quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22982: Historiografia da presença portuguesa em África (303): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (7) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Pergunto-me muitas vezes quantos investigadores vieram beber a este trabalho de longa cifra e decifra de Senna Barcelos, João Barreto, que escreveu a primeira História da Guiné, seguramente que o consultou à exaustão. Este brioso oficial da Marinha foi não só meticuloso com os factos e feitos que a História registou como nunca se escusou a dar opiniões, releva as situações de incúria e desleixo, as traquibérnias e assaltos, as incompetências e o estado de hostilidade permanente à volta das praças e presídios. Agora apertam-se as pressões da França a norte e da Inglaterra a sul, dentro de décadas iremos legalmente perder a nossa presença no Casamansa (estava praticamente circunscrita a Ziguinchor) e os brigues ingleses destroem e até matam em Bolama ou na Ilha das Galinhas, sonham deter a hegemonia no Rio Grande de Buba. A figura que sobressai é a de um político exemplar, Honório Pereira Barreto, e todo o período que Senna Barcelos a seguir vai descrever tem algo de tétrico, a rapina estrangeira cerca o que resta da Senegâmbia Portuguesa, Lisboa está praticamente indiferente, há um deputado alarve que nem sabe o que era o Casamansa e Alexandre Herculano, que se estreava nas lides parlamentares, zurziu a animália. O leitor que se prepare, a intimidação e a gula estrangeira vão ganhar intensidade.

Um abraço do
Mário



Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (7)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que ainda nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense.

Avançamos para o material restante da parte IV dos Subsídios para a "História de Cabo Verde e Guiné" que conheceram edição em 1910. A figura central deste período é Honório Pereira Barreto. Sabe-se de todas estas sublevações, assassinatos, roubos, intromissões e ingerências de potências estrangeiras graças aos relatórios que Senna Barcelos leu atentamente. O ex-Governador da Guiné Gonçalves Barbosa entregou um relatório referente à Guiné em 1841, mas dois anos antes Honório Barreto já tinha dito verdades como punhos e dava um quadro bastante cru da situação:
“As possessões portuguesas na Senegâmbia compõem-se dos Estabelecimentos seguintes: no rio de Geba, a Praça de Bissau; e nas dependências, Nova Peniche (Ilhéu do Rei), Geba, Fá; e Bolama no Arquipélago dos Bijagós; no Rio de S. Domingos o presídio de Cacheu e dele dependentes Farim, Bolor, Ziguinchor e Gonzo, tudo com uma população de 3 a 4 mil almas entre brancos, pretos, livres e escravos. Estes estabelecimentos todos são hoje de pouca importância pela indiferença culpável com que a maior parte das autoridades da província olham para as elites, indiferença que produz muitas outras causas para a sua decadência. Antigamente Bissau e Cacheu formavam dois governos separados, mas desde 1834 ficaram debaixo de um só governo. A sede é Bissau”.

E segue-se a descrição de Bissau como residência do governador, apresentada como uma praça de guerra regular, quadrada, tendo cem toesas de cada lado e estando ao tempo guarnecida com 70 baionetas e 22 peças de artilharia; dentro da Praça havia um quartel para 300 praças, mas em mau estado, e que ameaçava já ruína; o quartel para oficiais também estava degradado, havia uma pequena igreja, um armazém e falava-se mesmo num vergonhoso quartel do governo. Fora dos edifícios da Praça estava a povoação onde havia apenas cinco casas cobertas de telha, todas as outras eram de barro, cobertas de palha, indicando tudo o maior atraso e miséria. A figura de Honório Pereira Barreto agiganta-se como governante, com o seu elevado patriotismo, pelo seu timbre de lealdade. Adquiriu a amizade das populações, dava sinais de revolta contra a ociosidade, fosse dos Grumetes, fosse dos cristãos, sonhava com guineenses competentes e bons profissionais. Veja-se o teor de uma carta que manda ao Ministro da Marinha em Cacheu a 16 de dezembro de 1845:
“Ilustríssimo e excelentíssimo Senhor,
O bem do meu país é o único alvo a quem se dirigem todos os meus esforços, e todas as minhas vistas. Eu o promoverei com as poucas forças que tenho.
Por mim pouco ou nada posso fazer; mas eu tenho conhecido que Vossa Excelência também deseja e promove a felicidade das possessões ultramarinas.
Não posso ver sem dor a ociosidade, ou por melhor me explicar, a selvagem indolência em que vivem os habitantes deste presídio, chamados Grumetes. Nenhum deles sabe ofícios mecânicos; para se fazer a mais pequena obra é preciso mandar vir obreiros da Gâmbia. O governo sem dúvida quer propagar a civilização em África, e para isso tem mandado fundar escolas primárias: sem dúvida é um passo muito acertado, mas não é menos necessário que haja oficiais mecânicos. O país ganha com isso e é também um passo para a civilização.
Tenho observado que ensinados aqui os Grumetes, nada aprendem: porque cedo se dão à embriaguez ou à crápula e tornam-se por isso estúpidos. Proponho, pois, a Vossa Excelência que expeça ordens para que eu lhe remeta pelos navios do Estado, que vierem buscar madeira, um número de rapazes livres para aí se aplicarem a diversos ofícios.
Dir-me-á Vossa Excelência talvez de que Bissau se enviaram há tempos uns poucos de rapazes que estiveram no Arsenal, e nada aproveitaram do ensino. Permita-me porém que lhe observe que os Grumetes de Bissau são diferentes dos deste governo; e que lhes ensinaram a ler, e por isso desprezaram o ofício que aprenderam e se tornaram mercadores; eu creio ainda que quando eles foram para esse, já tinha uma idade suficiente para levarem consigo ao menos uma insuperável disposição para todos os vícios dominantes nestas praças; e por fim direi – a crer o que eles afirmam, nem os trataram bem, nem o seu ensino era muito rigoroso.
Outro tanto não acontecerá agora; porque eu escolherei a gente que mandar e estou inteiramente certo que Vossa Excelência vigiará sobre a sua aplicação. Deus guarde Vossa Excelência”
.

Voltando ao espírito destes relatórios, não é difícil concluir a existência de um quadro permanente de incúria, incompetência e detenções permanentes com as populações limítrofes, tanto em Bissau como em Cacheu. Lê-se constantemente queixas sobre a indolência, a perda de respeito à bandeira portuguesa, o gentio só obedece aos régulos: “O gentio insulta quotidiana e impunemente os habitantes sujeitos ao governo, espancando-as dentro das suas casas”. E concretamente em Bissau fala-se do que é o descontentamento militar:
“Os pagamentos às Praças de Pré são feitos em toda a colónia em pólvora, tabaco e algumas outras mercadorias; e aos empregados oficiais, inclusive o governador, metade como aos soldados e outra metade em cédulas que são umas notas emitidas por Manuel António Martins quando Prefeito. Ora, esta maneira de pagar bem mostra a desgraça do país; não há uma botica, e isto num país onde o clima é letal; a casa que serve de hospital é própria para fazer adoecer os que têm saúde e para matar os que estão doentes”.

Falou-se anteriormente na chegada a Bissau de Alois de Rolla, Dziesaski. Polaco, tal como de Chelmicki, nascido naquele país em 1997, veio para Portugal ao serviço da rainha em junho de 1883, depois de promoções sucessivas foi tenente-coronel em 1882. Revelou-se um oficial brioso, tendo prestado relevantes serviços à Guiné, pugnando sempre pelos interesses da sua pátria relativa.

