário


A imprensa na Guiné, numa tese de doutoramento do Instituto de Ciências Sociais (1)

Beja Santos

A tese de doutoramento de Isadora de Ataíde Fonseca, denominada “A Imprensa e o Império na África Portuguesa, 1842-1974" (acessível pelo link https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/15605/1/ulsd069555_td_Isadora_Fonseca.pdf), é um documento que revela estudo e tratamento seguro de uma temática que tem vindo a ser abordada fragmentariamente. A Guiné e a sua imprensa, pelo rigor de análise da autora, merecem aqui o devido realce. Isadora Fonseca adverte-nos no resumo que “no estudo das relações entre a imprensa e o império adota-se uma perspetiva multidisciplinar, na qual dialogam a História, a Sociologia e a Ciência Política, permitindo uma compreensão aprofundada das interações e interdependências entre a imprensa, o império colonial e os regimes políticos. O estudo de caso da África Portuguesa demonstra que a imprensa e o jornalismo nos cinco territórios apresentaram dinâmicas e caraterísticas similares no período colonial”.

Falando da situação portuguesa na Guiné no século XIX, a autora refere dois períodos, o que se estende até 1859 e que se caracterizou pelas tentativas de reconversão económica do comércio negreiro e o segundo que se identificou pela busca de um espaço colonial que afirmasse a soberania portuguesa, fase que só terminou com as campanhas militares de 1912-1915. Faz uma breve resenha da presença portuguesa desde meados do século XV, releva as praças de Cacheu e Bissau, as mais importantes no século XIX, observando que o grupo dominante era formado pelos grandes negociantes e negreiros, representantes comerciais e funcionários superiores; a classe média incluía os pequenos comerciantes, os proprietários das embarcações, os oficiais militares e os membros da Igreja; na base estavam os soldados, degredados e os grumetes (estes descendiam de escravos alforriados e africanos cristianizados) e mesmo, mesmo no último escalão social estavam os escravos. Adianta elementos que deixam bem nítida a fragilidade da soberania portuguesa:
“A incapacidade do governo metropolitano em suprir os encargos dos funcionários e militares instalados na Guiné levou ao arrendamento do rendimento das alfândegas, a partir de 1840. Deste modo, consolidou-se a posição económica da elite afro-lusa, pois esta apropriou-se do único rendimento da região, responsabilizando-se pelos salários dos funcionários com o argumento de defender o império português. Embora exportasse amendoim desde os anos de 1830, a agricultura era quase inexistente. No campo económico, preponderou o tráfico ilícito de escravos na maior parte do século XIX e a ele articularam-se as trocas comerciais, com o domínio dos navios franceses e americanos. Ressalve-se que o transporte marítimo e o comércio com Portugal eram quase inexistentes nesta época”.

A autora chama igualmente a atenção para outro fenómeno que acabou por gerar grande instabilidade e tumulto migratório: a desagregação do império do Gabú, e a pressão conflitual dos Fulas contra os Beafadas, que levou a um quase despovoamento colonial do Forreá.

A imprensa nacional instalou-se em 1880 e com ela iniciou-se a publicação do Boletim Oficial. Semanário e com quatro páginas, o Boletim Oficial da Guiné seguia o padrão das demais colónias, dividido entre ‘Parte Oficial’ e ‘Não Oficial’. Este boletim oficial também incluía o relatório dos concelhos de Bolama e Bissau. A autora avança com saborosas e ilustrativas situações retiradas do Boletim Oficial.

E assim chegamos ao quadro da imprensa na Guiné na Monarquia Constitucional. Não houve imprensa privada e tem que se saber porquê. “A inexistência de autoridade portuguesa sobre as populações nativas, o regime de administração indireta e a multiplicidade de unidades políticas nativas, e a inexequibilidade das reformas administrativas são os fatores que caraterizam o estatuto político da Guiné no século XIX”, e a autora invoca a perspetiva dada pelo investigador António Duarte Silva. Não havia elites, acresce, como é óbvio, que a emergência da imprensa requer factos sociais, políticos e económicos que exijam circulação de informação, o que não acontecia naquele local chamado Senegâmbia. “Ao longo da Monarquia Constitucional, o Boletim Oficial foi o único meio de informação na Guiné e exerceu sobretudo o papel colaborador, apoiando o governo na execução dos seus planos. Contudo, não fosse o boletim oficial e não existiria o mínimo de informação sobre as decisões políticas, administrativas, económicas e militares do que se passou na Guiné entre 1880 e 1920, quando apareceu o primeiro jornal privado no território”.

E passamos para o regime republicano, chegou novo Governador, Carlos de Almeida Pereira, o seu nome fica ligado ao derrube dos muros que protegiam S. José de Bissau das arremetidas das populações limítrofes. Constituíram-se comissões do Centro Republicano de Bissau e Cacheu, do Partido Republicano Português em Bolama e das comissões municipais do mesmo partido em Bolama e Bissau. É referida a importância e o enigma que continua a cercar a Liga Guineense, criada em 1910, e posteriormente dissolvida, em 1915, os estudiosos invocam por vezes razões altamente discutíveis. É um dossiê em aberto. Certo e seguro é que surge em 1920 o Ecos da Guiné, Quinzenário Independente Defensor dos Interesses da Província, dirigido por José Joaquim Curvo Semedo, era uma iniciativa de funcionários públicos europeus, reproduzido na Tipografia do Estado, não sobreviveu ao primeiro trimestre de 1920. A Voz da Guiné, em 1922, escrevia que o Ecos da Guiné “quase que morreu à nascença porque a verdade é que, para viver, teria de se sujeitar a imposições do Governo”. A Voz da Guiné espelha aspirações que têm a ver não só com o desenvolvimento económico como as noções primárias de um Estado de direito. Logo no número um é referida a sua aspiração de levar longe o conhecimento do mercado guineense e de combater as infrações, defendendo a justiça e realçando o papel do direito. E promovia causas: denunciar o nepotismo, criticar a falta de higiene e de saneamento. A Voz da Guiné, Quinzenário Republicano Independente, tinha como editor Rui Carrington S. da Costa, e também era reproduzido na imprensa nacional. Teve vida efémera, foram publicados apenas onze números.




(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21084: Historiografia da presença portuguesa em África (213): Para Luciano Cordeiro, de um oficial da Armada que definiu as fronteiras da Guiné - Carta do Capitão-de-Fragata da Armada Real, Eduardo João da Costa Oliveira, publicada no Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa (Mário Beja Santos)