Foto: © Rogério Freire (2006)
O Rogério Freiree foi alferes miliciano, na CART 1525 (Os Falcões), esteve em Bissorã (1966/67) e vive hoje em Lisboa.
A propósito de um post sobre o futebol e a passagem, pelo Oio, do Gilberto Madail (ex-alf mil, CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69)(1), escreveu-nos ele, já há umas largas semanas, a seguinte nota por onde perpassa tristeza, nostalgia, desencanto e revolta:
Luís:
Sabes, quando no e-mail sobre o Madaíl caí em mim, com mais 40 anos me lembrei de que... O que é triste é que após 40 anos....
Na foto, da esquerda para a direita:
(i) Alferes Miliciano Rui Chouriço (já falecido) ;
(ii) Alferes Miliciano Rogério Freire (o escriba);
(iii) Capitão (posteriormente Coronel) Jorge Mourão (já falecido);
(iv) Alferes Miliciano Manuel Eduardo Oliveira ;
(v) Alferes Miliciano Germano Silva.
Em resumo, dois dos cinco oficiais da Companhia [, a CART 1525], já faleceram e já não vão ser mais uma encargo para a Nação Portuguesa ... Com este rácio realmente daqui a mais 20 anos já poderão passar a pagar as pensões.
É só um desabafo ... Não quero entrar em polémica, mas ... já no tempo da outra senhora se dizia que cada País tem o Governo que merece. Pergunto-me muitas vezes se será que nós ex-combatentes (eu incluído, claro está) temos o que merecemos ou será que, desde há muito, deveríamos ter feito [algo] e nunca fizemos nada ou quase nada?
Será que ainda podemos fazer?
Fui informado recentemente pelos jornais que alguns ditos antifascistas começaram a receber uma pensão mensal pela sua luta pela liberdade ... mormente membros do Partido Comunista que começaram a lutar pela Liberdade na Sibéria e em Cuba. É a vida!!!
De momento, aos meus netos só posso dizer que, se na vida deles vier a acontecer uma situação semelhante [à nossa], que fujam para o estrangeiro .... Pode ser depois que, depois de passada a borrasca, se tornem heróis sem nunca terem dado o corpo ao manifesto.
Vou também dizer-lhes que isso de Nação, de Governo, de Pátria, é tudo balela e que o bom mesmo é dar de frosques enquanto podem e de preferência para um País agradável.
Rogério Freire (2)
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de
21 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P978: Futebol em Bissorã no tempo do Rogério Freire (CART 1525) e do Gilberto Madail
(2) Vd. também post de 14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXXIX: CART 1525, Os Falcões (Bissorã, 1966/67)
Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra col0onial, em geral, e da Guiné, em particular (1961/74). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que sáo, tratam-se por tu, e gostam de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 16 de setembro de 2006
Guiné 63/74 - P1079: Almoço-convívio da CCS do BCAÇ 2927 (Bissorã, 1970/72) (Carlos Fonseca)
Guiné > Rehgião do Oio > Bissorã > CCAÇ 13 - Os Leões Negros > 1971> O Fur Mil Fortunato, ao centro, junto de uma peça de artilharia pesada (obus 10,5 cm) que defendia Bissorã, sede do BCAÇ 2927 (1970/72).
Foto: © Carlos Fortunato (2005)
1. Amigo Luis Graça:
O meu nome é Carlos Fonseca, de Maceira, Leiria, telefone 962603713, ex-combatente da CCS do BCAÇ 2927, Guiné, Bissorã, 1970/72.
Admiro bastante o seu empenhamento na divulgação da nossa causa através do seu site.
Informo que a nossa companhia irá realizar um almoço-convívio no dia 7 de Outubro, em Fátima. Caso seja possivel, divulgue. Gostaria ter o seu endereço para lhe enviar um convite para estar presenta no nosso convívio, era um prazer.
Desde já os meus agradecimentos.
Um Abraço
Carlos Fonseca
2. Comentário de L.G.:
Carlos:
Este é o maior espaço na Internet sobre a experiência, única, dos ex-combatentes que estiveram na Guiné, no período da guerra colonial (1963/74). É naturalmente também o teu espaço e o espaço dos teus camaradas da CCS da 2927. Podes ver, nas nossas páginas mais informação sobre Bissorã. Será que chegaste a conhecer alguém da CCAÇ 13 - Os Leões Negros ?
Podes também consultar a carta de Mansoa (1/50.000) onde se inclui Bissorã.
O Carlos Fortunato é elemento da nossa tertúlia. Em breve, no próximo mês de Novembro de 2006, deverá revisitar Bissorã e outros sítios por onde andaram os Leões Negros.
Aqui fica a divulgação da data e local da vossa festa. É simpártico o teu convite, mas -como deves imaginar - não poderei estar convosco nessa data. No dia 14, também deveremos ter um encontro, a nível da nossa tertúlia, em Montemor-o-Novo.
De qualquer modo, ajuda também a divulgar o nosso blogue:
Luís Graça & Camaradas da Guiné > http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com
O meu endereço de e-mail é o seguinte > luis.graca@ensp.unl.pt
Também podes telefonar-me, nos dias úteis, directamente para: 21 751 21 38 (das 9 às 17h).
Guiné 63/74 - P1078: Estórias avulsas (2): Uma boleia 'by air' até Nova Lamego para uma noite de fados (Joaquim Mexia Alves)
Texto de Joaquim Mexia Alves, ex-alferes miliciano de operações especiais, durante o período de Dezembro de 1971 a Dezembro de 1973, pertenceu a: (i) ; CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas); (ii) Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) ; e (iii) CCAÇ 15 (Mansoa) .
Caro Luís Graça:
Mais uma história, verdadeira, claro está (1).
A Visita Aérea às Companhias que não aconteceu.
Quando estava na Ponte de Udunduma com o Pel Caç Nat 52, fui chamado a Bambadinca, para reforçar a CCAÇ 12, numa qualquer operação de que não me lembro, mas na qual nada deve ter acontecido, pois senão até a minha fraca memória se lembraria.
A verdade é que ao fim da manhã (a operação começaria ao fim da tarde), quando já estava em Bambadinca a fim de combinar a coisa com o meu grande amigo Capitão Bordalo, comandante da CCAÇ 12, e os seus Alferes, aterra uma DO 27 na pista do quartel.
É sabido, pelo menos no meu tempo assim era, que os Comandantes de Batalhão (passo a crítica jocosa), se pelavam por uma voltinha de avião ou helicóptero, com a desculpa da visita às Companhias mais afastadas.
É curioso que as colunas de abastecimento, pelos vistos, não serviam tal propósito, vá-se lá saber porquê, o que pelo menos no caso do meu batalhão era uma realidade.
Mas, voltando aos factos, logo o Comandante do Batalhão [ BART 3873, Bambadinca, 1972/74] se deslocou à pista para tomar assento no avião e dar a sua volta aérea (1).
Foi então que o piloto, grande amigo meu de Monte Real, e que penso não se importa que aqui deixe o seu nome, Jaime Brandão, perguntou por mim, e convidou-me para ir com ele até Nova Lamego, pois iria acontecer uma noite da fados, e era muito importante a presença da minha voz. (Já perceberam que na altura eu cantava o fado e, segundo dizem, bastante bem).
Acrescentou ele que não havia problema, pois no outro dia voltava a Bissau e no caminho deixava-me em Bambadinca. (Era fácil, declaravam uma porta aberta e assim tinham de aterrar).