Os ingleses voltam a cometer tropelias, raptos e destruições. Senna Barcelos regista a queixa do agricultor, que foi coronel de milícias e antigo Governador, Joaquim António de Matos, proprietário na Ilha das Galinhas, contra o comandante do vapor inglês Pluton, a tripulação praticou extorsões e destruições em série na ilha, roubaram-lhe a casa e tiveram a barbaridade de assassinar a filha mais velha. A queixa foi endereçada a António Tavares da Veiga Santos, então Major Governador de Bissau, em março de 1842. Nesse mesmo ano, o ministro inglês em Lisboa, Lord Howard de Walden, reclamou do Duque da Terceira, Ministro dos Negócios Estrangeiros, contra as ordens expedidas pelos governadores de Bissau e Cacheu para que os navios estrangeiros não pudessem subir os rios Geba e Cacheu, e isto na ocasião em que se negociavam os tratados de comércio e navegação e em que se procurava pôr termo à escravatura. Acontece, como informou o Ministro da Marinha e Ultramar ao Duque da Terceira, estava proibida aos navios estrangeiros por direito estabelecido e reconhecido por todas as nações e continuaria a ser, com exceção dos casos de arribada forçada. Os apetites ingleses não paravam. Em maio desse ano chegava novo vapor inglês cujo comandante vinha reclamar os direitos de Inglaterra à soberania e posse da ilha. A questão de Bolama ganhava intensidade. A bandeira inglesa será arreada e até 1848 os ingleses não exercerão mais nenhum ato de pirataria em Bolama. Depois sim, no período até 1853 voltarão à carga, não querem só apossar-se de Bolama, querem também o rio Grande de Bolola, é a região de Buba.

Vejamos agora em síntese alguns acontecimentos relevantes apontados por Senna Barcelos no período correspondente a 1843 até 1853.

(continua)

Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22958: Historiografia da presença portuguesa em África (302): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (6) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22981: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XXXI: Júlio Soares Serrão da Silva Machado, cap inf (Lisboa, 1882- França, CEP, 1918)



Júlio Soares Serrão da Silva Machado (1882-1918)


Nome: Júlio Soares Serrão da Silva Machado
Posto:  Capitão de Infantaria
Naturalidade:  Lisboa
Data de nascimento: 30 de Junho de 1882
Incorporação:  1901 na Escola do Exército (nº 165 do Corpo de Alunos)
Unidade:  Batalhão de Infantaria 29
Condecorações:  Cruz de Guerra de 3ª classe (a título póstumo)
TO da morte em combate:  França (CEP)
Data de embarque:  28 de Fevereiro de 1917
Data da morte:  9 de Abril de 1918
Sepultura:  Cemitério Militar de Vieille Chapelle
Circunstâncias da morte;  Comandante da 1ª companhia do BI 29, sob o comando do Major Xavier da Costa, tomou todas as disposições para actuar com a sua companhia debaixo de bombardeamento intenso. No decurso da organização da defesa de um ponto de suporte da 2ª linha, arrastando os subordinados com o seu exemplo de valentia e destemor, faleceu esmagado por uma granada inimiga.

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António Carlos Morais da Silva, hoje e ontem


1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um oficiais oriundos da Escola do Exército e da Escola de Guerra que morreram em combate, na I Guerra Mundial, nos teatros de operações de Angola, Moçambique e França (*).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva, cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor da AM, durante cerca de 3 décadas; é membro da nossa Tabanca Grande, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.

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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P22980: Blogoterapia (301): Que será feito do "Caboiana", o menino órfão que deixámos em Teixeira Pinto? (Ramiro Jesus, Fur Mil Cmd, 35ª CCmds, Teixeira Pinto, Bula e Bissau, 1971/73)

Teixeira Pinto - O Fur Mil CMD Ramiro Jesus com o "Caboiana" ao colo

 
Foto (e legenda): © Ramiro Jesus (2022).Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do nosso camarada Ramiro Jesus (ex-Fur Mil Comando da 35.ª CComandos, Teixeira Pinto, Bula e Bissau, 1971/73), com data de 8 de Fevereiro de 2022:

Boa-tarde, camaradas.

Por estes dias, ao ler o Cherno Baldé, avivou-se-me a memória, tantas vezes repetida nas últimas cinco décadas, acerca de uma criatura especial, das muitas de que me tenho lembrado, depois da minha passagem e regresso da Guiné.

Pois é, como todos que por ali passámos, e apesar das condições em que o fizemos - que não eram propriamente de confraternização com os seus naturais - houve sempre alguém daquela população civil ou outros militares e para-militares com os quais cada um de nós foi convivendo e que, em cada caso, ao deixá-los, foi criada em cada um de nós (julgo eu) uma certa carga nostálgica, agravada pelos desenvolvimentos posteriores à passagem de soberania. 

No meu caso, recordo muitos dos que pertenceram às três Companhias de Comandos Africanos, tantos deles cujos nomes fui encontrando nos jornais, que foram relatando o fim trágico a que foram sujeitos logo depois da independência e outros que, tendo escapado aos fuzilamentos, às vezes ainda aparecem em algumas reportagens.

Mas há um caso muito especial, como disse inicialmente, que me veio à memória com mais vigor: é o Caboiana, que me acompanha na pobrezinha foto que anexo.

Pois é, este menino, de que ninguém sabia o nome e nem ele (por ser bebé), era um "prisioneiro" de guerra, que nos foi entrgue pela Companhia - a 26.ª CC - que rendemos em Teixeira Pinto, e que o tinha trazido de uma operação na Caboiana (uma daquelas zonas que o PAIGC chamava libertadas), em que a pobre mãe, com ele, tinha caído numa emboscada em que perdeu a vida. 

Quando, em Fevereiro de 1973, deixámos aquela terra, deixámo-lo também a ele. Pergunto-me então:

Quem o terá criado?
Que nome lhe terão dado?
Como terá sido a sua vida?
Onde estará agora?
E... sei lá mais o quê?!

Nada sei. E sinto uma espécie de angústia.

Um abraço
Ramiro Jesus
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE JANEIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22939: Blogoterapia (300): O tempo passa, mas as suas marcas ficam (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo CAR da CART 3493)

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22979: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé): Parte III: O rabo de um macaco pode ser muito comprido mas não é por isso que deixa de sentir a dor quando picado

 

 


Mapa geral da antiga província  portuguesa da Guiné (1961) > Escala: 1/ 500 mil > Posição relativa de Fajonquito, Canhámina e Cambajú, setor de Contuboel, na fronteira norte com o Senegal.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)



Cherno Baldé > Com cerca de 19/20 anos, em 1989, na Ucrânia, que então integrava a antiga URSS. Recorde-se que, ainda criança, a família de Canhámina para Fajonquito, em 1968, onde o pai era empregado da Casa Ultramarina.  Até à independênxia, passava os dias enfiado no quartel de Fajonquito. Aqui  aprendeu as primeiras letras. Sairá depois para Bafatá, onde fez o ensino secundário. Entre 1986 e 1989, foi estudante universitário, na antiga União Soviética, primeiro na Moldávia e depois na Ucrânia (1986-1989).


1. Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte III (*)



(vii) Um, dois, três!... Um, dois, Três!... À esquerda!... À esquerda!... Quem somos nós?! Somos pioneiros!...


Estamos no ano de 1975, alguns meses após a independência. Só agora começamos a compreender todo o tamanho do trama em que estamos metidos. Pessoalmente, estou na fase da readaptação de uma nova vida.

Não é fácil para mim, sobretudo, ter de voltar à comida de farinha de milho preto. De manhã vou à escola e à tarde cuido do nosso gado na companhia de outros miúdos. As dificuldades são de vária ordem mas, na memória da criança,  não há lugar para a saudade.

