Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 29 de julho de 2022
Guiné 61/74 - P23470: Nota de leitura (1469): Sobre Graça Falcão, a melhor fonte será porventura "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", de Armando Tavares da Silva; Caminhos Romanos, 2016 (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Janeiro de 2020:
Queridos amigos,
Há algo de assombroso no percurso curricular de Graça Falcão, um condecorado com a Torre e Espada que irá ver o seu nome bem maltratado, no campo dos negócios, das relações políticas e sociais, pouca gente merecerá tanta hostilidade na Guiné como ele. Está ligado a um grande desastre no Morés, de onde escapou por uma unha negra. Como responsável pelo presídio de Farim, elaborou duas cartas topográficas que, assegura António Carreira no estudo que aqui é referenciado, é um documento memorável e indispensável para estudar aprofundadamente as rotas da expansão da islamização na Guiné.
Um abraço do
Mário
Graça Falcão, uma das figuras mais espantosas que passaram pela Guiné
Beja Santos
Sobre Graça Falcão, a melhor fonte será porventura "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", de Armando Tavares da Silva, Caminhos Romanos, 2016. Tivesse eu condições e metia-me a estudar algumas figuras de traços mirabolantes ou com elevada carga enigmática: Graça Falcão, Marques Geraldes, Rafael Barbosa ou Osvaldo Vieira. Graça Falcão, alferes, é transferido de Angola para a Guiné em abril de 1892, em cumprimento de uma medida disciplinar determinada pelo Governador-geral de Angola. Alferes da Bateria de Artilharia de Montanha, é graduado em tenente a 1 de maio de 1894 e em 23 de maio é nomeado Comandante do Presídio de Farim. Será nessas funções que elaborará duas cartas topográficas (1894-1897), com alto significado, pois dão alguma compreensão à expansão do islamismo no rio Farim, António Carreira publicará um estudo alusivo, aqui se fará referência. Em abril de 1895, a pedido dos Balantas de Barro, Graça Falcão vai a esta localidade, solo que nunca tinha sido pisado por autoridade alguma portuguesa, deixa a bandeira e lavra o competente auto de vassalagem. Em 22 de setembro de 1896 é Cavaleiro da Torre e Espada pelos serviços prestados ao reaver três embarcações em poder dos gentios do Biombo e da ilha de Jata. Será louvado por Portaria Régia pelo bom resultado de uma expedição ao Oio. Em 1897, dá-se uma desastrada incursão de Graça Falcão no Oio, ele andara por aqui no ano anterior. O Tenente Herculano da Cunha relatará as peripécias como Graça Falcão conseguiu escapar vivo, andou sozinho fugitivo, embora Herculano da Cunha, nos seus relatórios, o desse por morto. Irá ressuscitar, abandona a vida militar, entrega-se a negócios, suscita ódios, são histórias dignas do mais vibrante romance de aventuras. Encontrei correspondência do responsável do BNU na Guiné considerando-o homem de mau caráter e mau pagador. Postos estes episódios de uma carreira mirabolante, vamos ao documento de António Carreira.
Ele começa por afirmar que a Guiné esteve sempre sujeita à influência dos movimentos desencadeados pelos dirigentes islâmicos, tanto do Futa-Toro como do Firdu e do Futa-Djaló. E faz uma resenha histórica:
“A luta travada em África pelos povos islamizados com vista à submissão dos animistas à doutrina do Alcorão data de há cerca de nove séculos. Nesse decurso de tempo, conheceu fases de progresso, de estagnação ou mesmo de retrocesso, e fases de grande e espetacular progresso.
Sabe-se com segurança que os povos de Sonin e de Mandé atingiram a área da nossa Guiné nos séculos XIII ou XIV. Admite-se como certo que estes dois grandes grupos, ao fixarem-se no Alto Geba (no Cabo, N’Gabu ou N’Gabu-El, como era então conhecido) e no Brasso (ou Berassu), eram, ainda, na sua totalidade, animistas.
No início do século XVIII, nesta área, só existia um culto: o animista. Os povos que o seguiam estavam distribuídos da seguinte forma:
1.º Nas duas margens do Casamansa: Felupes, Baiotes, Banhuns, Cassangas e Balantas (os atuais Diolás dos Franceses), Soninqués, Mandés e Fulacundas (os nossos Fulas-Forros);
2.º No Futa-Djaló: a) Os denominados Djaló-Nkas, os mestiços de Mandés, sobretudo Sossos; b) Os descendentes de camadas de origem peul ou pulô, que em data imprecisa, mas por volta de 1500-1511, invadiram o Futa. Os parentes mais próximos destes Pulis existiam em estado de relativa pureza étnica na primeira vintena deste século no Ferlo e no Futa-Toro, mas, tal como os de Futa-Djaló, muitos ainda inteiramente animistas”.
A islamização acentuou-se no Futa-Toro, e encontrou sérias resistências no Futa-Djaló. Houve lutas terríveis que duraram até ao final do século XVIII ou mesmo no início do XIX. Foram dados como submetidos e dominados os animistas do Futa-Djaló e então os Fulas dividiram o território numa espécie de províncias religiosas. António Carreira disserta sobre esta organização religiosa e o seu controlo. E diz mais adiante que em cerca de 1900 se deu a penetração do Casamansa, na Guiné Portuguesa e no Futa-Djaló de Marabus procedentes da Mauritânia. A expansão islâmica espalhou-se por uma boa parte da colónia. “O Boé, designadamente a povoação de Dandum, passou a ser um dos principais refúgios dos familiares e partidários de Alfá Iaia. Muitos deles encaminharam-se, através da nossa Guiné, para o Casamansa e Gâmbia”. Estava consumada a islamização da região Leste e também de Farim.
Carreira, que publica este trabalho em 1963, recorda que percorrera as duas margens do rio Farim a pé há mais de quarenta anos, fizera ali vários recenseamentos fiscais. Nessa época, os Balantas só em mínima parte se tinham deixado mandinguizar, ou seja, islamizar. E é muito interessante o que escreve a seguir:
“Em outro trabalho já publicado tive a oportunidade de esclarecer que a designação Balanta-Mané deriva da junção do etnónimo Balanta do apelido, de origem mandinga, Mané. Parece que foram os cristãos que o difundiram com o intuito de individualizar os Balantas integrados na cultura Mandinga e para não se confundirem com os que se conservavam apegados às tradições próprias do grupo. Como o apelido Mané era o mais generalizado no setor Mandinga confinante com os Balantas, estes, quase em massa, mal se mandinguizavam, adotavam-no espontaneamente como segundo nome. Portanto, o sinal mais concludente da integração do Balanta na cultura Mandinga era o uso deste apelido”.