A cara do Comandante era indescritivel e eu disse ao Jaime que era impossível porque tinha aquela operação.
Voltamos para a messe e passadas uma hora ou duas ouve-se um helicóptero aterrar e aí o Comandante disse:
- Agora é que é!!!
Claro que fui também até à pista.
Do helicóptero sai o Pedro Melo Ribeiro, outro amigo de Lisboa, que não era piloto mas vinha a acompanhar, e me diz:
- É pá, vimos-te buscar porque esta noite há fados em Nova Lamego e o pessoal disse logo que tu eras imprescindivel!!!
A vossa imaginação está agora com certeza a ver a cara do Tenente-Coronel, com o espanto e sei lá mais o quê bem retratado na fisionomia.
Claro que dei a mesma resposta e retirei-me para a messe, sob os olhares gozões de uns e o olhar reprovador de outro, que não sabia bem o que fazer e até talvez meditando na importância da minha pessoa.
Por volta das 3 ou 4 horas da tarde, depois de uns uísques bebidos para animar as tropas, aterra outra DO 27, e o Comandante entre, incrédulo e ansioso, lá se dirigiu para a pista, comigo e já um número de camaradas a acompanhar.
Era novamente o Jaime Brandão, que com um sorriso dispara:
- Então vens ou não?
Escusado será dizer que a resposta foi a mesma e que o Comandante neste momento já não tinha cara, mas uma máscara de incredulidade, espanto, irritação, etc. etc.
Nos dias que se seguiram o gozo foi enorme, umas vezes mais descarado, outras mais disfarçado.
À noite lá fomos para a operação que, como digo acima, não teve nada de especial a reportar.
E assim aconteceu a visita aérea que... não aconteceu!!!!
Durante uns tempos foi lenitivo para as agruras e desconforto da guerra e só por isso já foi muito bom!!!
Abraço do
Joaquim Mexia Alves
____________
Nota de L.G. ;
(1) Vd. post de 7 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1056: Estórias avulsas (1): Mato Cão: um cozinheiro 'apanhado' (Joaquim Mexia Alves)
(2) Tenente-coronel António Tiago, já falecido: vd. post de 17 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P966: O Mexia Alves que eu conheci em Bambadinca (António Duarte, CCAÇ 12, 1973)
sexta-feira, 15 de setembro de 2006
Guiné 63/74 - P1077: A tragédia do Quirafo (Parte V): eles comem tudo! (Paulo Santiago)
Guiné > Região de Bafatá > Saltinho > Fevereiro de 2005 > O abutre ou jagudi. Foto do João Santiago, filho do Paulo Santiago, que o acompanhou na viagem de todas as emoções.-
Foto: © João/Paulo Santiago (2006)
Texto do Paulo Santiago (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72)
Luís:
Aqui segue mais um mail para ver a estirpe do proveta [Capitão Lourenço, comandante da CCAÇ 3490, sedeada no Saltinho, 1972/74]
Passaram-se uns quinze dias após o meu regresso de um mês de licença na metrópole. O Lourenço estava de férias e a companhia andava abúlica e acabrunhada. Tinha passado muito pouco tempo sobre a Tragédia do Quirafo (1).
Naquela manhã encontrava-me no bar, quando se aproxima um heli. Dirijo-me ao heliporto e distingo, quando a aeronave baixa, o Caco Baldé. Vinha acompanhado pelo seu novo ajudante de campo, Cap Ayala Boto e pelo Major Fabião.
Após os cumprimentos da praxe, o Spínola pergunta-me pelo comandante da companhia, respondendo-lhe estar de licença e apenas um dos Alferes, o Garcia, estar no quartel
Os outros dois estavam nos destacamentos. O Garcia tinha ficado no bar de volta da bazooka matinal para a hepatite. O Fabião mandou um soldado chamá-lo. O General vai-me interrogando sobre o que se passa na companhia, falo-lhe no moral muito em baixo, ao que ele me interroga de novo:
- E para além disso?
Fico intrigado sem saber onde ele quer chegar. Aproxima-se o Garcia, de farda nº2 e chinelos de enfiar no dedo, o Fabião passa-lhe uma descasca, o Caco não se pronuncia. Fico a saber o que se passa, o Major saca do bolso um papel: era uma carta enviada por um soldado da companhia ao Spínola, queixando-se da comida. O Fabião relata-me por alto o que vem na carta: durante a sobreposição com a 2701, comiam bem e com qualidade, após aquela companhia ir embora a comida era péssima...
Concordei ser verdade, eu próprio já tinha comentado com os meus Furrieis a superior qualidade das ementas no tempo da CCAÇ 2701. Não estive presente durante a sobreposição, mas sabia do que se passava antes de ir para Bambadinca.
O General entra nas casernas-abrigos, onde alguns militares ainda estavam deitados, e vai ouvindo as queixas expostas na carta. Correu todas as casernas, dirigindo-se em seguida ao depósito de géneros. Pede as ementas ao Vaguemestre e, após consulta, diz-lhe:
-O senhor tem pouco jeito para isto. Os recursos são poucos mas falta-lhe imaginação.
Vira-se para o 1º Sargento:
-Explique-me como era possível comerem com qualidade com a outra companhia e terem lucro e agora comem mal e logo no primeiro mês têm um prejuízo de trinta contos?
Responde o 1º Sargento:
-Meu General, não tenho nada a ver com isso. O nosso Capitão disse-me, ainda antes de aqui chegarmos, as contas da alimentação e cantina eram só com ele e com o vaguemestre.
-Estou esclarecido, diz o Caco -. E, virando-se para o Ayala, diz-lhe:
-Toma nota para chamares o Capitão à minha presença no dia do regresso de férias.
Fala pela primeira vez para o Alf Garcia:
-Senhor Alferes, tem dois dias para substituir o vaguemestre. Passa-o para atirador e escolhe um atirador para o render no depósito de géneros. Informe após substituição. Quero o 1º sargento metido nas contas.
Houve melhorias após a visita do Caco.
Paulo Santiago (2)
_____________
Nota de L.G.:
(1) Vd. posts anteriores:
23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P980: A tragédia do Quirafo (Parte I): o capitão-proveta Lourenço (Paulo Santiago)
25 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P986: A tragédia do Quirafo (Parte II): a ida premonitória à foz do Rio Cantoro (Paulo Santiago)
26 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P990: A tragédia do Quirafo (parte III): a fatídica segunda-feira, 17 de Abril de 1972 (Paulo Santiago)
28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1000: A tragédia do Quirafo (Parte IV): Spínola no Saltinho (Paulo Santiago)
(2) O subtítulo deste post é da responsabilidade do editor do blogue: é um verso do refrão da célebre canção de protesto do Zé Afonso, muito em voga na época, Vampiros:
Eles comem tudo,
Eles comem tudo,
Eles comem tudo,
E não deixam nada!
Guiné 63/74 - P1076: Álbum das glórias (4): Eu e o coronel Cunha Ribeiro, o nosso 'major eléctrico' (Mário Beja Santos)
Texto e foto: © Beja Santos (2006)
Fotografia enviada em 24 de Agosto de 2006 pelo nosso camarada Beja Santos.
Cá estou eu, de braço dado com o Coronel Ângelo Augusto da Cunha Ribeiro (1), de quem guardo afetuosa recordações.
A fotografia foi tirada numa reunião de convívio do pessoal de Bambadinca (1968/71), em Fão, em 1994. A senhora ao lado é a sua mulher.