Não é fácil para os outros também. Os antigos serviçais do quartel  de Fajonquito  estão a morrer lentamente, inexoravelmente. O primeiro foi o Sadjo, coitado, com a sua enorme barriga e a gordura acumulada ao longo da sua vida de cozinheiro, debaixo do sol, não conseguia obter o mínimo para sustentar os filhos e as suas três mulheres. Resultado, morreu. Sem jeito para mendigar, sem forças para trabalhar a terra, passava dias a fio metido no mato, escondido, a cogitar milagres. Além do mais, sofria de diarreia constante devido a fome e a mudança do regime alimentar.

Depois, foi a vez do Mamadu, profissão, ex-cozinheiro. Depois foi o Samba, profissão, ex-padeiro. O Maudhô Uri, esse, conseguiu safar-se trabalhando como mecânico de velocípedes. Por pouco tempo.

Tcherno!... Tcherno Adulai!... Adulai shall!...

Ė a minha avó que me vem acordar. Todos os dias é a mesma coisa. Ela insiste de que a porta do meu quarto deve estar aberta de manhã cedo, antes da primeira oração do dia, altura em que a sorte nos bate à porta. Apesar de tudo, ela sabe que não pode entrar no meu quarto, pois o estatuto de circunciso me protege. Fica-se à porta a cacarejar. A contra-gosto levanto-me para ir lavar o rosto. Não é por causa dela, é que hoje temos um desafio de futebol contra a equipa de Canhámina. Tento encontrar, na confusão do quarto, a minha escova de dentes.

−  Menino, levante-se! Olha que os teus colegas já passaram na estrada e chamam por ti dizendo: Tchernó!... Tchernó…

Era inventiva a minha avó, os alunos em marcha para Canhámina, na verdade, clamavam: 

−  Um, dois, três!... Um, dois, Três!... À esquerda!... À esquerda!... Quem somos nós?! Somos pioneiros!... Quem somos nós?! Somos pioneiros!...

Rapidamente, meto os calções, meto as sapatilhas e agarro a camisa indo ao encalço dos colegas. Já estão longe e tenho que correr sem parar. Felizmente é um percurso já habitual e a minha vida é feita de corrida. Entro no pelotão pouco antes da última subida para a aldeia.


(viii) O rabo de um macaco pode ser muito comprido 
mas não é por isso que deixa de sentir a dor quando picado


Em Canhámina, esperava-nos um espectáculo desolador. Em pleno centro da aldeia e debaixo de um poilão gigante, estavam agrupadas algumas pessoas formando um círculo, ao meio se encontrava um homem relativamente jovem, amarrado por trás, com as cordas de nylon penetrando na carne dos braços inchados, o peito todo bombeado para a frente.

Era o chamado “peito de pomba”, método preferido dos Comissários do PAIGC. Tinha sido preso no posto de controlo da fronteira com o Senegal. Via-se, pelo aspecto do corpo e pelo sangue seco nas têmporas e no rosto,  que estava assim havia muito tempo e tinha levado porrada a valer. Da multidão, alguém lhe sussurrou na língua local:

−  Diga que tu és! Diga que tu és! Senão ainda te matam, palerma!

Como não reagia, o homem levou ainda com uma coronhada na cara ensanguentada que o derrubou ao chão. Levantou-se com dificuldade mas levantou-se pois, ele era um homem e devia continuar a sê-lo enquanto tivesse o mais leve sopro de vida no seu corpo, é o que lhe ensinaram desde a mais tenra idade. Olhando, desta vez, para os seus torcionários, falou com a boca a escorrer sangue, em língua Fula:

−  Eu sou!..


O Comissário perguntou-lhe:

− Tu és o quê?
−  Eu sou! − respondeu.
−  Tu és da FLING, não é? −  sugeriu o Comissário.
−  Eu sou, sim!.. sou isso mesmo. Isso que você disse.

Finalmente, ele tinha confessado o seu crime. Todos acabam por confessar. O Comissário, cuspiu para o chão o resto do tabaco que tinha na boca e, com desdém, ordenou que o levassem dali. Levaram-no para o acampamento dos guerrilheiros, ali, um pouco metido na mata que circundava a aldeia. Mesmo regressados a casa, estes, por força do hábito, ainda se sentiam melhor e mais seguros entre as árvores como os animais selvagens, com as suas inseparáveis Akas na mão.

Um grupo de curiosos, na maioria crianças, acompanhou o cortejo. Nós seguimos para o campo de futebol, situado ao lado do acampamento militar.





No terreno, frente a Canhámina, ganhamos o jogo sem grandes problemas mas, em vez da satisfação habitual,  estava invadido por uma tristeza vinda de não sei onde. O meu espírito ainda não se tinha libertado do choque do que tinha presenciado. Assaltavam-me a memória muitas coisas que não me permitiam acompanhar a alegria dos colegas. Estes, na corrida de regresso a casa, gritavam, transformando as palavras do prisioneiro em slogan de vitória:

−  Eu sou!... Eu sou aquilo!... Eu sou isso mesmo!... Eu sou o que você disse!... − .  E riam, desgraçadamente.

Ao chegar perto do cruzamento, procurei a sombra de um poilão e, com o rosto virado para a entrada principal de Canhámina, fiquei durante alguns minutos a olhar para a aldeia que, alguns anos antes, fora o símbolo da coragem e do poder de Sancorlã. 

Esta era a terra do meu pai, também, onde recebeu o baptismo e foi circuncidado. Alguma coisa me roía por dentro. A sabedoria popular nos ensinou que: "O rabo de um macaco pode ser muito comprido mas não é por isso que deixa de sentir a dor quando picado".

No contexto da vida de Fuladu, a história de Canhámina é invulgar e toca a todos os habitantes do antigo regulado, pequenos e grandes. Uma História breve, colorida de enigmas e que teve um fim trágico.

Cherno Baldé

Bissau, Junho de 2010  (**)


[Revisão, fixação de texto, adaptação, subtítulos, para efeitos de publicação neste poste: LG]

(Contimua)
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Notas do editor:

(*) Vd.postes anteriores da série


7 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22976: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte II: A chegada dos guerrilheiros, outrora "bandidos", agora "heróis da libertação da Pátria"...A (mu)dança das bandeiras... Os meus novos amigos, balantas...

Guiné 61/74 - P22978: Parabéns a você (2034): Constantino Neves, ex-1.º Cabo Escriturário da CCS/BCAÇ 2893 (Nova Lamego, 1969/71)

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Nota do editor:

Último poste da série de 6 de Fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22972: Parabéns a você (2033): José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux. Enfermeiro da CCAÇ 2381 - "Os Maiorais", (Buba, Aldeia Formosa e Empada, 1968/70)

Guiné 61/74 - P22977: Notas de leitura (1418): "O Povo de Santa Maria, seu falar e suas vivências", 2ª edição revista e acrescentada (2021), por Arsénio Chaves Puim, um caso de grande sensibilidade sociocultural e de amor às suas raízes (Luís Graça ) - Parte III: a influência dos "calafonas"



Capa do livro do nosso camarada Arsénio Chaves Puim, "O Povo de Santa Maria, seu falar e suas vivências", 2ª edição revista e acrescentada, Santa Maria, Câmara Municipal de Vila do Porto, 2021, 286 pp. Capa: Ilha de Santa Maria, do cartógrafo Luís Teixeira, 1587, Biblioteca Nacional de Florença.



1. Em 20/12/2021, por altura do Natal, o Arsénio Puim mandou-nos uma mensagem por email em que, para além dos votos natalícios,  nos dizia, entre outras coisas:


(...) "Talvez estranhamente depois da minha vivência como capelão militar na Guiné, em vez de publicar um livro sobre este território e a sua guerra e a minha experiência nesse meio, optei por escrever sobre aspectos etnográficos e históricos relativos à minha pacata ilha de Santa Maria, nomeadamente, a linguagem tradicional do seu povo.