Depois de ter feito referência às confrarias islâmicas do Senegal e do Futa-Djaló e a sua influência no território da colónia, alude ao estudo da difusão do islamismo entre os povos da Guiné. Diz que falta documentação adequada. E é então que informa que Teixeira da Mota lhe facultara duas cartas topográficas da região de Farim elaboradas pelo oficial do Exército Jaime Augusto da Graça Falcão. Diz que o conheceu e o apreciou e que estes documentos revelam esboços topográficos que dão uma imagem bastante exata do que era, então, a distribuição da população pelas duas margens do rio Farim. Segue-se uma enumeração exaustiva e interpretativa dos dois mapas e conclui vaticinando que este modesto subsídio sirva para despertar a ideia da elaboração de um estudo sistemático do processo da islamização das gentes da Guiné.
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Nota do editor
Último poste da série de 25 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23460: Nota de leitura (1468): “A desmobilização dos combatentes africanos das Forças Armadas Portuguesas da Guerra Colonial”, por Fátima da Cruz Rodrigues, na revista Ler História, n.º 65 de 2013 (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P23469: Ser solidário (247): Pedido de apoio para o transporte de 150 carteiras escolares de Lisboa para Bissau, destinadas à Escola Privada Humberto Braima Sambu
1. Mensagem de Avelino Vaz, Director da Escola Privada Humberto Braima Sambu de Bissau, com data de 15 de Julho de 2022:
Pedido de apoio
Escola HBS escolahbs3@gmail.com
Caros,
Somos um grupo de professores a partir da Guiné Bissau. Abrimos uma escola para ajudar alunos da nossa comunidade, Bairro Militar-Plak 1, localizada nos arredores de Bissau.
Entretanto, enfrentamos problema de falta de carteiras/mesas nas salas de aula há 2 anos. Tentámos, sem sucesso, solucionar o problema através do nosso governo e empresas nacionais.
Preocupados com a situação, pesquisamos na internet sobre as entidades internacionais que podem nos apoiar nesta questão e encontramos o Colégio Pedro Arrupe, e esse nos doou 150 carteiras.
De agora em diante, o nosso maior desafio é fazer chegar esses materiais a Bissau, motivo pelo qual recorremos a Luís Graça & Camaradas da Guiné, solicitando-vos apoio em transportar esses recursos para Guiné.
Apesar de não termos muito para retribuir, garantimos zelar e promover o nome, os trabalhos e a importância da vossa instituição a nível nacional e sub-região oeste africana e na áfrica em geral.
A Escola Humberto é uma escola que funciona em caráter comunitário e atende um público cuja maioria das famílias vive abaixo da linha da pobreza, com menos de 1 dólar por dia, e não conseguem contribuir com os estudos dos seus filhos.
Sem mais assunto de momento, as nossas melhores saudações.
Atentamente,
Avelino Vaz
Diretor de Relações Institucionais
Telefone/Whatsapp: 00245 95546 8411
Instagram: @escola.hbs
2. Comentário do coeditor
Na impossibilidade de apoiarmos directamente a Escola Privada Humberto Sambu no transporte, de Lisboa para Bissau, do material cedido pelo Colégio Pedro Arrupe, deixamos aqui o pedido de apoio do seu Director, Avelino Vaz.
Ficamos na espectativa de que alguma ONG portuguesa ou empresa privada se disponibilize para levar a "bom porto" esta carga tão preciosa para quem tão pouco tem.
Leiam aqui o artigo "Guiné-Bissau: A escola comunitária que começou à sombra de uma árvore e hoje tem mais de mil alunos" dedicado à Escola Privada Humberto Braima Sambu
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Nota do editor
Último poste da série de 22 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23283: Ser solidário (246): O Núcleo de Ponte de Lima, da Liga dos Combatentes, associou-se à Campanha do Estado-Maior-General das Forças Armadas de doação de Manuais Escolares (1.º ao 6.º ano) para a Guiné-Bissau (Manuel Oliveira Pereira, ex-Fur Mil)
Guiné 61/74 - P23468: FAP (125): Os helicópteros SA-330 Puma e AL III em Angola, no apoio ao BCP 21 (Jaime Silva, ex-alf mil pára, 1ª CCP / BCP 21, 1970/72)
Foto nº 4 > Angola > BCP 21 (1970/72) > Leste > Chiume > Dezembro de 1971 > No Leste de Angola, Chiume (Cú de Judas), heli AL III no apoio ao 3º pelotão, 1ª CCP / BCP 21.
I. Mensagem de Jaime Silva (ex-alf mil paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72, membro da nossa Tabanca Grande, nº 643, desde 31/1/2014, tendo já cerca de 7 dezenas de referências) no nosso blogue; reside na Lourinhã, é professor de educação física, reformado, foi autraca em Fafe, onde residiu durante cerca de 4 décadas):
Caro Luís
Aqui vão as 4 relíquias do meu álbum de memórias, relativamente ao assunto dos helicópteros PUMA e AL III (*)
1. Quando os PUMAS chegam a Angola, a minha companhia estava destacada no Leste e, quando chegámos, soubemos que os pilotos da FA treinaram o transporte de militares com os paraquedistas.
As fotos nºs 2 e 3 testemunham o momento.
2. A foto nº 3 capta o momento em que o PUMA se prepara para recuperar o meu pelotão (3.º Pelotão da 1ª CCP do BCP 21).
Foi a nossa estreia no PUMA. ( A operação decorreu entre 24 e 26 de junho no Norte - Montes Mil e Vinte e, nela, morreu um soldado do meu pelotão.)
3. O Al III - documento o momento em que o Heli acabava de nos dar apoio com rações de combate e água para prosseguir a operação de combate que decorreu na zona de Chiume no Leste de angola. Foi por alturas de novembro / dezembro de 1971. (**)
É o que tenho. Memórias!
Abraço, Jaime.
II. Comentário do editor LG:
Obrigado, Jaime, pela tua pronta resposta ao meu pedido. Como se disse no poste P23462, a Guiné tinha mais de um quinto (n=21) do total dos heli AL III que operavam nos três territórios em guerra (n=94). Em contrapartida , nunca teve helis SA-330 PUMA (chegados tardiamente a Angola e Moçambique, em 1970), com maior capacidade e autonomia que os AL III.