Do Cunha Ribeiro haverá menção a partir de Setembro de 69 e o seu inesquecível carinho aquando dos trágicos acontecimentos da mina de Canturé (2).
Mário Beja Santos
(ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70)
__________
Notas de L.G.
(1) Major do BCAÇ 2852. Substituiu em Setembro de 1969 o major Viriato Amílcar Pires da Silva, transferido por motivos disciplinares (2). Foi vítima de acidente grave com um jipe. Era mais conhecido, na caserna - e nomeadamente pela malta da CCAÇ 12 - como o 'major eléctrico', devido à sua energia...
(2) O major Pires da Silva era de operações, sendo comandante do BCAÇ 2852 o tenente-coronel Pimentel Bastos: vd. posts de:
1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1012: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (3): Eu e o BCAÇ 2852, uma amizade inquebrantável )
1 de Agosto de 2006> Guiné 63/74 - P1014: A galeria dos meus heróis (5): Ó Pimbas, não tenhas medo!) (Luís Graça)
4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1025: Tenente-coronel Pimentel Bastos: a honra e a verdade (Luís Graça)
Guiné 63/74 - P1075: O soldado desconhecido de Mansoa (Aires Ferreira, CCAÇ 1686, BCAÇ 1912)
Texto do Aires Ferreira, Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, CCAÇ 1686, BCAÇ 1912 - CCAÇ 1686, Mansoa, 13 de Abril de 1967/13 de Maio de 1969)
O soldado desconhecido de Mansoa
Como o Mundo é pequeno!!
Quem diria, Caro Dr. Beja Santos, que o soldado Fernandes tinha ido parar ao seu querido destacamento de Missirá!! ! (1)
O soldado Fernandes pertenceu à minha Companhia, a CCAÇ 1686. Tinha a alcunha de Atleta e foi sem dúvida o soldado mais conhecido de Mansoa.
Pelas suas características psíquicas, não devia ter sido apurado para todo o serviço militar e muito menos ter sido enviado para a Guiné integrado numa companhia de Caçadores. Mas foi. Era um homem muito estranho, afável, disciplinado e tinha inteligência embora não parecesse.
Fez a guerra à sua maneira, ganhou um estatuto especial na hierarquia e teve sorte, muita sorte. Fez todas as Operações, fazia questão de ir sempre na frente e era bom a combater, um pouco temerário, por vezes.
Nos almoços [de convívio do BCAÇ 1912] que fazemos todos os anos, o Atleta é sempre o primeiro a chegar, seja onde for o almoço, de bicicleta, a pé, à boleia, nunca falta.
É hoje uma espécie de mascote do Batalhão e fazemos sempre uma colecta que rende algumas centenas de Euros que lhe são entregues, o que o faz muito feliz, pelo menos por uns dias.
Sobre a ida até Bambadinca e outras aventuras, escreverei noutro dia. Por hoje chega. A velhice de Mansoa cá continua sentada.
O próximo Post que enviar, incluirá uma estória do Paulo Raposo (2) que terá por título A Geladeira. Ele que se cuide.
Um abraço.
Aires Ferreira
___________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1070: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (10): A visita do soldado desconhecido
(...) "Estávamos siderados a ouvir este relato. Mansoa, em linha recta, estava pelo menos a 120 km. A fazermos fé neste relato, o Fernandes percorrera todos os perigos, arriscara tudo, inclusive tivera sorte na entrada à sorrelfa, sabe-se lá porque porta. Mandei chamar o sentinela junto ao cavalo de frisa. Estava de vigia Cibo Indjai, jurou nada ter visto, nada ter ouvido. Em que acreditar: desertou, veio a monte por várias florestas e está a ser sincero, será que há uma operação aqui perto e ter-se-à perdido, arranjando esta história que não é boa nem má?" (...)
(2) Recebemos ontem um e-mail do Paulo Raposo, sobre o "soldado desconhecido de Mansoa", que rezava assim:
Olá, rapaziada!
Não tenho ideia deste assunto.
A nossa CCAÇ 2405, a Gloriosa, "se tivéssemos estado mais tempo na Guiné, tínhamos acabado com a guerra", era limpinho.
Esteve em Mansoa de Agosto a Dezembro de 1968. O BCAÇ 1911 ainda ficou por lá, julgo que sentados.
No entanto vou pedir ao meu cripto para mandar um rádio, cifrado, a pedir informações ao Felício (Barão de Montanelas) e ao David (Visconde de Vale de Cavalos), pois talvez saibam de alguma coisa, que duvido, pois a esclerose deles é do tamanho da minha.
Um quebra-costelas do Almançor
O soldado desconhecido de Mansoa
Como o Mundo é pequeno!!
Quem diria, Caro Dr. Beja Santos, que o soldado Fernandes tinha ido parar ao seu querido destacamento de Missirá!! ! (1)
O soldado Fernandes pertenceu à minha Companhia, a CCAÇ 1686. Tinha a alcunha de Atleta e foi sem dúvida o soldado mais conhecido de Mansoa.
Pelas suas características psíquicas, não devia ter sido apurado para todo o serviço militar e muito menos ter sido enviado para a Guiné integrado numa companhia de Caçadores. Mas foi. Era um homem muito estranho, afável, disciplinado e tinha inteligência embora não parecesse.
Fez a guerra à sua maneira, ganhou um estatuto especial na hierarquia e teve sorte, muita sorte. Fez todas as Operações, fazia questão de ir sempre na frente e era bom a combater, um pouco temerário, por vezes.
Nos almoços [de convívio do BCAÇ 1912] que fazemos todos os anos, o Atleta é sempre o primeiro a chegar, seja onde for o almoço, de bicicleta, a pé, à boleia, nunca falta.
É hoje uma espécie de mascote do Batalhão e fazemos sempre uma colecta que rende algumas centenas de Euros que lhe são entregues, o que o faz muito feliz, pelo menos por uns dias.
Sobre a ida até Bambadinca e outras aventuras, escreverei noutro dia. Por hoje chega. A velhice de Mansoa cá continua sentada.
O próximo Post que enviar, incluirá uma estória do Paulo Raposo (2) que terá por título A Geladeira. Ele que se cuide.
Um abraço.
Aires Ferreira
___________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1070: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (10): A visita do soldado desconhecido
(...) "Estávamos siderados a ouvir este relato. Mansoa, em linha recta, estava pelo menos a 120 km. A fazermos fé neste relato, o Fernandes percorrera todos os perigos, arriscara tudo, inclusive tivera sorte na entrada à sorrelfa, sabe-se lá porque porta. Mandei chamar o sentinela junto ao cavalo de frisa. Estava de vigia Cibo Indjai, jurou nada ter visto, nada ter ouvido. Em que acreditar: desertou, veio a monte por várias florestas e está a ser sincero, será que há uma operação aqui perto e ter-se-à perdido, arranjando esta história que não é boa nem má?" (...)
(2) Recebemos ontem um e-mail do Paulo Raposo, sobre o "soldado desconhecido de Mansoa", que rezava assim:
Olá, rapaziada!
Não tenho ideia deste assunto.
A nossa CCAÇ 2405, a Gloriosa, "se tivéssemos estado mais tempo na Guiné, tínhamos acabado com a guerra", era limpinho.
Esteve em Mansoa de Agosto a Dezembro de 1968. O BCAÇ 1911 ainda ficou por lá, julgo que sentados.