Na verdade, sempre gostei e tive curiosidade por esta temática dos falares populares. Já na Guiné, como referes, interessei-me um bocado pelo estudo do crioulo, uma língua que sempre achei muito bonita, muito expressiva e muito sonante. E sobre isso escrevi mesmo alguns trabalhos, baseados no contacto com a população local.

Isto não que dizer que, depois de regressar aos Açores, não tenha publicado, nos jornais, diversos trabalhos de natureza social e política - sobre a guerra colonial, as guerras internacionais e , sobretudo, sobre a guerra, como realidade histórica, sem causa justa, fruto da loucura e estupidez dos homens. Nestes escritos jornalísticos também abordei criticamente a passividade e conluio escandaloso da Igreja com o monstro da guerra". (...)

Estamos a falar de Arsénio Chaves Puim que, além de nosso camarada, é apresentado na Wikipédia, na entrada sobre a Ilha de Santa Maria. como um dos nove marienses ilustres: "historiador, etnógrafo, co-fundador e primeiro diretor de 'O Baluarte de Santa Maria' (segunda série), opositor ao Estado Novo, presidente da Câmara de Vila do Porto e pároco de São Pedro e Santa Bárbara".

2. Vê-se que o seu último livro, agora em 2ª edição, "revista e acrescentada", e cuja capa voltamos a reproduzir acima (*), foi escrito com muito carinho, amor e até paixão... Sem pretender ser enciclopédico, nem se arrogar o estatuto de investigador académico, Arsénio Puim não quis que a geração dos seus pais desaparecesse de todo sem que a memória da suas marcas identitárias, e nomeadamente, o seu "falar", ficassem registadas para a posteridade... 

Para além do desaparecimento físico dos seus progenitores,  dos seus vizinhos e dos seus conterrâneos dos seus pais, o autor está, de certo modo,  a tentar prevenir, ou amortecer, de algum modo, os efeitos, avassaladores, da passagem do cilindro compressor da globalização... e a perda da identidade açoriana, em geral, e mariense, em particular.

Pequenas comunidades como as ilhas do arquipélago dos Açores estão de há muito sujeitas à influência de multiplos factores de "aculturação" externa... A periferia geográfica,  a colonização do território, a pesca da baleia, a emigração para a América do Norte, a presença militar norte-americana, os contatos com o exterior,e, mais recentememte,  os meios de comunicação, as novas tecnologias de informação e comunicação, a integração europeia, o desenvolvimento económico, o turismo, etc., tudo isso, teve e tem influência na cultura do povo da ilha, a sua maneira de ser, de estar e de falar.  

Santa Maria, é bom recordar, é a ilha mais  oriental e mais meridional do arquipélago, a mais antiga do ponto de vista geológico (mais de 8 milhões de anos) e a primeira a de ser descoberta (em 1427).

O autor dedica um subcapítulo aos "americanismos" no léxico mariense (pp. 97-110). Distingue-se três períodos que terão sido marcantes na formação desses "americanismos" ou "calafonismos" (de "calafona", termo de origem obscura, que designa, nos Açores, na linguagem informal, o emigrado que retorna aos Açores, em especial o que vem da América):

(i)  a emigração para os EUA  no últmo quartel do séc. XIX e primeiro do séc. XX;

(ii) a instalação, na ilha, de uma base militar de apoio às Forças Aliadas já no final da II Guerra Mundial (fins de 1944);

(iii) a emigração para os EUA e para o Canadá a partir da década de 50 do século passado, e que levou à redução da população, em menos de  três décadas, em cerca de metade (, tendo a ilha  hoje cerca 5,5 mil habitantes, segundo o censo de 2001).

"Embarcados, às vezes clandestinamente, em barcos baleeiros ou navios cargueiros, tiveram de enfrentar dias ou meses, e mesmo, anos muito difíciais no mar antes de desembarcarem nas costas do novo mundo (...). Uma vez na América, trabalhavam duramente, a troco de um salário módico, e viviam em condições bastante precárias (pág. 97).

Parte desta vaga de gente migrante voltou para a ilha, com algum pé de meia, logo no virar do século XIX.  Um número mais significativo de famílias de Massachusetts tiveram de  regressar na sequência da Grande Depressão de 1929-1933. Analfabetos na sua maior parte, estes emigrantes que retornam à ilha natal,  vêm "acalafonados" e vão "enriquecer" o léxico popular local com vocábulos e expressões do inglês falado na América.

Uma segunda influência é a dos militares norte-americanos estacionados na ilha a partir de finais de 1944, em número da ordem de algumas boas centenas.

"Desde os primeiros tempos, o nosso emigrante, que, na quase totalidade, não possuía qualqier conhecimento da língua inglesa, foi apreendendo uma série de vocábulos deste idioma, sobretudo chavões, que exibia insistentemente nas suas visitas à iha" (pág. 100).

Feito este pequeno enquadramento, o autor elenca mais de uma centena de "americanismos" ou "calofonismos" que, no entanto, têm tendência para irem desaparecendo lentamente do falar quotidiano, nomeadamente entre as camadas mais jovens, escolarizadas.

3. Aqui vão, a título exemplificativo (e não exaustivo, a lista do autor são 121 entradas), e com a devida vénia, alguns vocábulos e expressões, que também ilustram bem a capacidade de adaptação e o espírito prático e expedito do mariense que passou por terras do tio Sam e que "aportuguesou" o inglês do dia a dia... Há termos "deliciosos", corruptelas do inglês, e que têm de ser ouvidas com o sotaque mariense. Entre parênteses, a origem em inglês. 


Aisiulieira ("I'll see you later"): até logo, vemo-nos mais tarde...

Alvarozes ("overall"): fato-macaco que se veste por cima de outra roupa;

Àpestéres ("upstairs"); o andar de cima;

Beibicêra ("babysitter): aquela que toma conta de crianças;

Bisi ("busy"): ocupado, atarefado;

Biznas ("business"): negócios, assuntos;

Camâne ("come on"). vamos lá embora;

Chança ("chance"): oportunidade;

Chape ("shop"): fábrica, oficina;

Côrte ("court"); tribunal;

Dampo ("dump"); lixeira;

Drinque ("drink"): bebida;

Esquiusemi ("excuse me): peço desculpa;

Estôa ("store): loja, armazém;

Faite ("fight"): luta, briga;

Frijueira ("refrigerator"): frigorífico;

Friza ("freezer"): congelador;

Garbitche ("garbage"): lixo:

Jampar ("to jump"): saltar;

Landre ("laundry"); lavandaria;

Lóia ("lawyer"): advogado;

Màquêta ("market"): mercaddo;

Mechim ("machine"); máquina;

Maneija ("manager"): gerente, gestor;

Naice ("nice): bonito;

Naife ("knife"): naavalha;

Ófas ("office"): escritório, oficina;

Pari ("party"): festa;

Perigôde ("very good"): muito bom;

Pinche ("pension"): pensão de reforma;

Pinotes ("peanuts"): amendoim;

Pinhos ("pins"): alfinetes de pendurar roupa;

Raivar ("to drive"): guiar, conduzir um carro;

Râladeis ("holidays"): férias (, mais usado pelos emigrantes canadianos);

Ritaia ("retired"):  reforma, reformado;

Sanababicha ("son of a bitch"):  filho da mãe;

Sinó ("snow"): neve;

Spicar ("to speak"): falar;

Tanquiú ("thank you"); obrigado;

Teicarizi ("take it easy"):  calma, devagar!;

Tèlaveija ("television"): televisão;

Trablas ("troubles): problemas, chatices;

Ueiramanète ("wait a minute"): espera um minuto;

Vaqueichas ("vacations"): férias... 


(Continua) (**)
_________________

Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriores :


18 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22819: Notas de leitura (1399): "O Povo de Santa Maria, seu falar e suas vivências", 2ª edição revista e acrescentada (2021), por Arsénio Chaves Puim, um caso de grande sensibilidade sociocultural e de amor às suas raízes (Luís Graça ) - Parte I: "Muitos parabéns, muitos parabéns, muitos parabéns!"