(*) Vd. poste de 26 de julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23462: A nossa guerra em números (19): Meios e operações da FAP - Parte I: número e tipo de aeronaves: helicópteros, aviões de combate, de transporte e outros
quinta-feira, 28 de julho de 2022
Guiné 61/74 - P23467: Estórias do Zé Teixeira (55): Amores em tempo de guerra: III - Amores proibidos (1): Binta!... Binta!... (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)
Amores em tempo de guerra III
AMORES PROIBIDOS
(1) - Binta!... Binta!...
O coração deu um pulo. Já se tinham passado alguns anos, mas aquela voz estava-lhe gravada no coração. Era ele, o Braima, que a chamava do meio da floresta, ou estaria a sonhar?! Tinha de se manter calma e avisá-lo do perigo. Olhou na direção do som. Fez um sorriso e mexeu os lábios pedindo silêncio. Mal viu o Braima, mas sentiu-o a seu lado e o seu corpo vibrou de emoção. O coração quase a traiu. O alferes, que a cotejava, estava ali por perto a contemplá-la, enquanto lavava a sua roupa, no pequeno riacho que passava ao lado da tabanca.
O alferes adorava a bajuda. Tentara todas as formas possíveis para a conquistar. Binta defendia-se afirmando que estava comprometida com o filho do Mamadu, o chefe da tabanca vizinha que era também o sargento-chefe da milícia, sob o comando e orientação do Barbosa. Afirmava – mentindo – que o noivo era soldado do exército português e cumpria tropa em Bolama. Mantinha-se assim intocável e respeitada pelos soldados de quem era lavadeira para ganhar algum dinheiro e fazer o pé-de-meia para quando constituísse família com o Braima, a quem fora prometida nos tempos de criança.
O sol acabara de desaparecer. Os contornos das moranças e das árvores já se fundiam nas sombras da noite. Binta caminhava por entre as casas redondas de cana entrançada, chapeadas com lama, atenta a qualquer movimento vindo dos abrigos militares ou das moranças, que os oficiais e sargentos tinham arrendado a seu pai.
- Alto lá, aonde vais, minha boneca?
- Uma cabra fugiu para o mato, vou buscá-la e volto já.
- Anda aqui à minha beira. “Quero ter “conversa giro contigo”.
- Agora não, que está noite e a cabra pode fugir. Mais logo, quando chegar. Posso ir…?
- Prometes? Oh! Já não acredito!
- Gonzaga, eu prometo. E desata a correr pela picada fora, penetrando na mata em busca de uma cabra que não tinha fugido.
Depois de andar largos metros na mata escura, voltou à picada que seguia para Falace. Picada quase absorvida pela densa mata, que ela conhecera bem em tempos, pois era perto da tabanca da sua falecida avó. Tantas vezes lá fora visitar os avós, os tios e os primos. A última vez foi no dia do funeral do tio, que morreu às mãos dos libertadores da pátria, como se afirmavam os guineenses que viviam na mata, quando incendiaram a tabanca e raptaram os jovens. Era ela uma criança.
Nada mexia no silêncio do lusco-fusco que estava de partida. Era demasiado cedo para os animais noturnos começarem a sua faina. Só os pássaros pareciam ainda acordados, animando a Binta com o seu melodioso chilreio. Nesse mundo meio adormecido, o mínimo movimento parecia suspeito. Não parava de olhar para trás, com medo da sua fuga ter sido descoberta pelo alferes ou o Gonzaga a tivesse denunciado.
Então viu a lua aparecer majestática e colocar-se à frente do sol. Este, ao sentir-se recôndito, apesar de estar a caminho do ocaso, projetou os seus raios sobre a ela transformando-a numa gigante bola de fogo, a qual ao elevar-se no horizonte mais parecia a floresta, qual gigante, a abrasar-se num fogo sem fumo. Um panorama apavorante para quem nunca tinha tido a oportunidade de visualizar um eclipse do sol em África. Um belo e aterrador quadro, digno do Apocalipse que se foi eclipsando na medida em que o sol se deixava esconder pelo horizonte e partia a clarear outras partes do globo terrestre. A lua reveio à sua dimensão planetária e tomou o seu habitual esplendor a alumiar o céu e a terra, deixando as estrelas escondidas por detrás da sua suave alvura.
O caminho parecia não ter fim. Nem vivalma, e a noite já era profundamente negra. A lua deixara-se encobrir por uma longa nuvem. Parece que as estrelas adormeceram no céu e o cerrado arvoredo transformava o caminho, uma estrada há vários anos encerrada, num pesadelo. Mal vislumbrava a clareira por onde sabia que tinha de seguir para chegar ao miolo da mata, onde eles, os conquistadores, possivelmente se acoitavam. O medo começou a apossar-se dela, mas a mente dizia-lhe que o Braima andava próximo e ia salvá-la do aperto de coração que começava a sentir.
A Binta caminhou mais uns metros e susteve-se amedrontada. Pareceu-lhe ouvir um ruido. Manteve-se em silêncio e atenta a qualquer movimento à sua volta. Longos segundos de palpitações apressadas numa mente baralhada. Estaria a cometer uma loucura. Talvez não tenha sido o Braima, mas um espião, como já acontecera outras vezes... Mas não, este chamara-a pelo seu nome, bem perto do arame farpado. Ela vira-o naquela tarde! Era ele mesmo, mais homem, barbicha comprida... e o mesmo sorriso...
Talvez fosse melhor voltar para trás. Acoitar-se junto de um tronco perto da sua tabanca e aparecer no dia seguinte. Só teria de se justificar ao seu pai e este compreenderia. Ao alferes diria que tinha ido à procura da cabra, o Gonzaga tinha-a visto sair. Ela justificar-se-ia bem: como a noite chegou rapidamente teve medo de ser confundida com o inimigo e ficou a dormir junto a um tronco, do lado de fora da tabanca até chegar o dia.
Tola era ela se não fizesse isso e continuasse o caminho! Cogitava, enquanto prosseguia no trilho sem fim. Era o coração que a comandava.
O quebrar de uma folha atormenta-a de novo. Nova paragem na silenciosa e atemorizadora escuridão da noite em que nem as rãs se ouviam.
Eis que uma voz suavemente cantante se faz ouvir:
- Binta! Binta, sou eu!