No entanto vou pedir ao meu cripto para mandar um rádio, cifrado, a pedir informações ao Felício (Barão de Montanelas) e ao David (Visconde de Vale de Cavalos), pois talvez saibam de alguma coisa, que duvido, pois a esclerose deles é do tamanho da minha.
Um quebra-costelas do Almançor
Guiné 63/74 - P1074: O Paulo Raposo, o Padre Mário e o Batalhão de Caçadores 1912, Mansoa (Aires Ferreira, CCAÇ 1686)
Texto do Aires Ferreira, Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas (CCAÇ 1686, BCAÇ 1912, Mansoa, 13 de Abril de 1967/13 de Maio de 1969)
Caro Luís Graça e Camaradas da Tertúlia:
Sou muito periquito por aqui. Solicitei a minha inscrição no Post 1002 (1) e não voltei a intervir. Não sei se por causa das férias, se por ter diminuído o entusiasmo inicial.
Enfim, seja como for, cá estou de novo e começo por fazer duas pequenas observações:
(i) A primeira é para o Paulo Raposo que se refere sempre ao Batalhão de Mansoa como sendo o 1911, o que não é verdade. O 1911 fez a viagem connosco no UIGE e fez a sua comissão em Bula. (Salvo erro).
O Batalhão de Mansoa foi o 1912, desde 13 de Maio de 1967 até 13 de Maio de 1969. O seu a seu dono.
(ii) A segunda é para o Luís Graça e reza assim: Não foi o 1912 que expulsou o Padre Mário (2) do seu seio. Penso que nem tinha autoridade para o fazer. O que aconteceu, foi que o Padre Mário politizou fortemente as homilias das missas dominicais na Igreja Paroquial de Mansoa e isso criou problemas ao Comando do Batalhão. Além disso, a PIDE tinha em Mansoa um funcionário com escritório aberto.
Sei que o Comando foi por várias vezes chamado a Bissau e por fim o Padre Mário saiu de Mansoa.
Estávamos em 1967, éramos todos muito jovens e acho que faltou uma pitadinha de bom senso ao Padre Mário, para levar a água ao seu moinho. Ele que me perdoe, mas foi o que pensei na altura.
Aires Ferreira
___________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1002: Um novo recruta, Aires Ferreira (BCAÇ 1912, CCAÇ 1686, Mansoa, 1967/69)
(2) Eu tinha escrito o seguinte: "Até à data, o Padre Mário de Oliveira era, ironicamente, o único representante [na nossa tertúlia] do Batalhão de Caçadores 1912 que, de resto, o expulsou do seu seio"... Vd. outros posts sobre o Padre Mário, capelão do BCAÇ 1912 por 4 meses...
Vd. posts de:27 de Junho de 2005 > Guiné 60/71 - LXXXV: Antologia (5): Capelão Militar em Mansoa (Padre Mário da Lixa)
14 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCL: Capelão militar por quatro meses em Mansoa (Padre Mário da Lixa)
17 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXV: Foi em plena guerra colonial que nasci de novo (Padre Mário de Oliveira )
Caro Luís Graça e Camaradas da Tertúlia:
Sou muito periquito por aqui. Solicitei a minha inscrição no Post 1002 (1) e não voltei a intervir. Não sei se por causa das férias, se por ter diminuído o entusiasmo inicial.
Enfim, seja como for, cá estou de novo e começo por fazer duas pequenas observações:
(i) A primeira é para o Paulo Raposo que se refere sempre ao Batalhão de Mansoa como sendo o 1911, o que não é verdade. O 1911 fez a viagem connosco no UIGE e fez a sua comissão em Bula. (Salvo erro).
O Batalhão de Mansoa foi o 1912, desde 13 de Maio de 1967 até 13 de Maio de 1969. O seu a seu dono.
(ii) A segunda é para o Luís Graça e reza assim: Não foi o 1912 que expulsou o Padre Mário (2) do seu seio. Penso que nem tinha autoridade para o fazer. O que aconteceu, foi que o Padre Mário politizou fortemente as homilias das missas dominicais na Igreja Paroquial de Mansoa e isso criou problemas ao Comando do Batalhão. Além disso, a PIDE tinha em Mansoa um funcionário com escritório aberto.
Sei que o Comando foi por várias vezes chamado a Bissau e por fim o Padre Mário saiu de Mansoa.
Estávamos em 1967, éramos todos muito jovens e acho que faltou uma pitadinha de bom senso ao Padre Mário, para levar a água ao seu moinho. Ele que me perdoe, mas foi o que pensei na altura.
Aires Ferreira
___________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1002: Um novo recruta, Aires Ferreira (BCAÇ 1912, CCAÇ 1686, Mansoa, 1967/69)
(2) Eu tinha escrito o seguinte: "Até à data, o Padre Mário de Oliveira era, ironicamente, o único representante [na nossa tertúlia] do Batalhão de Caçadores 1912 que, de resto, o expulsou do seu seio"... Vd. outros posts sobre o Padre Mário, capelão do BCAÇ 1912 por 4 meses...
Vd. posts de:27 de Junho de 2005 > Guiné 60/71 - LXXXV: Antologia (5): Capelão Militar em Mansoa (Padre Mário da Lixa)
14 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCL: Capelão militar por quatro meses em Mansoa (Padre Mário da Lixa)
17 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXV: Foi em plena guerra colonial que nasci de novo (Padre Mário de Oliveira )
Guiné 63/74 - P1073: Álbum das glórias (3): A equipa de futebol de Missirá (Mário Beja Santos)
Texto e foto: © Beja Santos (2006)
Esta fotografia é da equipa que veio de Missirá [a Bambadinca], perdeu 11-1 não sei com quem. Felizmente posso identificar toda a gente:
(i) De joelhos, Ieró Djaló, um soldado das mílicias, que de vez em quando circulava sozinho entre Missirá e Finete, ao arrepio de todas as regras de segurança; depois o Furriel Casa Nova, eu, o Teixeira das transmissões, o Barbosa da boina verde e depois o Samba;
(ii) de pé, Mamadu Soncó, de quem iremos falar no final da minha comissão, Tribene (é o único Tribene que eu conheço), 1º Cabo Veloso, Mamadu Camará (1), Zé Pereira, Domingos da Silva, Bacari Djassi (de quem falaremos, quando o brigadeiro Spínola visitar Missirá em Fevereiro de 1969).
(iii) Por último, e ainda na segunda fila, o actual régulo do Cuor, Bacari Soncó. É um dos meus mais queridos amigos e rezo por ele todos os dias. Era 2º Comandante da Mílicia de Finete, militar muito devotado, um cavalheiro cujas gentilezas revelou enquanto vivi no Cuor. A última vez que combatemos juntos foi na Operação Anda Cá (2).
Os Soncó do meu tempo estão reduzidos a dois irmãos e filhos do régulo Malan Soncó restam dois: Túmulo, que é comerciante nos mercados de Bissau, e Abudu que trabalha num hotel do Algarve e que veio para Portugal em 1996.