(**) Último poste da série > 7 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22975: Notas de leitura (1417): “A crise alimentar e o estado socialista na África Lusófona”, por Rosemary E. Galli, artigo publicado na Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 6 e 7, Janeiro/Dezembro de 1987 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22976: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte II: A chegada dos guerrilheiros, outrora "bandidos", agora "heróis da libertação da Pátria"...A (mu)dança das bandeiras... Os meus novos amigos, balantas...



Guiné > Região do Oio > Mansoa > CCS/BCAÇ 4612/74 (12jul74-15/10/74) > 9 de setembro de 1974 > Cerimónia da entrega (simbólica) do território aos novos senhores da Guiné, o PAIGC, e da retirada, ordeira, digna e segura, das últimas tropas portuguesas. Mansoa, em pleno coração do território, na região do Oio, serviu perfeitamente para esse duplo propósito...É uma foto  histórica, em que se vê o nosso coeditor Eduardo Magalhães Ribeiro, então fur mil op esp / ranger, a arriar a bandeira verde-rubra. (O MR é membro da nossa Tabanca Grande, desde 1/11/2005 (*)...

Foto (e legenda): © José Lino Oliveira (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Trinta e seis anos da "troca de bandeiras" , em 1 de setembro de 1974... Visita do Cherno Baldé e família > Local onde estava situado o pau da bandeira; à esquerda as ruínas do forno de cozer o pão que fazia as delícias do "Chico, menino e moço"


Foto (e legenda): © Cherno Baldé (2010).
Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte II (*)


(iii) A chegada dos guerrilheiros


Passaram-se dias e semanas e, quando menos se esperava, foi anunciada a chegada dos guerrilheiros que devia acontecer para os lados de Oio/Caresse, zona donde se esperava que viessem, naturalmente. Toda a aldeia saiu para assistir à chegada mas, era falso alarme. No sítio indicado não estava ninguém.

Passados alguns dias, foi feito o mesmo anúncio mas, já metade da aldeia estava na dúvida e preferia esperar pela confirmação. Desta vez, efectivamente, estavam lá e, não era do lado de Caresse (oeste) mas do lado sul (Bairro Mandinga de Morcunda), donde menos se podia esperar. Tratava-se de uma táctica da guerrilha, simples diversão ou prudência de quem ainda não acreditava na sua sorte? Talvez fosse tudo isso ao mesmo tempo.

Rapidamente a notícia correu pelas aldeias da redondeza, as pessoas afluíram em massa. Crianças, jovens, mulheres, velhos; todos queriam ver a gente do mato, aliás, os “bandidos” agora convertidos em heróis da libertação nacional. 

Depois de todas as campanhas de desinformação do regime colonial, o que vimos era simplesmente inacreditável. Afinal, eram pessoas normais, como nós, dos pés a cabeça. Não tinham rabos como os animais, nem chifres como imaginamos os diabos. Encontrámo-los, alguns sentados, outros de pé, dispersos debaixo da sombra das mangueiras. Cabeludos, magricelas, olhos vermelhos, uma expressão visual que se situava algures entre o homem e o animal.

Exceptuando as armas e os uniformes que traziam, eram exactamente iguais aos prisioneiros que tínhamos visto no quartel alguns anos antes (na altura a população civil era muito céptica quanto ao serem verdadeiros “Paigecistas” inclinando-se mais para a ideia de que seriam, quando muito, cortadores de chabéu, perdidos entre as remotas aldeias oincas no mato de Caresse).

Controvérsia à parte, aqueles prisioneiros, de facto, não estavam fardados e o aspecto esfarrapado, nauseabundo, mais metia dó que medo. Sempre que podíamos, metíamos algumas coisinhas por baixo das paredes de chapas que serviam de celas, com o nariz apertado entre os dedos. Porém, entre nós, nem todos partilhavam o mesmo sentimento e havia quem aproveitasse a ocasião para dar umas pisadelas nas mãos esfomeadas que apalpavam a terra e o ar à procura do abençoado pedaço de pão. Tinham fome.

  Quem são estes, os cubanos?  − perguntava alguém ao vizinho do lado. Sem resposta.

  São estes que nos metiam tanto medo!?  − comentou, incrédula, uma mulher fula que trazia ao colo uma criança, tendo no corpo apenas o pano amarrado até a cintura pondo a mostra os seios usados, elásticos, espalmados sobre o ventre (é uma pena o “nós Alfero Cabral” não ter passado por aqui).

  Não se iluda,  mulher, no mato, cada um destes bandidos vale por dez   explicou o Queta “chauffeur”, antigo companheiro do tenente Jamanca.

Os homens que se apresentaram eram poucos (um bigrupo?) e pareciam ser mais altos do que eram na realidade, como os corredores de fundo. O comandante era um homem de etnia mandinga, de meia-idade, alto e simpático que logo cativou as atenções, vindo a revelar-se um excelente orador.

Ele mudou os hábitos da aldeia. As suas reuniões de presença obrigatória não demoravam menos de 12 horas, o que lhe valeu a alcunha de Presidente Sékou Touré. Quando as pessoas eram convocadas, diziam às suas mulheres: “Mariama, prepare a comida de manhã cedo, porque vamos a reunião de Sékou Touré”. 

No decorrer das longas reuniões do Partido, aqueles que pediam para ir satisfazer algum necessidade fisiológica, mulheres inclusive, eram acompanhados por homens armados. Começávamos a colher os frutos da verdadeira independência bem à moda dos movimentos de libertação em África.

Os guerrilheiros usavam uniformes castanhos ou cinzentos (pontilhados de pequenas formigas pretas). Eram diferentes dos sarapintados que estávamos habituados a ver. Pareciam novos e os corpos magros, quase esqueléticos, particularmente dos fulas, nadavam dentro dos uniformes o que dava a sensação de que não estariam lá muito habituados a usá-los.

A maioria tinha nos pés sapatos de cor castanha, feitos de um tecido duro e resistente, amarrados com cordel. Eram leves e combinavam bem com a cor das fardas. Alguns deles usavam, ainda, plásticos simples comprados, talvez, no Senegal. Não havia muito rigor no fardamento. Os seus olhos, esses, eram muito vivos e penetrantes, em alerta permanente, com as armas ao alcance das mãos. Pela primeira vez, víamos com os nossos olhos, a famosa RPG7.


(iv) A atracção pela metrópole


Mais tarde, quando a retirada do que restava das tropas portuguesas já era iminente, um outro soldado, mecânico-auto, o Jorge, da companhia de Gadamael, ofereceu-me o livro que seria o primeiro da minha vida, cujo título era "Inglês sem mestre”,  sob um fundo de tiras azuis e vermelhas cruzadas.

Fiquei com vergonha de dizer que não o conseguia ler. Esta oferta tinha mexido comigo e tinha-me incitado a aprender a ler. Na época, não sabendo interpretar o seu conteúdo, ofereci-o ao meu irmão mais velho que estava mais avançado na escola e que o levaria consigo na sua primeira viagem de estudos a Portugal em 1980. Com ar muito triste e lamentando a nossa sorte, o Jorge disse-me naquele dia:

  Olha, Chico, nós vamos embora, os “turras” vão tomar conta disto e são capazes de matar a todos, se quiseres ir comigo eu falo com o teu pai.

  Não, nós vamos dar-lhes as nossas vacas e ficamos em paz  − respondi-lhe, rindo.