O coração sobressalta-se. A voz veio não sabe de onde, mas é ele, o seu prometido, o Braima. Esconde-se, de si mesma, junto a um tronco, tenta serenar o coração e a mente que se baralham e lutam entre si e aguarda, perscrutando em todas as direções.
Ouve-o de novo chamar pelo seu nome. Agora bem perto. Se dúvidas tivera desapareceram. Era ele que estava ali e vinha buscá-la.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 19 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23443: Estórias do Zé Teixeira (54): Amores em tempo de guerra: II - Correspondência desviada (conclusão) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)
Guiné 61/74 - P23466: Parabéns a você (2085): Luís Paulino, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2726 (Cacine, 1970/72)
Nota do editor
Último poste da série de 19 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23444: Parabéns a você (2084): Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 e CART 2732 (Buba e Mansabá, 1970/72)
Guiné 61/74 - P23465: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XXVIII: Em 1976, uma viagem pela velha Europa para esquecer a guerra e espairecer do PREC
Fotos (e legendas) © Joaquim Costa (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XXVIII: Em 1976, uma viagem pela velha Europa para esquecer a guerra e espairecer do PREC
Nos primeiro anos depois da Guiné vivi sofregamente os dias, “engasgando-me” aqui e ali na ânsia de agarrar o mundo todo num só dia. Fui à procura de resgatar os três anos “roubados” da minha juventude, até hoje ainda não devolvidos.
No ano de 1976 , eu e mais dois companheiros, o Gil Marques, jovem empresário da indústria têxtil e o Miguel, professor de economia e contabilidade, decidimos, depois de mais uma noite de copos na tasca do “Pega”, hoje um restaurante com nome no “Evasões” e “Boa Cama Boa Mesa” (à nossa custa), decidimos aproveitar as férias (e espairecer um pouco da loucura do PREC ) numa viagem (de 30 dias) pela Europa, numa das nossas Dianes,
Num dia se decidiu e no outro abalamos (já tinha na minha posse o famoso “Salvo conduto” inexplicavelmente, já sem guerra e em democracia, ainda obrigatória para passar a fronteira) , com partida junto ao nosso café das tertúlias e “jogatanas” de bilhar diárias, o “Pica Pau” com todos os presentes e amigos desejando boa viagem, na Diane do Gil.
Lá consegui meter num pequeno saco umas peças de roupa, um mapa e uma tenda que nunca havia montado. Decidida a primeira paragem em Madrid, como pessoa mais sensata do grupo [???], lá fui pensando em programar minimamente o itinerário de toda a viagem até à capital espanhola.
Já em França, a caminho de Nice, com um amortecedor a queixar-se do peso, surgem na estrada muitos jovens a pedir boleia (muito comum na época em Portugal e em toda a Europa). Eis quando aparece uma jovem no meio do caminho, quase nos obrigando a parar, com o Miguel aos gritos, pára, pára ... mas o Gil não parou. Ficamos furiosos , mas ele, com a sua calma, de quem não foi à guerra e tem ainda toda a sua juventude pela frente (pois muitas mais lhe vão aparecer à frente), chama os dois “velhos” à razão:
Durante a viagem o Gil, preocupado com o amortecedor, passou o tempo a chamar nomes ao gigante Sueco, utilizando todo o vocabulário vernáculo do norte que tinha mais à mão, enquanto o rapaz olhava para ele, divertido, sempre com um sorriso nos lábios.
Este incidente foi motivo de conversa até Veneza, onde montámos (tentamos montar ), pela primeira vez, a tenda num parque de campismo (até Veneza sempre dormimos ao relento apenas com o saco cama).
Começámos a montar a tenda mas não atinávamos com a quantidade de ferros. Já desesperados, diz o Gil:
− Não és tu engenheiro? Então trata tu disso, que eu vou tomar banho.
Ainda não refeitos da boleia dada ao gigante Sueco, durante o banho continuaram os insultos ao rapaz em
voz alta que se se ouviam em todo o parque. Até eu, que também não atinava com a tenda (ou faltava ferros ou faltava pano), estava a ficar incomodado com os palavrões (afinal sou professor, “carago”...).
Entretanto, sinto uma mão no meu ombro, viro-me, e vejo um homem lourinho, de olhos claros dizendo, em bom português: já uma pessoa não pode estar com a família sossegada no parque de campismo, sem estar sujeita a ouvir este chorrilho de palavrões.
Queria eu fugir das lembranças da guerra, mas nem aqui, no norte de Itália estava a salvo... nem do PREC pois que na altura o PCI (Partido Comunista Italiano) e a DC (Democracia Cristã) mediam forças taco a taco, com governos que não duravam 1 mês... E sempre carregados com um saco de notas, pois só para pagar uma fatia de melancia era um molhe de notas (vinte e cinco mil liras!)
Foram umas belíssimas férias: baratas, com muita adrenalina, poucos banhos e ... ???
(*) 8 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23336: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XXVII: O "meu" regresso à Guiné (3): Os Bijagós que muitos de nós nunca vimos - II (e última) Parte
(**) Vd. poste de 8 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23245: Agenda cultural (811): Tabanca dos Melros, Fânzeres, Gondomar, 11 de junho de 2022, sábado, 11h00: Luís Graça apresenta o livro do Joaquim Costa, "Memórias de Guerra de um Tigre Azul"
quarta-feira, 27 de julho de 2022
Guiné 61/74 - P23464: Historiografia da presença portuguesa em África (327): O arquiteto Luís Benavente e o restauro da Fortaleza da Amura no número que a revista Oceanos de outubro/dezembro de 1996 dedicou às Fortalezas da Expansão Portuguesa (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Outubro de 2021:
Queridos amigos,
Aqui se regressa à história da Fortaleza de S. José da Amura a pretexto das intervenções propostas por um arquiteto de nomeada, Luís Benavente, alguém que deixou nome em importantíssimos trabalhos de reedificação e construção. Entendia que a Amura corria o risco de ter "coisas a mais", era entendimento, desde o início da guerra da independência, que a fortaleza devia ter um importante desempenho militar, ali se colocou o Comando-Chefe, ali tinham estado unidades militares, garantiu-se a solidez dos panos de muralha, mas Luís Benavente era contrário a uma excessiva ocupação daquele espaço, havia que respeitar a consagração do monumento nacional. Era no seu interior que o Governador e Comandante-Chefe António Spínola reunia diariamente com os seus Altos Comandos, a Amura viveu outro momento histórico em 26 de abril de 1974, as unidades militares em peso tinham aderido ao MFA, daqui partiram para depor, no Palácio do Governo, o General Bettencourt Rodrigues, que no dia seguinte seguiu para Lisboa.