Mário Beja Santos
(ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70)
____________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 13 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1068: O álbum das glórias (Beja Santos) (2): Misérias e grandezas de Mamadu Camará
(2) Antecedeu a Op Tigre Vadio, realizada um ano depois, em 1970: vd. de 27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças)
(...) "O relatório da Op Nada Consta será publicado em breve. Nela participou o nosso camarada Beja Santos, na altura comandante do Pel Caç Nat 52. O seu prisioneiro-guia estava confiado à guarda dos homens desta unidade, destacada em Missirá. Nesta operação realizada em Março de 1970, a Op Tigre Vadio, o comandante das forças terrestrs também foi, prática, o Alf Mil Beja Santos. Esta era, de resto, a sua zona de acção e era de Madina/Belel que, quase sempre, vinham as forças de guerrilha atacar Missirá e outros objectivos das NT" (...)
quinta-feira, 14 de setembro de 2006
Guiné 63/74 - P1072: Uma comunidade de afectos: relembrando o Furriel Branquinho (Pel Caç Nat 63) (Jorge Cabral)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Fá Mandinga > Pel Caç Nat 63 > Março de 1970 > Dois amigos, o Alf Mil Jorge Cabral, e o Fur Mil Branquinho.
Foto: © Jorge Cabral (2006)
Companheiro Luis,
Também graças ao blogue, estou a recordar os Amigos do Pelotão. Hoje é a vez do Branquinho.
Um grande Abraço
Jorge
Os Amigos
Todas as minhas estórias, aventuras e desventuras, foram vividas colectivamente, entre Amigos, no meu Pelotão, que constituía, acima de tudo, uma Comunidade de Afectos.
De todos, furriéis, cabos, soldados, guardo as mais gratas recordações, mas hoje quero realçar, porque é de Justiça, o meu Amigo Branquinho.
Ao longo da vida conheci e trabalhei com muita gente, mas jamais encontrei alguém tão leal. Entre nós, logo desde o início, estabeleceu-se uma tal cumplicidade, que nem sequer necessitávamos de palavras para nos entendermos. Juntos estivemos vinte e um meses, e nunca surgiu a mais leve desavença. O Branquinho, mais do que o meu braço direito, foi sempre o Amigo Certo, na Alegria e na Tristeza.
É tempo de te dizer, Branquinho, Obrigado! Pela quotidiana, sã e total fraternidade!
Às vezes eu próprio me interrogo. Saudades da guerra? De quê? Dos Amigos! E de entre eles, do Branquinho. De poder contar com um Amigo como ele, nesta época de compadrios, interesses e troca de favores, sim, faz-me sentir saudades!
Jorge Cabral
Guiné 63/74 - P1071: Historiografia da presença portuguesa em África (3): Mandingas soninqués, animistas, islamizados à força (Paulo Santiago / Beja Santos)
René Pélissier - História da Guiné: Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936. Lisboa: Editorial Estampa. 2 volumes, c. 600 pp. Preço de capa de cada volume: 14,27 € (mais IVA) .
Foto das capas: Editorial Estampa (2006) (com a devida vénia)
1. Mensagem do Paulo Santiago, enviada ao Beja Santos:
Camarada:
Escrevias há dias, no blogue, que estiveste como cooperante na Guiné, com alojamento na Cicer. Assim, deves ter conhecido o meu irmão mais negro, o Domingos Pereira, director daquela cervejeira.
Costumo ler alguns artigos teus na Soberania do Povo (1) que, ultimamente, com as mudanças que teve, está a pasquinizar-se, é a minha opinião.
Como conseguiste pôr Mandingas a cozinhar carne de porco ?
Um abraço
Paulo Santiago
(ex-Alf Mil, Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72)
2. Resposta do Beja Santos, ex- Alf Mil, Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70):
Caro Paulo, obrigado pela tua mensagem. Encurtando razões, fui cooperante em 1991 nos termos de um protocolo entre Portugal e Guiné-Bissau na área do Ambiente e da Defesa do Consumidor. Estive lá cerca de 5 meses na tentativa vã de criar a Comissão Interministerial da Defesa do Consumidor.
Eu estava pago com ajudas de custo como se estivesse em território nacional, pago pelo nosso governo, a Guiné-Bissau dava-me a pernoita e um motorista para as voltas de serviço. Naquele tempo ainda era possível jantar na Pensão da Berta (mesmo ao lado da Sé Catedral) e vir a pé até à Cicer (hoje corre-se o risco de ser esquartejado).
As minhas recordações na Cicer ficaram confinadas ao espaço agradável do meu quarto e aos frequentes cortes de luz quando estava a fazer relatórios ou escrever à família. Juro que não conheci o teu irmão mais negro. Já naquela altura a miséria era pungente e recordo que o guarda me pedia as giletes usadas, restos de sabonete, meias, toalhas...
Ficas a saber que a China Popular ofereceu à Guiné um estádio desportivo modelar que as autoridades não souberam manter e eu passava todas as noites por um gigantesco estádio reduzido ao silêncio e à inoperância (a luz não funcionava, a relva crescia desordenadamente, pilhava-se o vidro das portas...).
Ainda hoje tenho vertigens quando penso que o país que fez mudar a história de Portugal está de cócoras.
Sobre os mandingas islamizados, há muita coisa que nós não sabíamos na Guiné. Se puderes, compra a História da Guiné, por René Pélissier, em dois volumes (Editorial Estampa, 1989) (2). Ali ficarás a saber que os mandingas soninqués (mandingas do Oio ou Oincas) eram profundamente animistas e foram islamizados à força na segunda metade do século XIX. Daí que os meus fulas e mandingas viviam cheios de contradições entre o vinho e a carne de porco.
Mesmo antes de eu chegar, o porco de mato (eles diziam sim-sim) era comprado pelo vagomestre. Não esqueças ainda que só os arranchados é que comiam na Messe (oficial, furriéis, cabos portugueses, malta dos morteiros, desempanadores, etc.) e todos os outros comiam a bianda na tabanca. Que havia bebedeiras, havia pois uma noite um 1º cabo Papel entrou-me no abrigo completamente etilizado e perguntou-me se não queria dançar com ele e as bajudas que estavam no baile...
Espero ter satisfeito a tua curiosidade. Escreve sempre e espero ver-te na tal reunião anual que se prevê ter lugar em Dezembro (3).
Abraços do Tigre [de Missirá].
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Notas de L.G.
(1) Semanário de Águeda, o mais antigo do país, com 126 anos
(2) Vd. post de 7 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P944: Historiografia das guerras de África: colaboradores, precisam-se (Nuno Rubim)
(3) O Beja Santos não poderá estar, em princípio no nosso primeiro encontro, agendado para 14 de Outubro próximo, em Montemor-o-Novo, na Herdade da Ameira, por sugestão e iniciativa do Paulo Raposo. Para ele, o mais conveniente seriam as férias de Natal...
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Guiné 63/74 - P1070: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (10): A visita do soldado desconhecido
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > 1968 > Pel Caç Nat 52 > O improvisado padeiro, Jobo Baldé, a amassar a farinha num cunhete de granadas de bazuca.
Capa do livro Agatha Christie, Poirot desvenda o passado. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Vampiro, 1). tr. do inglês, Five Little Pigs). Ilustração de inspiração surrealista do artista Cândido Costa Pinto.
Texto e fotos: © Beja Santos (2006)
Mensagem do Beja Santos, com data de 1 de Setembro de 2006:
Caro Luís, segue mais colaboração e por muito que te surpreendas o que aqui se relata no essencial aconteceu. Espero que tenhas tido umas belissimas férias. Como se aproxima o ano lectivo decidi ir gozar uma última semana no meu casebre no concelho de Pedrogão Grande. Lá estarei até 11 de Setembro, depois de fazer os últimos exame na tarde de 4.