Não tinha reagido à sua oferta, como se não tivesse percebido, na realidade não estava interessado. Durante todo o tempo que passámos no quartel entre os portugueses, a informação que tínhamos da metrópole era muito escassa, dispersa, esporádica, idílica, feita principalmente de imagens de meninas brancas, cor da neve, anjos do céu, exibindo-se no jardim de Éden com os seus vestidos “volantes” (Cheira bem… cheira a Lisboa!), docemente embaladas pelo fado da Amália e o trepidante futebol do Benfica de Eusébio da Silva Ferreira, o Pantera Negra, mas era, apesar de tudo, um país de brancos.

A ideia de viver, de forma permanente, no meio dos brancos e suas esquisitices não me seduzia muito, pese o facto de gostar infinitamente dos seus frangos gordurosos, da batata inglesa, do bacalhau salgado e do cheiro dos chouriços vermelhos. (Alláh, o clemente e misericordioso, me perdoará por esta pequena fraqueza humana. ).

Mesmo supondo que eu quisesse ir,  de certeza que a minha avó não mo permitiria. Ela era o meu anjo da guarda e tinha horror aos soldados, com as suas orelhas vermelhas e seus modos libertinos. “Os brancos não respeitam a idade”, dizia. “Se não, como é que se explica que os chefes (os oficiais) sejam mais novos que os subordinados?”. A vista dos soldados, ela fugia e se entrincheirava dentro da sua palhota.

Entretanto, a sua neta, nascida em tempos de Guiné Melhor do seu único filho varão, passava horas a fio a namoricar, mesmo a porta, com um malandro de orelhas vermelhas que só aparecia envolto na escuridão da noite.

Mas, o verdadeiro motivo porque não fui tentado em viajar para a metrópole, estava ligado à forma de lá chegar. Tinham-nos informado, de fontes seguras, que a única forma de uma criança entrar no navio e fazer a viagem era estar metida dentro de um caixão como faziam com os periquitos ou outros animais de estimação. A minha ideia sobre o assunto era clara e firme. Viajar metido num caixão era não, nunca e jamais. Podiam ficar com todas as sardinhas da Europa.

No fundo, também, não acreditava muito nas afirmações do meu amigo Jorge,  pois os germes do nacionalismo que tinham conquistado terreno no inicio dos anos 70 e a propaganda que tinha antecedido a entrada do PAIGC já estava a fazer efeito na consciência de muitos guineenses que não estavam seriamente comprometidos com a guerra.

O meu caso não era isolado pois, mesmo entre as pessoas adultas e que tinham servido na guerra e estando agora desmobilizadas como o Mamadu Baldé (mais conhecido por Mamadu Senegal, antigo chefe de milícias, originário do Senegal, citado numa das narrativas de José Cortes), e muitos outros naturais da zona encontravam-se no meio das pessoas que foram receber os guerrilheiros, num ambiente de festa e confraternização.

Depois da primeira visita, vieram mais outros grupos vindos de outras “barracas” (acampamentos), recebidos sempre com o mesmo entusiasmo pela população civil e militares portugueses e, no meio disso tudo, podia-se notar um facto bem curioso, a meu ver. Pela forma como os recebiam e se congratulavam, trocando pequenos presentes e “lembranças”, os soldados portugueses pareciam muito mais satisfeitos com o fim da guerra do que os guerrilheiros.

Talvez pela primeira vez na história dos conflitos armados, um dos beligerantes que, para todos os efeitos, tinha perdido a guerra, parecia estar feliz por não ter vencido. Era compreensível mas nem por isso deixava de ser intrigante.

Na minha infância, havia duas classes de pessoas as quais nutria uma grande admiração e cujo meio frequentava com muito gosto: Era a dos atletas/lutadores tradicionais (habitualmente fulas pretos) e a dos soldados (de todos os tipos), ambos apresentando características muito semelhantes no que se refere ao seu comportamento: Irreverência congénita, ousadia e provocação, ausência de pudor e inclinação para violar regras sociais pré-estabelecidas e/ou velhos tabus, a fraqueza pelas mulheres e sobretudo a predisposição constante para criar situações ridículas, hilariantes.

Lembro-me, a propósito, de uma conversa entre dois milícias em que um deles explicava ao outro, de forma convincente, que aos brancos não lhes interessava o fim das guerras, de todas as guerras e, acrescentava:

- Na terra deles há uma coisa pequena do tamanho de uma agulha que era capaz de arrasar todo o território da Guiné e matar todos os terroristas num abrir e fechar de olhos.

Agora, eu sei que ele se referia as trágicas bombas largadas sobre Hiroshima e Nagasaki. O segundo milícia, mais lúcido, tinha replicado ao primeiro:

- Deus nos livre, se isso acontecesse, tu ias esconder o teu traseiro fedorento onde, na cova de um porco-espinho?!

Perante a gargalhada geral dos presentes, a conversa que tinha começado de forma amena, terminara em pancadaria. Quem teria razão?


(v) A (mu)dança das bandeiras

Na manhã do dia 1 de Setembro de 1974, os poucos soldados que ainda estavam 
presentes (um pelotão da 2ª CCaç / BCAÇ 4514/72,, perfilaram no centro do aquartelamento para cumprir o último acto militar da entrega do quartel de Fajonquito. De um lado estavam os portugueses, doutro, os guerrilheiros. Frente a frente, pela última vez. Todos fardados com rigor. Cada grupo com a sua bandeira. As cores não eram muito diferentes, vermelha, verde e amarela. Só divergiam nos motivos, na origem e no destino. Os “ex-bandidos” também estavam distintos nesta derradeira cerimónia de passar o testemunho.

Notava-se que na fila dos portugueses, não havia muita diferença, pareciam ter sido escolhidos a dedo, altura mediana. Já do lado dos nossos, a disparidade era gritante, enquanto uns eram baixinhos, outros eram desmesuradamente altos. Como na música e na dança, na África tropical a desordem é só aparente.

Da boca do oficial saíram, de forma vigorosa, os “firme” e “ombrós-arma”, acompanhados de movimentos da tropa a condizer, a corneta soou estridente seguida pelo coro dos cães da aldeia em protesto, as armas foram apresentadas a altura dos peitos soerguidos. 

Primeiro, arriaram a bandeira portuguesa, lentamente no início, mas quando ia quase a meio do percurso, contrariando o ritmo habitual, com largos esticões o soldado fê-la cair rapidamente, atirando o pano em cima dos ombros, enquanto desfazia o nó. O gesto denunciava alguma impaciência. Depois, foi a vez da nova bandeira subir e flutuar ao vento. Garanto-vos que estávamos ansiosos e orgulhosos.

O guerrilheiro encarregue do acto deu dois passos a frente, encaixou a bandeira na corda e puxando uma das pontas, fê-la subir, normalmente. E quando estava quase a chegar ao topo, por qualquer razão, estas se emaranharam entre si deixando a bandeira presa, não podendo subir nem descer. Foi precisa uma pequena ajuda do soldado português para acabar com a trapalhada das cordas e terminar, finalmente, com a parada (seria isto um sinal para o futuro?).

Depois houve uma troca de apertos de mãos de parte a parte. Havia uma pequena assistência de populares do lado de fora dos arames farpados. Não tinham sido convidados.

Olhando para trás no tempo, esta cena onde uma dúzia de soldados está perfilada frente a frente, procedendo a passagem simbólica do poder de uma terra que tinha sido administrada durante muitos anos por militares, na ausência de qualquer autoridade ou representantes da sociedade civil, desperta em mim, pouco a pouco, a sensação de que a Guiné, a nossa querida Guiné, de facto, não tinha sido preparada para viver sob um regime civil com base em princípios de governação democrática.

Por outras palavras, a população da Guiné foi, e durante muito tempo, preparada para conviver com as ditaduras militares. Não surpreende muito, a ordem da sucessão parece inequívoca. De distrito militar repressivo (princípios do século XX), o território passou para uma província militarizada e em guerra (1963/74) e desta seguimos directamente para uma ditadura de guerrilheiros impreparados, ávidos de poder e sedentos de sangue. 