Um abraço do
Mário
O arquiteto Luís Benavente e o restauro da fortaleza da Amura
Mário Beja Santos
Luís Benavente é um nome sonante da arquitetura portuguesa no século XX. No número que a revista Oceanos de outubro/dezembro de 1996 dedicou às Fortalezas da Expansão Portuguesa, o professor José Manuel Fernandes dedicou um artigo a este insigne arquiteto e ao seu trabalho nas fortalezas de África. E escreve: “Durante 17 anos – nas décadas de 1950, 60 e 70 – o arquiteto Luís Benavente esteve ligado às fortificações da costa africana, com especial relevo para os monumentos nas ilhas de S. Tomé e Príncipe e de Cabo Verde, mas também na Guiné-Bissau, em Angola, em Moçambique e até no Gana. Destacado do Ministério das Obras Públicas, onde era Diretor dos Monumentos Nacionais, Luís Benavente pôde dedicar-se com certa continuidade a visitar, estudar, fotografar e desenhar inúmeras fortalezas, executando propostas de restauro ou de reconstrução para vários desses vestígios militares da Expansão Portuguesa em África. O seu espólio profissional está depositado na Torre do Tombo”. A revista Oceanos mostra imagens do Forte de S. Sebastião em S. Tomé, a Fortaleza de S. José da Amura em Bissau, a Fortaleza Real de S. Filipe na Ilha de Santiago e o Forte de S. Pedro da Barra em Angola.
Luís Benavente visita a Guiné de 12 a 15 de julho de 1962, visita o Fortim de Cacheu, que entende como uma “reconstrução com possibilidades dentro do que de facto deveria ter sido” e visita uma pequena mas interessante igreja nas suas proximidades, “provavelmente do início do século XVII”. Segue para Bissau e visita S. José da Amura que considera “obra notável pelas suas proporções e dimensão”. Recomenda o levantamento destas duas obras militares com proteção urbanística da de S. José e com medidas para restauro e controlo da intervenção arquitetónica no seu interior. E é ao restauro de S. José que irá dedicar-se nos anos seguintes, conhecendo-se uma sua proposta desenvolvida com data de 25 de fevereiro de 1969 e despachada positivamente por Rui Patrício em 18 de março de 1969. Num ofício do Ministério do Ultramar, com data de 18 de junho de 1970, o arquiteto discorda da hipótese de “pôr coisas a mais” no interior da fortaleza, sugerindo que novas funções militares sejam resolvidas em outro edifício, alheio à fortaleza. Neste mesmo ofício refere o desejo, expresso em conversa com António de Spínola, de que “… à Fortaleza fosse dado através do seu restauro um aspeto de acordo com a sua importância e mérito”.
No relatório de 1962, Luís Benavente mencionava a construção inicial de S. José da Amura (em 1696, pelo Capitão-mor José Pinheiro) e a sua primeira construção (em 1753, segundo planos de Frei Manuel de Vinhais Sarmento, continuada em 1766 com traçado pelo Coronel Manuel Germano da Mata).
Não é a primeira vez que o nome Luís Benavente é invocado no blogue. Em 13 de janeiro de 2015, a então doutoranda Vera Mariz aludia à remodelação de 1968/69 da fortaleza da Amura para passar a receber o Comando-Chefe, a Companhia de Polícia Militar e o Comando-Chefe do Agrupamento de Bissau, de que o arquiteto notoriamente discordava, eram coisas a mais dentro de um monumento nacional, propunha que tais serviços militares fossem incorporados em edifício à parte. (Vd. postes P14145 e P14147)
Bem curiosa me parece a intervenção do arquiteto guineense Fernando J. P. Teixeira que no VII Encontro do Conselho Internacional dos Arquitetos de Língua Portuguesa se referiu à evolução histórica da fortaleza. Recorda que as datas da construção desta fortaleza não são coincidentes nas diversas fontes consultadas e não deixa de citar uma observação do Visconde Sá da Bandeira: “… e o cimento da cantaria bem podia ser amassado com sangue; porque mais de dois mil dos nossos que morreram nesta edificação, e não foi senão sob o fogo de canhões de uma esquadrilha que se conseguiu elevar a praça de guerra S. José de Bissau”. Criada a Companhia Geral de Comércio e Navegação do Grão-Pará e Maranhão, com estatutos em 1775, uma das deficiências notadas pela administração nos portos de Bissau e Cacheu era a fragilidade das suas fortalezas. As edificações anteriores tinham sido o Forte de Cacheu, construído em 1589 e os fortes de Guinala e Biguba, no Sul, tinham sido construídos de adobe e pouco duraram. A Companhia reclamava trabalhos de defesa em Bissau e Cacheu para se garantir o comércio. Esta mesma Companhia negociou com o régulo de Intim a compra de uma porção de terra para erguer a fortaleza. E assim se traçou um quadrado de pedra com mais de uma centena de metros por fachada, com doze metros de altura, flanqueado por quatro bastiões. O interior esteve permanentemente em reparação, estava destinado a residência do governador de Bissau, a ter casernas para 200-300 soldados, uma igreja e um poço. Os seus baluartes passaram a ser conhecidos por Bandeira, Balança, Onça e Puana.
Os Papéis hostilizavam a presença de quem vivia dentro dos muros de Bissau, eram muros de pedra e cal, com quatro metros de altura, fora achava-se a povoação com centenas de palhotas e meia dúzia de casas onde residiam negociantes e agentes de firmas francesas, de Gorée e inglesas, da Gâmbia, estavam sujeitos a todos os ultrajes, razão pela qual havia quem defendesse a ideia de transferir os armazéns e estabelecimentos para o Ilhéu do Rei.
É na visita de 1962 que Benavente aconselha o levantamento e a proteção urbanística do forte e medidas para o restauro e controlo de intervenção arquitetónica no seu interior. Já se sabe que em 1970 Benavente discordava de pôr coisas a mais dentro da Amura. Seguramente que se referia às instalações do Comando-Chefe, da Polícia e do Comando-Chefe do Agrupamento de Bissau.