Atendendo a que estou a desenhar um rol de memórias que poderá ter uma extensão apreciável, tendo em conta tudo aquilo que li dos depoimentos dos nossos camaradas em que nada se aproxima deste projecto de longo fôlego, para evitar susceptilidades ou mal entendidos quanto à natureza deste cometimento, talvez valha a pena eu dispor da tua opinião sincera da melhor estrutura e uso no espaço e no tempo dentro do blogue. Quando tu quiseres, a partir de 12 de Setembro, conversamos à mesa ou por telefone.
Um abraço do Mário.
Comentário de L.G.:
Obrigado, Mário, por quereres e poderes partilhar connosco as tuas memórias do Cuor - para além da tua grande sensibilidade e cultura -, uma região da Guiné que nos fascinou a todos, e onde passámos bons e maus momentos... Por mim tens autoestrada e via verde para seguires em frente. O resto da tertúlia dirá da sua justiça e do seu agrado em relação aos teus posts. A reacção tem sido positiva, como sabes. Espero que os camaradas e amigos nos escrevam, deixando as suas críticas, aplausos e pateadas, observações, informações complementares, etc.
Deixa-me que te diga que esta estória é fantástica: refiro-me ao episódio rocambolesco que hoje contas, do 'soldado desconhecido' do Batalhão de Mansoa que foi parar ao teu prato da sopa... O tal Fernandes (se a tua memória de elefante não te atraiçoa, quase 40 anos depois) deveria ser do tempo do Paulo Raposo, que esteve cinco meses em Mansoa, com a companhia dele (CCAÇ 2405) antes de ir para o leste… Presumo que o tipo fosse do BCAÇ 1911. Será que o Paulo (ou alguém mais, da nossa tertúlia) ouviu falar desta estranha estória ? Um abração. LG
Continuação da publicação das memórias do Mário Beja Santos, ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70)(1)
A visita do soldado desconhecido
por Beja Santos
Nada previa que não fosse um fim de tarde como todos os outros. Como num ritual bem encenado, por volta das 18:30 Umaru Baldé, o segundo cozinheiro, avisava-me que todos estavam à mesa à minha espera. A essa hora, a escala de serviço estava a ser cumprida, um longo e progressivo silêncio ia tomando conta de Missirá.
Banhado e escovado, fazia a ronda pelos petromaxes, olhava para o exterior dos 5 postos de vigia como estivesse garantida uma noite de paz, e entrava num espaço que com muita imaginação se chamava a messe: uma divisão que o Teixeira das transmissões cimentou a preceito, uma mesa coberta com oleado, havia três bancos, algumas cadeiras de vime e um armário que se limpava todos os dias para remover as poeiras que queriam tomar conta de pratos, copos e talheres. É num dos cantos desta divisão que se irá instalar no próximo Natal o Presépio de Chicri.
A messe era encimada por um petromax, e aí por Outubro o Barbosa com ajuda de dois camaradas fez uma porta de mosquiteiro. Os soldados tanto do Pel Caç Nat 52 como das Milícias estavam desarranchados e comiam com as suas famílias. Mesmo com muita dificuldade, muitas vezes acocorei-me a comer em grupo a bianda e o respectivo chabéu metendo a mão na cabaça e levando à boca... era horrível em termos higiénicos mas selava solidariedade das instaladas.
Sentavam-se pois à mesa o oficial, os furrieis e as praças num total que variava entre seis e onze pessoas. Era neste espaço que de vez em quando eu convidava Lânsana Soncó, o marabu, para tomar chá e comer pão fresco feito por Jobo Baldé. Guardo uma fotografia do Jobo a amassar a farinha num cunhete de granadas de bazuca (vd. foto acima).
Ora aquela noite foi igual a tantas outras: o inevitável bacalhau cozido para fugir às carnes horríveis que nessa altura o Doutor (2) ainda preparava na sua santa inocência (mais tarde tornou-se exigente, estou convencido que se julgava um Chef, fizemos uma grande amizade que se reforçou quando ele pelas 6h da manhã de 1 de Janeiro de 1970 enfiou acidentalmente seis tiros em Uam Sambu, quando regressávamos de uma emboscada); comentaram-se as trivialidades do dia a findar e fez-se uma conversa mole à volta das coisas a fazer no dia seguinte. Findo o repasto (a que não faltava fruta da região ou em lata) seguia-se um período de sociabilidade lúdica, onde o loto a feijões era o rei da festa.
Como se fosse hoje e neste instante, eu olho do petromax para a porta enquanto ponho o nº 6 no respectivo cartão e vejo emergir nas sombras da parada e estacar no limiar da entrada com uma expressão alucinada um ilustre militar desconhecido (e digo militar porque ele vinha fardado com o camuflado português) e gritar como se estivesse em delírio:
- Onde é que eu estou, quem são vocês, quem me dá de comer?
E, lançada esta súplica, caiu redondo no chão. Como num filme em câmara lenta, pusemo-nos de pé, voltei-me para o Saiegh e disse-lhe:
- Ou vamos ser atacados, ou este tipo é um desertor ou temos tropas nossas aqui perto com a originalidade de nos mandar com todos os riscos este informador!
Em escassos segundos, foram tomadas algumas decisões: todos os civis iriam obrigatoriamente para os abrigos, os militares para os seus postos, a segurança reforçada. O militar desconhecido, em padiola e inanimado, seguiu para um abrigo onde eu quis interrogá-lo; à cautela, o Doutor preparou uma porção de arroz e abriu uma lata de salsichas, mais cerveja e fruta. No abrigo, o militar desconhecido abriu os olhos e virou-se para o outro lado.
Julguei imprudente enviar uma mensagem para Bambadinca a informar a chegada do visitante sem saber os pormenores ou, pelo menos, conhecer-lhe a versão da visita. Só passado meia hora ele recobrou o ânimo e atirou-se sofregamente a seis pares de salsichas, ao tarro de arroz branco, bebeu dois litros de cerveja e pediu mais, satisfez-se silenciosamente com papaia. À sua volta, esperavamos pacientemente a revelação da inusitada visita. Bem comido , e quando insisti em conhecer-lhe a identidade, encostado a um cadeirão de vime ele anunciou:
- Sou o Fernandes, pertenço ao Batalhão de Mansoa (3), fui raptado há não sei quanto tempo pelos turras quando tomava banho numa bolanha, levaram-me para um quartel deles, logo que pude fugi, desatei a correr pelo mato e aqui há um bocado vi as luzes, entrei sem perguntar nada a ninguém e aqui estou. Vocês não me vão matar, pois não?
Guiné > Região do Oio > Mansoa > CCAÇ 2405 > 1968 > O Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852, esteve cinco meses em Mansoa, antes de partir para a zona leste, o sub-sector de Gamolaro. A placa indica que a distância por estrada (interdita) de Mansoa a Bafatá, passando por Missirá, era de 96 Km
Foto: © Paulo Raposo (2006)
Estavamos siderados a ouvir este relato. Mansoa, em linha recta, estava pelo menos a 120 km. A fazermos fé neste relato, o Fernandes percorrera todos os perigos, arriscara tudo, inclusivé tivera sorte na entrada à sorrelfa, sabe-se lá porque porta. Mandei chamar o sentinela junto ao cavalo de frisa. Estava de vigia Cibo Indjai, jurou nada ter visto, nada ter ouvido. Em que acreditar: desertou, veio a monte por várias florestas e está a ser sincero, será que há uma operação aqui perto e ter-se-à perdido, arranjando esta história que não é boa nem má?