Não existe e nunca existiu uma tradição de poder civil, situada acima dos grupos étnicos. Neste aspecto, em particular, as ex-colónias francesas estavam ou ainda estão a milhas de avanço. As imagens filmadas sobre as independências desses países são disso um facto bastante revelador, pondo de parte o caso da Algéria.


(vi) Os meus amigos guerrilheiros, balantas


Foi preciso esperar pela terceira vaga de guerrilheiros, sempre em bigrupos, para finalmente conseguir fazer alguma amizade. Eram dois combatentes de etnia Balanta, naturais de Banta (região de Quinara), o Dinis e o Marcos. Pelo menos é o que me tinham dito.

Se os portugueses me tinham ensinado as primeiras letras de forma desinteressada, foi com esses jovens Balantas que acabei por assumir a real necessidade de aplicar-me aos estudos a fim de melhor poder contribuir para a construção da nossa Pátria (um vocábulo novo, com consonância especial, na altura).

Com os soldados portugueses tinha começado a moldar um instrumento, uma ferramenta de pesquisa e de trabalho mas foram estes guerrilheiros do PAIGC, esfarrapados e desnutridos que, imbuídos do espírito genuíno de libertação e emancipação de todos os povos da Guiné sem distinção, na altura, me ajudaram na definição do objectivo da minha escola. O que antes era longínquo e desconhecido, passou a ser conhecido e desejado.

Em casa o meu pai recebeu-os efusivamente, tirando o chapéu da cabeça e curvando-se em sinal de respeito antes de lhes apertar as mãos, como sempre fazia diante das autoridades. O Dinis, calma e serenamente, explicou-nos que estes gestos já não se justificavam pois, todos eles eram filhos do povo.

 Nós lutamos para acabar com a humilhação do nosso povo em geral e dos nossos pais em particular, homens e mulheres, foi isso que Cabral nos ensinou e é isso que vamos transmitir aos nossos irmãos mais novos.

Ele falava olhando para mim, meigamente.

Na estrutura militar dos guerrilheiros, havia o comandante e o adjunto do comandante, mas a partir dali já era difícil descortinar a sequência hierárquica, tanto para cima como para baixo na cadeia. Eram sinais de uma desordem latente donde podia nascer a anarquia que viria ao de cima, anos depois.

O Dinis era um combatente simples, um aldeão que, não sendo muito instruído era relativamente bem informado sobre as ideias e conceitos políticos da época. As suas palavras eram simples e claras e com ele iniciei a minha aprendizagem na escola do pensamento polítíco que começava com Cabral e terminava em Marx e Engels ou vice-versa.

Nesta viagem de iniciação político-ideológica, o Lenine era a criança prodígio que tinha encontrado o livro de um velho sábio (Marx) e graças ao qual ele tinha revelado ao mundo as ideias revolucionárias de como tornar o mundo mais justo, mais progressista, apesar das contrariedades criadas pelas forças reaccionárias da direita capitalista (os demónios). “Foram as ideias contidas nesse livro antigo que, também, permitiram a libertação do nosso povo, através de Amílcar e seus companheiros”, concluía Dinis.

No entanto ele não sabia dizer se, eventualmente, Cabral teria encontrado com o jovem Lenine, quando foi a Moscovo, à procura de tais ideias. Ele se defendia, dizendo: “Tu és jovem e já bastante avançado na escola, depois, quando fores para a União Soviética, perguntas a eles para saber, eu não sei, não estive lá, sou um simples combatente”.

Saberia mais tarde que Cabral tinha nascido no ano de 1924, no mesmo ano em que morria o líder dos sovietes, o Lenine. O mais importante aqui não era a forma mas sim o conteúdo.

A passagem dos guerrilheiros por Fajonquito foi breve, mas antes de partir, desmantelaram completamente o quartel, onde nunca chegaram a se instalar verdadeiramente, seja pelo pobre número de efectivos ou por outras razões desconhecidas. A atenção estava, sobretudo, concentrada sobre Canhámina e os caminhos de acesso à fronteira com o Senegal.

Quanto ao resto, os olhos atentos dos comissários políticos se encarregariam de velar. O fim do quartel representou, para a aldeia, o inicio da escuridão, a noite, com o desaparecimento do único grupo gerador da localidade. Ninguém tinha pensado nas consequências, aliás, nem sequer tinham dado à população a possibilidade de pensar.

Mais tarde soube que o Dinis e o Marcos se tinham voluntariamente desmobilizado e regressado para a sua aldeia natal onde continuariam a trabalhar com os jovens da sua tabanca, ajudando na recuperação das bolanhas abandonadas durante a guerra e continuando a sensibilização dos mais novos sobre os ensinamentos de Cabral no meio de histórias da luta de libertação nacional para a qual tinham dado o melhor da sua juventude.

No ano seguinte, após ter concluído o ensino primário, eu cumpriria a promessa feita ao Dinis de continuar os estudos na cidade, mais precisamente no ciclo preparatório de Bafatá,  que tinha sido aberto poucos anos antes. Já não era somente a fome e a batalha pelo reconhecimento do grupo que me impeliam para a frente mas, também, a fome pelos livros, pelo saber, pensando, no meu íntimo que a única forma de voltar a reencontrar os meus divertidos e irreverentes amigos brancos era pela via da escola.

Antes porém, de fazer a minha primeira viagem a Europa em 1985, mais precisamente à URSS, tinha ido à tabanca de Banta, no sector de Empada, à procura dos meus velhos camaradas de 1974. Na localidade, esperava-me uma pequena surpresa, pois, ninguém se lembrava dos antigos combatentes do PAIGC com os nomes de Dinis e/ou Marcos.

Penso que teria acontecido uma dessas práticas muito comuns entre os Guineenses das zonas rurais, de usar nomes (cristãos, logo civilizados) fabricados para o momento e a ocasião,  aos quais podiam livrar-se mais rapidamente que um camaleão muda as suas cores.  Na aldeia, teriam voltado aos seus verdadeiros nomes da terra, ocupando os assentos que as suas idades sociais lhes reservavam dentro da comunidade (que não coincidiam necessariamente com a idade biológica), animando as festas dos “ irãs” que habitam os grandes poilões da floresta sagrada do sul.

No caminho de regresso à cidade, perguntava-me a mim mesmo se eles existiram de facto ou se tudo não passara de pura imaginação do espírito fértil de uma criança que queria acordar cedo demais?!

Fajonquito, 17 de Junho de 2010

Cherno Baldé (**)

[ Revisão, fixação de texto, adaptação, subtítulos, para efeitos de publicação neste poste: LG]

(Continua)

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Guiné 61/74 - P22975: Notas de leitura (1417): “A crise alimentar e o estado socialista na África Lusófona”, por Rosemary E. Galli, artigo publicado na Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 6 e 7, Janeiro/Dezembro de 1987 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Fevereiro 2019:

Queridos amigos,
Muitos dos sonhos e promessas dos líderes do PAIGC revelaram-se impraticáveis, Rosemary Galli estudou aprofundadamente o modelo de desenvolvimento rural seguido na colónia portuguesa e depois, nos regimes de Luís Cabral e Nino Vieira, disseca as lógicas de funcionamento, o que os líderes do PAIGC pretendiam e o que rotundamente falhou no modelo produtivo e exportador, como recaiu sobre os camponeses o ónus da reconstrução e como estes viraram as costas ao sistema estatal. É preciso ter investigado muito para sintetizar e tirar as conclusões de estratégias que falharam e que, pior do que tudo, comprometeram o desenvolvimento rural da Guiné-Bissau no médio a longo-prazo.