A dinâmica de Bissau contribuiu para que S. José da Amura ganhasse respeitabilidade. Em 1914 Bissau foi elevada à categoria de cidade. O engenheiro Guedes Quinhones traçou-lhe o risco que de certo modo veio a conhecer execução. Apareceram as grandes casas comerciais, o Banco Nacional Ultramarino, surgiu a primeira fábrica de gelo acionada por um locomóvel. Em 1923 o governo concede foral ao município de Bissau, dois anos depois foi inaugurado o novo mercado e o cemitério municipal, em 1935 lançou-se a primeira pedra da futura Catedral de Bissau. No ano seguinte, o antigo bairro indígena passou para Santa Luzia e passou a fazer parte integrante da cidade. De 1936 a 1939 a cidade cresce e surge o bairro Portugal com casas destinadas a funcionários. Em 4 de dezembro de 1939 a Amura é considerado monumento nacional. E em 1941 é inaugurado o Monumento ao Esforço da Raça, que tinha sido começado a construir em 1934 (as pedras tinham vindo do Porto, onde fora feito o projeto da autoria do arquiteto Ponce de Castro).
A cidade transformara-se, a Avenida da República ganhou vida com a Catedral e o Palácio do Governo. E as muralhas do baluarte de Puana, em S. José da Amura, que haviam ruido, foram reerguidas em 1946. Dentro erigiu-se um Monumento aos Heróis da Ocupação.
É esta em síntese a história do principal monumento que a presença portuguesa legou à República da Guiné-Bissau.
Três imagens retiradas do trabalho do arquiteto Fernando J. P. Teixeira sobre a evolução histórica da Fortaleza de S. José da Amura publicado no site didinho.org
Nota do editor
Último poste da série de 20 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23447: Historiografia da presença portuguesa em África (326): Aviação na Guiné (1925-1946) (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P23463: Frase do dia (5): "Todas as guerras sempre foram e continuarão a ser lutas de vontades... e não só das vontades dos combatentes" (Gen Bettencourt Rodrigues, in "África: a vitória traída", Lisboa, Ed. Intervenção, 1977, pág. 142)
Curiosamente, estou a reler o "testamento" do gen Bethencourt (ou Bettencourt) Rodrigues, inserido no livro "África: a vitória traída" (Lisboa, Editorial Intervenção, 1977, 276 pp.): apenas três (!) páginas são dedicadas às "Forças Armadas Portuguesas" (no CTIG) (pp. 129-131), e nelas tem este curtíssimo e lapidar parágrafo sobre a Força Aérea:
Não esconde, todavia, "a gravidade da situação militar que se vivia na Guiné no 1.º trimestre de 1974" (pág. 140)...
É um depoimento que merece ser retomado e analisado com tempo e vagar.
(...) Aqui [neste poste P23462] ficam indicados os meios da FAP atribuídos ao TO da Guiné.
____________
(*) Vd. poste de 26 de julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23462: A nossa guerra em números (19): Meios e operações da FAP - Parte I: número e tipo de aeronaves: helicópteros, aviões de combate, de transporte e outros
terça-feira, 26 de julho de 2022
Guiné 61/74 - P23462: A nossa guerra em números (19): Meios e operações da FAP - Parte I: número e tipo de aeronaves: helicópteros, aviões de combate, de transporte e outros
1. Parece haver menos informação sobre a Força Aérea (bem como sobre a Marinha) do que sobre o Exército, relativamente à sua atividade operacional e os meios utilizados na guerra do ultramar / guerra de África / guerra colonial.
Lá teremos de voltar a utilizar a informação recolhida e tratada pelo Pedro Marquês de Sousa, Tenente Coronel, do Exército, na reserva, doutorado em história pela FCSH / Universidade NOVA de Lisboa (2014), autor do livro "Os números da Guerra de África" (Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, 381 pp.). É uma fonte valiosa, desculpando-se os inevitáveis pequenos erros, lapsos e gralhas que acontecem em trabalhos desta natureza.
Tem este autor cerca de 30 páginas sobre os meios e operações da Força Aérea (pp. 225-258). Interessa-nos apenas a parte relativa à Guiné, como é óbvio. Com a devida vénia, vamos repescar então alguns números sobre esta matéria.
Nos quadro I e II, acima inseridos, e por nós construídos, faz-se um resumo da quantidade e tipo de aeronaves que operaram na Guiné, comparando-as com o total dos três teatros de operações:
(i) helicópteros e aviões de ataque (Quadro I):
(ii) aviões de transporte e outros (incluindo de observação e liação como a Dornier DO-27)(Quadro II).
2. No TO da Guiné (bem como nos restantes territórios em guerra), pode-se dizer que sempre houve "escassez de meios aéreos", a começar por helicópteros e aviões de combate. Numa guerra de contraguerrilha (ou "antissubversiva"), o helicóptero era, como todos sabemos, um meio fundamental, em missões não só de transporte (tropas especiais, em especial Paraquedistas e Comandos) e evacuação de feridos como de ataque (com o helicanhão) e reconhecimento.
Diz o autor (pág. 243): "Inicialmente, em 1963, a Força Aérea tinha na base de Bissalanca (Bissau) apenas oito F-86, oito T-6, oito Auster, três DC-3, um Broussard e um P2-V5. Posteriormente recebeu de Angola os pequenos helicópteros Alouette II (apenas para evacuações) em 1965, aumentou o seu potencial com a chegada dos Alouette III e, em 1966, com os aviões Fiat, que substituiram os F-86".
Isto quer dizer que houve uma "redução da eficácia da Força Aérea em 1964 e 1965", com retirada dos F-86, por pressão política dos EUA (por serem aeronaves a utilizar exclusivamente no âmbito da NATO), e enquanto não chegaram, em 1966, os Fiat G-91 adquiridos à Alemanha.
De que qualquer modo, a Guiné tinha um quinto dos heli AL III, nunca teve helis SA-330 Puma (chegados tardiamente a Angola e Moçambique, em 1970), com maior capacidade e autonomia que os AL III. Em contrapartida, só havia Fiat G-91 (n=28) na Guiné (n=12) e em Moçambique (n=16).
Também estava, a Guiné, mal servida de aviões de transporte, com destaque para o Noratlas (13%) e o C-47 Dakota (18%). Proporcionamente estaria melhor em matéria de avionetas Dornier D0-27 que de um total de 100 se distribuíam do seguinte modo, pelos 3 teatros de operações: Angola (41), Guiné (24) e Moçambique (35).
Também pensavámos que a Guiné tinha mais caças-bomardeiros T-6: apenas 9, num total de 80 (com 26 em Angola, e 46 em Moçambique).