Enquanto se mantinha o dispositivo de segurança, enviei uma mensagem para Bambadinca. E como não havia mais nada de verdadeiramente útil para fazer, deixei o dito Fernandes a dormir vigiado por um militar armado. Fomos descansar, aproveitei para ler até chamar o sono, a resposta chegou via rádio ao princípio da manhã: o batalhão de Mansoa confirmava a existência do Fernandes que fora tomar banho imprevidentemente numa bolanha sozinho e que não voltara a aparecer. Bambadinca pedia a presença do Fernandes. O soldado desconhecido acordara retemperado, fez a sua higiene e perguntou como era a vida ali. A certa altura descobriu que o Veloso era um quase patrício. E depois do mata-bicho até me perguntou candidamente:
- Ó meu alferes, isto até parece malta porreira, acha que eu posso pedir transferência para aqui?
E rumámos para Finete, contei ao Basilo e Bacari Soncó esta história, Finete em peso veio conhecer o ressuscitado. O mesmo se iria passa em Bambadinca onde o militar desconhecido conversou amenamente com meio mundo. Na tarde desse mesmo dia, confirmados todos os pormenores desta súbita aparição em Missirá, uma DO levou o Fernandes para Mansoa. Como é próprio destas coisas, o episódio foi esquecido embora deva constar de algum relato. Espero que o Fernandes esteja bem e, caso alguém o conheça, venha aderir ao nosso blogue.
Embora corra o risco de tornar este relato sofisticado e ainda mais surreal, guardei recordação do livro que estava então a ler. Assim como irei escrever que a 6 de Setembro de 1968 quando Missirá foi flagelada eu estava a ler As Sandálias do Pescador, de Morris West, peço que acreditem que quinze dias antes quando o Fernandes dormia a sono solto em Missirá eu relia um dos livros da minha vida: Poirot desvenda o passado, de Agatha Christie (vd. foto da capa, acima).
Foi o livro que me fez ganhar gosto pela intriga policial. Sabiamente construido numa trama clássica de investigação, relata uma reposição da verdade a partir de uma cliente que pede ao célebre detective belga que investigue o envenenamento e a morte do seu pai 15 anos antes. A sua mãe fora julgada e condenada por homicídio. Antes de morrer na prisão escrevera à filha confessando-lhe a sua total inocência. Poirot vai falar em primeiro lugar com os protagonistas da defesa e da acusação, depois com a polícia, depois com a família e os amigos, todos aqueles que viveram um episódio dramático. Como era habitual na estrutura novelística de Agatha Christie, a revelação final pesa no esplendor da sua descodificação, esmagando-nos com a revelação do assassino. E, claro está, Poirot brilha ao desmontar os factos completamente omitidos no processo judicial.
Muito mais tarde, em Lisboa, comprei um reedição deste nº 1 da Colecção Vampiro. Guardo como relíquia mas também por outra razão: a capa é deslumbrante. Um grande artista surrealista, Cândido da Costa Pinto, trabalhava para Livros do Brasil e para quem duvida da grande importância das artes gráficas e da importância do design na apresentação de uma obra, peço que vejam ao pormenor os primeiros cem livros da Vampiro. Felizmente que já se prestou a devida homenagem ao talento do Cândido, naquelas noites de Missirá ele foi um bom companheiro e contribuiu para intensificar o prazer que tenho no design gráfico.
Aproveitei aquela coluna inesperada a Bambadinca para trazer materiais de construção para melhorar a segurança do quartel de Finete. E decidi passar uma semana nesta povoação onde à noite via o bruxelear das luzes de Bambadinca e ouvia os ruídos do Geba. Foi nessa altura que nasceu a minha profunda amizade por Bacari Soncó e Fodé Dahaba. Eu vou contar.
______
Notas de L.G.
(1) Vd. último post, de 8 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1058: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (9): Kaputt
(2) Vd. post de 7 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P0157: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (8): Os meus novos amigos de Missirá
(...) "O Doutor era o petit nom afectuoso de Quebá Sissé, um mandinga todo desengonçado que falava permanentemente a rir. Apercebi-me rapidamente que era uma violência falar de culinária com o Doutor. Comida para ele era bacalhau cozido com batatas. Quando lhe falei em assar, assegurou-me que era impossível pois ficava queimado... Havia o frango, as conservas (o famigerado pé de porco), as compras de porco de mato ou gazela, carnes que não me pareciam apetecíveis.
Levei o Quebá Sissé e o Umaru Baldé para Bambadinca, com uma proposta de estágio nas messes de oficiais, sargentos e praças. E o que era fome passou a fartura. Passou-se a fazer a ementa semanal com os dois cozinheiros a sugerirem canjas, pratos de peixe, bifes de vaca, empadões e até doces. Eu, que vinha traumatizado de ter sido gerente de messe nos Açores, onde obriguei a guarnição a comer ovos de toda a maneira, chicharro e atum, torci o nariz, fui cortando naquelas propostas que julgava pantagruélicas, e sentenciei:
-Estamos em guerra, o dinheiro é pouco, não há luxos, façam simples e saboroso" (...).
(3) Possivelmente o BCAÇ 1911, que estava sedeado em Mansoa em meados de 1968 quando a CCAÇ 2405 (do BCAÇ 2852, com sede em Bambadinca) e o Paulo Raposo lá estiveram: vd. posts do Paulo Raposo
7 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXI: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (5): Periquito em Mansoa~
8 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (6); Mansoa, baptismo de fogo
11 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (7): A ida ao Morés: atenção, heli, aqui tropa à rasca
19 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (8): A ida para o leste
Capa do livro Agatha Christie, Poirot desvenda o passado. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Vampiro, 1). tr. do inglês, Five Little Pigs). Ilustração de inspiração surrealista do artista Cândido Costa Pinto.
Texto e fotos: © Beja Santos (2006)
Mensagem do Beja Santos, com data de 1 de Setembro de 2006:
Caro Luís, segue mais colaboração e por muito que te surpreendas o que aqui se relata no essencial aconteceu. Espero que tenhas tido umas belissimas férias. Como se aproxima o ano lectivo decidi ir gozar uma última semana no meu casebre no concelho de Pedrogão Grande. Lá estarei até 11 de Setembro, depois de fazer os últimos exame na tarde de 4.
Atendendo a que estou a desenhar um rol de memórias que poderá ter uma extensão apreciável, tendo em conta tudo aquilo que li dos depoimentos dos nossos camaradas em que nada se aproxima deste projecto de longo fôlego, para evitar susceptilidades ou mal entendidos quanto à natureza deste cometimento, talvez valha a pena eu dispor da tua opinião sincera da melhor estrutura e uso no espaço e no tempo dentro do blogue. Quando tu quiseres, a partir de 12 de Setembro, conversamos à mesa ou por telefone.
Um abraço do Mário.
Comentário de L.G.:
Obrigado, Mário, por quereres e poderes partilhar connosco as tuas memórias do Cuor - para além da tua grande sensibilidade e cultura -, uma região da Guiné que nos fascinou a todos, e onde passámos bons e maus momentos... Por mim tens autoestrada e via verde para seguires em frente. O resto da tertúlia dirá da sua justiça e do seu agrado em relação aos teus posts. A reacção tem sido positiva, como sabes. Espero que os camaradas e amigos nos escrevam, deixando as suas críticas, aplausos e pateadas, observações, informações complementares, etc.