Um abraço do
Mário



A economia guineense: Do desenvolvimento colonial a Nino Vieira (2)

Beja Santos

Devemos à investigadora norte-americana Rosemary Galli uma poderosa análise do desenvolvimento rural da Guiné-Bissau, as suas pesquisas e reflexões são altamente fundamentadas e profundamente incómodas para as decisões políticas tomadas por sucessivos governos guineenses depois da independência. Vimos no texto anterior um resumo do quadro histórico da agricultura na Guiné-Bissau a partir da colonização portuguesa e da lógica que imperou no Estado Novo.

A guerra de libertação nacional, como é óbvio, condicionou o modelo produtivo e, consequentemente, o modelo exportador. Durante a guerra houve migração em grande escala: ainda hoje não se sabe ao certo o número daqueles que fugiram para o Senegal e para a Guiné-Conacri; dezenas de milhares foram para Bissau; constituíram-se reordenamentos que, de algum modo, alteraram o figurino das produções agrícolas; e uma grande quantidade de jovens abandonou as suas casas para se juntar aos combatentes pela libertação; houve bombardeamentos dos diques e invasão dos arrozais pela água salgada.

A maior parte do peso da reconstrução do pós-guerra recaiu sobre os camponeses: a reparação de diques exigiu capital e mão-de-obra em grandes quantidades; foi preciso passarem alguns anos até a água das chuvas dessalinizar os campos de arroz; os camponeses não tinham economias e contaram com pouca ou nenhuma ajuda do Governo. O investimento do Governo em infraestruturas económicas foi mínimo. Entre 1975 e 1980, quase não houve qualquer extensão do sistema rodoviário. O olhar de Rosemary Galli vai em todas as direções, o seu balanço sopesa o sistema de transportes, as infraestruturas, o abastecimento e os preços. Lembra que o melhoramento do sistema fluvial teria representado uma grande ajuda para o setor camponês das zonas orizícolas do sul. Antes do século XX a maior parte do comércio fazia-se através das rias, depois da independência quase nada foi feito para revitalizar este sistema de comunicação. A frota era velha e encontrava-se principalmente nas mãos do Estado, os autocarros e camiões propriedade do Estado cedo ficaram inoperacionais e com falta de manutenção apodreceram. 

O PAIGC procurou substituir com a sua própria rede de lojas a Casa Gouveia e as casas comerciais autorizadas pelo Governo em cada área que libertava. Depois da guerra os chamados Armazéns do Povo tomaram conta da Casa Gouveia e de uma sociedade comercial de capital estatal e privado, a SOCOMIN, para complementar as atividades dos Armazéns do Povo. O sistema revelou-se extremamente inconveniente, supercentralizado, ineficiente e corrupto. E, pior do que tudo, não chegava de facto aos produtores rurais. Atribui-se as causas da ineficácia a uma política de importações inadequada, à inexperiência dos gestores do sistema e a uma má distribuição dos produtos entre os diferentes setores. E a política de preços foi determinante para o insucesso. Embora o PAIGC tivesse elevado os preços ao produtor após a independência, estes não acompanharam a subida dos preços dos poucos produtos importados que chegavam ao campo. O poder de compra dos camponeses em 1983 era menor do que na altura da independência. Uma barra de sabão importado custava cerca de um dólar no mercado oficial. Isto significava que o seu preço para os camponeses era 3,5 kg de arroz ou 5 kg de amendoim. Para um camponês, três quilos de arroz equivaliam à alimentação de uma semana. Uma lata de leite em pó de 2,5 kg custava cerca de 10 dólares ou quase 37 kg de arroz e/ou 49 kg de amendoim.

Para a investigadora, a política agrícola seguida na Guiné-Bissau a seguir à independência revelou a continuação de muitas das políticas do Estado Novo e fundamentalmente pelas mesmas razões: aumentar as receitas para pagar à administração estatal e para investir na indústria. O malogro foi de tal ordem que foram destruídas as oportunidades a longo-prazo para o desenvolvimento agrícola, os produtores exportavam à candonga, levaram os seus produtos para fora do país. O golpe militar de novembro de 1980 prometia alterar todo este estado de coisas, o Conselho da Revolução que tomou o poder pediu ao Governo uma retificação da sua política. A reestruturação que se pretendeu imprimir em 1982 assentava em que as importações ficariam sob o controlo do Estado através da Companhia de Comércio Externo, seguir-se-ia uma política de importações em que 80% das divisas iriam para itens de subsistência básica e seriam geridas pelo monopólio estatal; os Armazéns do Povo e o SOCOMIN conheceriam restruturação, um para tomar conta do comércio externo e a outra o comércio interno, ficando o comércio a retalho completamente nas mãos de comerciantes privados.

A conclusão da investigadora é implacável: o que veio a acontecer foi o afastamento dos administradores estatais, perderam o contato direto com os produtores; o novo Governo fez muitas mudanças de pessoal nos anos de 1980 para combater a corrupção, mas era evidente que a estrutura do poder não tinha mudado e o mesmo se pode igualmente verificar na política de câmbios, tudo falhou com as sucessivas desvalorizações da moeda. “Investigações realizadas pela autora sobre os dois principais projetos de desenvolvimento orizícola revelaram que parte do equipamento e parte do arroz dos projetos já tinham sido trocados pelos bens básicos que faltavam na área. A investigação sobre o principal projeto de desenvolvimento do amendoim mostrou que a introdução da tração animal não produziu o crescimento das culturas esperado. Pelo contrário, permitiu que os jovens partissem mais cedo do que o habitual para irem participar na colheita de amendoim no Senegal. A emigração, quer temporária quer permanente, e o contrabando, constituem os sinais de uma luta passiva contra as políticas de acumulação primitiva que prometiam tanto mas deram tão pouco”.

Enfim, conclusões bem tristes para um país a quem fora prometido uma libertação com melhores condições de vida.

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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22967: Notas de leitura (1416): “A crise alimentar e o estado socialista na África Lusófona”, por Rosemary E. Galli, artigo publicado na Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 6 e 7, Janeiro/Dezembro de 1987 (1) (Mário Beja Santos)

domingo, 6 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22974: In Memoriam (426): Paz para a alma de todos os nossos camaradas que morreram no desastre de Cheche, faz hoje 53 anos...Foram 47 vidas ceifadas na flor da idade... Estupidamente!... (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS / BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)




Infografia: Jorge Araújo (2019) (*)


1. Mensagem de Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM,  CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69):


Data - 6 frev 2022 18:26  
Assunto - Desastre do Cheche

Luis, boa tarde

Lembrei me agora que faz 53 sobre o desastre do Cheche,  com a jangada,  que ninguém ainda hoje sabe o que aconteceu na realidade.

Foram 47 vidas ceifadas na flor da idade. E estupidamente!  Da CCAÇ 2405 / BCAÇ 2852 e da CCAÇ 1790 / BCAÇ 1933.

O Cap José Aparício, comandante da nossa CCAÇ 1790,  já não nos podes contar, dizem que est
á doente, com doença degenerativa de evolução prolongada.

Paz para a alma de todos. (**)
.
Luís, se puderes fazer uma referência agradecia.

Saúde para todos.

Virgílio Teixeira (***)
_________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 15 de maio de  2019 > Guiné 61/74 - P19788: Jorge Araújo: Ensaio sobre as mortes por afogamento no CTIG: Os três acidentes na hidrografia guineense (Parte III)


(***) Vd. poste de 6 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19474: Efemérides (298): A minha homenagem às 47 vítimas da tragédia do Cheche, há 50 anos, os mortos da CCAÇ 2405 / BCAÇ 2852 e os mortos da CCAÇ 1790, do meu batalhão, BCAÇ 1933: que Deus e a Pátria jamais os esqueçam (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS / BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)