Mas os camaradas da FAP terão por certo algo mais para nos dizer e escalarecer, em comentários que serão bem vindos.
(Continua)___________
Nota do editor:
Último poste da série > 22 de julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23450: A nossa guerra em números (18): o consumo de munições e granadas pelo exército
Guiné 61/74 - P23461: Blogues da nossa blogosfera (169): O blogue de Alberto Hélder, antigo árbitro de futebol, e que fez a comissão de serviço militar em São Tomé e Príncipe (1964/66): destaque para as séries já concluídas: A Polícia Militar no Ultramar, Os Comandos nos três teatros de operações da guerra do ultramar; o Estado da Índia - 466 anos de história... E para a série em curso, As Companhias Móveis de Polícia
Exmº Senhor
Virgílio Teixeira
Ilustre! Boa tarde.
Muito, mas muito feliz fiquei com a sua mensagem e as excelentes imagens, nalgumas delas com o tema que estou a trabalhar: a Polícia! (***)
Quanto ao título que adotei para o tributo àqueles que tudo deram em Goa, Damão e Diu, fui buscá-lo aos primórdios da sua designação pelos portugueses àquele território, lá bem longe… Não existe outra razão.
Devo dizer que tal empreendimento é dedicado ao meu irmão (Fernando Plácido Henrique dos Santos: 18.09.1939/04.11.2002), que foi um dos soldados prisioneiros, aquando da invasão de 18 de dezembro de 1961.
Quanto ao resto resta-me destacar o muito material que me enviou, assim as amáveis palavras que me dedica, que muito agradeço.
Entretanto, caso seja de interesse, divulgo a seguir os trabalhos que, até agora, publiquei no meu espaço na net, podendo aceder em:
A POLÍCIA MILITAR NO ULTRAMAR
130 episódios – de 15 de maio de 2107 a 4 de setembro de 2017
http://albertohelder.blogspot.com/2017/05/tributo-policia-militar-apresentacao-do.html
OUTRAS UNIDADES MILITARES QUE SERVIRAM SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE
32 episódios – de 29 de novembro de 2018 a 29 de janeiro de 2019
http://albertohelder.blogspot.com/2018/11/unidades-militares-que-serviram-na.html
OS COMANDOS NOS TRÊS TEATROS DA GUERRA DO ULTRAMAR
201 episódios – de 15 de dezembro de 2019 a 28 de maio de 2021
http://albertohelder.blogspot.com/2019/12/os-comandos-nos-tres-teatros-da-guerra.html
MILITARES FALECIDOS NO COMANDO TERRITORIAL INDEPENDENTE DE SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE
1 episódio – em 3 de janeiro de 2021
http://albertohelder.blogspot.com/2021/01/militares-falecidos-na-entao-provincia.html
ESTADO DA ÍNDIA – 466 ANOS DE HISTÓRIA
66 episódios – de 27 de setembro de 2021 a 25 de junho de 2022
http://albertohelder.blogspot.com/2021/09/estado-da-india-466-anos-de-historia.html
Saudações de apreço, consideração e respeito.
Alberto Helder
___________
(**) Último poste da série > 26 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22846: Blogues da nossa blogosfera (168): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (74): Palavras e poesia
24 de julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23458: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (94): A sede da PSP e 7ª Companhia Móvel de Polícia era no bairro de Bandim (José L. S. Gonçalves / Amílcar Mendes / Carlos Pinheiro / Valdemar Queiroz / Virgílio Teixeira)
segunda-feira, 25 de julho de 2022
Guiné 61/74 - P23460: Nota de leitura (1468): “A desmobilização dos combatentes africanos das Forças Armadas Portuguesas da Guerra Colonial”, por Fátima da Cruz Rodrigues, na revista Ler História, n.º 65 de 2013 (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Dezembro de 2019:
Queridos amigos,
Afinal, a historiografia contemporânea não virou as costas aos temas das guerras que travámos em África, este trabalho de Fátima da Cruz Rodrigues comprova que há investigação e não se recusam os temas mais delicados, no caso vertente a desmobilização dos combatentes africanos. Dir-me-ão que não há nada de novo debaixo do sol, mas reconheça-se que é um compêndio de factos e dados sem obliterações ou ambiguidades. No tocante à Guiné, é sabido que houve a tentativa de dar opção às tropas especiais para virem para Portugal, e não se iludiram os riscos de eles permanecerem na Guiné logo a seguir à independência. A generalidade teimou em receber salários até dezembro de 1974. Não se pode iludir que se entrou em luta política em Portugal e que a descolonização na Guiné constituiu um facto de importância menor, havia a descolonização em Moçambique e em Angola a fazer. As autoridades guineenses não respeitaram os Acordos de Argel, é do domínio público. Algo devia ter acontecido, depois de novembro de 1984, e sobretudo quando Nino Vieira mostrou as valas onde estavam os fuzilados, para reinstalar uma política de "paz e perdão", o que não veio a acontecer, e tomaram-se então iniciativas de organizações, como a Associação dos Comandos, que foram reais contributos para salvar vidas. Nada ganhámos em ter ignorado, nós próprios, em ter feito uma política de paz e perdão com toda a descolonização, mas isso é outra história.
Um abraço do
Mário
A desmobilização dos combatentes africanos das Forças Armadas Portuguesas
Beja Santos
A revista Ler História, n.º 65 de 2013, inclui um artigo de Fátima da Cruz Rodrigues intitulado “A desmobilização dos combatentes africanos das Forças Armadas Portuguesas da Guerra Colonial”. É um trabalho que nos permite deter uma visão de conjunto sobre a evolução da africanização da nossa guerra colonial e como ocorreu a desmobilização.
Atenda-se aos números avançados pela autora. “No ano que antecede o início da guerra, em 1960, eram 6500 os militares do Exército Português mobilizados em Angola. 5000 desses soldados pertenciam ao então denominado recrutamento local. Até ao final do ano de 1961, estes valores sofrem uma profunda transformação. Rapidamente se inverteu a proporção dos números dos soldados mobilizados em Angola. O número dos soldados africanos, que eram de 5000 no final de 1960, manteve-se o mesmo até finais de 1961, enquanto o número de soldados expedicionários aumentou de 1500 para 28 477. No final desse mesmo ano, a maioria dos soldados mobilizados nos três territórios pertencia ao recrutamento vindo de Portugal. Apenas 18,21% dos 49 422 soldados mobilizados, pertenciam ao recrutamento local”.
Recorde-se que no início da guerra houvera desconfiança quanto à africanização, temia-se que se dessem infiltrações de terroristas nas nossas Forças Armadas em Angola, ou mesmo deserções. Os anos passaram, a guerra prolongou-se e a africanização da guerra aconteceu. Mas com a exceção da de Moçambique, onde a africanização só se tornou um facto real a partir de 1971. Mas voltemos aos números enunciados pela autora. “Em termos globais, e de acordo com os valores disponíveis, entre 1961 e 1973 foram recrutados aproximadamente 1 milhão e 400 mil soldados para a guerra. Mais de 400 mil desses homens faziam parte do recrutamento local, ou seja, aproximadamente um terço dos efetivos”. Tornaram-se notórias as dificuldades de aumentar o número de efetivos, por razões simplesmente demográficas e também pela sangria das emigrações. E, gradualmente, foi-se reconhecendo a mais-valia das forças africanas no conhecimento dos territórios, das línguas e de outras caraterísticas locais, e não foi despicienda a economia que este recrutamento acarretava.
Outra tese abonou a africanização: usar os elementos locais para conquistar as populações locais. Outro fator pode ser tido como preponderante, como a autora assinala. “Se a africanização das Forças Armadas deu resposta a necessidades económicas e a interesses estratégicos de caráter militar, o que parece é que serviu igualmente para demonstrar e promover a ideia de que Portugal era, de facto, uma nação pluricontinental e plurirracial sustentando, assim, a defesa da manutenção do domínio português nos territórios africanos”. E a autora refere a legislação que levou à abolição do estatuto do indigenato, era necessário procurar agradar à comunidade internacional.
A nível interno, também se procurou dar uma certa visibilidade aos combatentes africanos das nossas Forças Armadas. E a autora disseca esta evolução em Angola, Moçambique e Guiné. Vamos pôr o foco, obviamente, na Guiné. “Na Guiné as forças irregulares tinham a designação oficial de milícias, embora algumas tenham passado pela designação de caçadores nativos, e podiam ser normais ou especiais. As primeiras eram reservadas à autodefesa da população e, em 1966, já existiam 18 formadas em companhias. As segundas foram criadas pelo general Spínola e eram organizadas em grupos de combate. Spínola não se limitou a introduzir essa mudança nas forças operacionais da Guiné. O que o distinguiu, e que constituiu um caso que nunca se repetiu nos outros dois territórios, foi ter procurado que as distinções entre os soldados portugueses e locais terminassem, argumentando que a discriminação dos africanos envolvia riscos para Portugal. Outra especificidade do seu mandato foi ter criado os comandos africanos, uma força de elite estruturada de modo semelhante às unidades de comandos já existentes na Guiné e nos outros dois territórios em guerra. A Guiné foi também o único território onde foram constituídos dois destacamentos de fuzileiros especiais africanos”.
Iniciado o processo de desmobilização dos combatentes africanos, em cada um dos teatros de operações surgiram problemas delicadíssimos, conforme a autora expõe.
“Na Guiné, embora o processo da negociação da transferência de poderes tenha sido menos controverso do que o de Moçambique e sobretudo o de Angola, em contrapartida, foi o território onde a desmobilização dos soldados africanos registou mais problemas e onde, após a independência, os antigos combatentes mais sofreram as consequências por terem pertencido à força colonial. Se o facto de existir um único movimento de libertação envolvido nas negociações para a transferência de poderes poderá ter contribuído para a possibilidade dos antigos combatentes africanos integrarem o novo exército nacional fosse posta de parte, tal como aconteceu em Moçambique, considera-se que o papel que lhes foi atribuído durante a guerra, sobretudo nos seus últimos anos, constituiu um dos fatores que mais terá condicionado o desenrolar dos episódios conturbados da sua desmobilização e que evoluíram para situações dramáticas em certos momentos da história da Guiné independente.
Ainda durante as negociações, os combatentes africanos das nossas Forças Armadas, especialmente os Comandos, começaram a ser objeto de várias suspeitas segundo as quais estariam a preparar-se para apoiarem uma invasão a Bissau. Os problemas com os antigos combatentes africanos da Guiné começam quando as autoridades portuguesas procedem ao seu desarmamento, segundo o estipulado no Acordo de Argel. Algumas unidades começaram por recusar-se em entregar as suas armas mas acabaram por fazê-lo após lhes serem dadas certas garantias. Pouco tempo após a partida dos portugueses, começaram as discriminações, as perseguições, a prisão e a execução de antigos combatentes das nossas Forças Armadas de origem guineense.
Neste território, embora as Forças Armadas tenham sido sempre em menor número do que em Angola e Moçambique, o seu envolvimento na guerra foi de grande destaque, sobretudo desde que se formaram os Comando africanos. Mas o lugar de destaque que lhes foi atribuído na guerra, não decorreu, unicamente, do facto de terem sido formadas na Guiné, unidades exclusivamente compostas por africanos, incluindo os seus comandantes, nem tão pouco por terem participado em numerosas operações de caráter ofensivo. O que distingue as Forças Armadas na Guiné foi a sua integração num ‘projeto político destinado a alterar o status quo existente’.”
E a autora também recorda que o protagonismo concedido a estas forças africanas enquadrava-se no projeto mais amplo de Spínola em que competia aos guinéus defender e lutar pela manutenção da presença portuguesa em África. Spínola concebera um exército africano de caraterísticas “nacionais” tendo em vista provavelmente uma futura federação de Estados de língua portuguesa, era dentro dessa lógica que foram criados os congressos do povo e o programa “por uma Guiné melhor” era uma das bases da tese federalista de Spínola. Daí o PAIGC considerar uma ameaça permanente estes combatentes, independentemente de não ter havido nenhum génio político capaz de gerar um movimento de “paz e perdão”, como na África do Sul.
A autora reconhece que o Estado Português não se demitiu totalmente das suas responsabilidades em relação a estes homens, comprometendo-se a pagar indemnizações e reformas, durante a transferência de poderes. Por razões diversas, assobiou-se para o lado, minimizando os perigos para os combatentes que ficaram nos seus países. Devido ao Direito Internacional, Portugal pouco podia fazer depois das independências. E muitos dramas permanecem.
Nota do editor
Último poste da série de 22 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23451: Nota de leitura (1467): "A Minha Vida Militar", por José Costa; edição de autor, 2016 (Mário Beja Santos)