Deixa-me que te diga que esta estória é fantástica: refiro-me ao episódio rocambolesco que hoje contas, do 'soldado desconhecido' do Batalhão de Mansoa que foi parar ao teu prato da sopa... O tal Fernandes (se a tua memória de elefante não te atraiçoa, quase 40 anos depois) deveria ser do tempo do Paulo Raposo, que esteve cinco meses em Mansoa, com a companhia dele (CCAÇ 2405) antes de ir para o leste… Presumo que o tipo fosse do BCAÇ 1911. Será que o Paulo (ou alguém mais, da nossa tertúlia) ouviu falar desta estranha estória ? Um abração. LG
Continuação da publicação das memórias do Mário Beja Santos, ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70)(1)
A visita do soldado desconhecido
por Beja Santos
Nada previa que não fosse um fim de tarde como todos os outros. Como num ritual bem encenado, por volta das 18:30 Umaru Baldé, o segundo cozinheiro, avisava-me que todos estavam à mesa à minha espera. A essa hora, a escala de serviço estava a ser cumprida, um longo e progressivo silêncio ia tomando conta de Missirá.
Banhado e escovado, fazia a ronda pelos petromaxes, olhava para o exterior dos 5 postos de vigia como estivesse garantida uma noite de paz, e entrava num espaço que com muita imaginação se chamava a messe: uma divisão que o Teixeira das transmissões cimentou a preceito, uma mesa coberta com oleado, havia três bancos, algumas cadeiras de vime e um armário que se limpava todos os dias para remover as poeiras que queriam tomar conta de pratos, copos e talheres. É num dos cantos desta divisão que se irá instalar no próximo Natal o Presépio de Chicri.
A messe era encimada por um petromax, e aí por Outubro o Barbosa com ajuda de dois camaradas fez uma porta de mosquiteiro. Os soldados tanto do Pel Caç Nat 52 como das Milícias estavam desarranchados e comiam com as suas famílias. Mesmo com muita dificuldade, muitas vezes acocorei-me a comer em grupo a bianda e o respectivo chabéu metendo a mão na cabaça e levando à boca... era horrível em termos higiénicos mas selava solidariedade das instaladas.
Sentavam-se pois à mesa o oficial, os furrieis e as praças num total que variava entre seis e onze pessoas. Era neste espaço que de vez em quando eu convidava Lânsana Soncó, o marabu, para tomar chá e comer pão fresco feito por Jobo Baldé. Guardo uma fotografia do Jobo a amassar a farinha num cunhete de granadas de bazuca (vd. foto acima).
Ora aquela noite foi igual a tantas outras: o inevitável bacalhau cozido para fugir às carnes horríveis que nessa altura o Doutor (2) ainda preparava na sua santa inocência (mais tarde tornou-se exigente, estou convencido que se julgava um Chef, fizemos uma grande amizade que se reforçou quando ele pelas 6h da manhã de 1 de Janeiro de 1970 enfiou acidentalmente seis tiros em Uam Sambu, quando regressávamos de uma emboscada); comentaram-se as trivialidades do dia a findar e fez-se uma conversa mole à volta das coisas a fazer no dia seguinte. Findo o repasto (a que não faltava fruta da região ou em lata) seguia-se um período de sociabilidade lúdica, onde o loto a feijões era o rei da festa.
Como se fosse hoje e neste instante, eu olho do petromax para a porta enquanto ponho o nº 6 no respectivo cartão e vejo emergir nas sombras da parada e estacar no limiar da entrada com uma expressão alucinada um ilustre militar desconhecido (e digo militar porque ele vinha fardado com o camuflado português) e gritar como se estivesse em delírio:
- Onde é que eu estou, quem são vocês, quem me dá de comer?
E, lançada esta súplica, caiu redondo no chão. Como num filme em câmara lenta, pusemo-nos de pé, voltei-me para o Saiegh e disse-lhe:
- Ou vamos ser atacados, ou este tipo é um desertor ou temos tropas nossas aqui perto com a originalidade de nos mandar com todos os riscos este informador!
Em escassos segundos, foram tomadas algumas decisões: todos os civis iriam obrigatoriamente para os abrigos, os militares para os seus postos, a segurança reforçada. O militar desconhecido, em padiola e inanimado, seguiu para um abrigo onde eu quis interrogá-lo; à cautela, o Doutor preparou uma porção de arroz e abriu uma lata de salsichas, mais cerveja e fruta. No abrigo, o militar desconhecido abriu os olhos e virou-se para o outro lado.
Julguei imprudente enviar uma mensagem para Bambadinca a informar a chegada do visitante sem saber os pormenores ou, pelo menos, conhecer-lhe a versão da visita. Só passado meia hora ele recobrou o ânimo e atirou-se sofregamente a seis pares de salsichas, ao tarro de arroz branco, bebeu dois litros de cerveja e pediu mais, satisfez-se silenciosamente com papaia. À sua volta, esperavamos pacientemente a revelação da inusitada visita. Bem comido , e quando insisti em conhecer-lhe a identidade, encostado a um cadeirão de vime ele anunciou:
- Sou o Fernandes, pertenço ao Batalhão de Mansoa (3), fui raptado há não sei quanto tempo pelos turras quando tomava banho numa bolanha, levaram-me para um quartel deles, logo que pude fugi, desatei a correr pelo mato e aqui há um bocado vi as luzes, entrei sem perguntar nada a ninguém e aqui estou. Vocês não me vão matar, pois não?
Guiné > Região do Oio > Mansoa > CCAÇ 2405 > 1968 > O Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852, esteve cinco meses em Mansoa, antes de partir para a zona leste, o sub-sector de Gamolaro. A placa indica que a distância por estrada (interdita) de Mansoa a Bafatá, passando por Missirá, era de 96 Km
Foto: © Paulo Raposo (2006)
Estavamos siderados a ouvir este relato. Mansoa, em linha recta, estava pelo menos a 120 km. A fazermos fé neste relato, o Fernandes percorrera todos os perigos, arriscara tudo, inclusivé tivera sorte na entrada à sorrelfa, sabe-se lá porque porta. Mandei chamar o sentinela junto ao cavalo de frisa. Estava de vigia Cibo Indjai, jurou nada ter visto, nada ter ouvido. Em que acreditar: desertou, veio a monte por várias florestas e está a ser sincero, será que há uma operação aqui perto e ter-se-à perdido, arranjando esta história que não é boa nem má?
Enquanto se mantinha o dispositivo de segurança, enviei uma mensagem para Bambadinca. E como não havia mais nada de verdadeiramente útil para fazer, deixei o dito Fernandes a dormir vigiado por um militar armado. Fomos descansar, aproveitei para ler até chamar o sono, a resposta chegou via rádio ao princípio da manhã: o batalhão de Mansoa confirmava a existência do Fernandes que fora tomar banho imprevidentemente numa bolanha sozinho e que não voltara a aparecer. Bambadinca pedia a presença do Fernandes. O soldado desconhecido acordara retemperado, fez a sua higiene e perguntou como era a vida ali. A certa altura descobriu que o Veloso era um quase patrício. E depois do mata-bicho até me perguntou candidamente:
- Ó meu alferes, isto até parece malta porreira, acha que eu posso pedir transferência para aqui?
E rumámos para Finete, contei ao Basilo e Bacari Soncó esta história, Finete em peso veio conhecer o ressuscitado. O mesmo se iria passa em Bambadinca onde o militar desconhecido conversou amenamente com meio mundo. Na tarde desse mesmo dia, confirmados todos os pormenores desta súbita aparição em Missirá, uma DO levou o Fernandes para Mansoa. Como é próprio destas coisas, o episódio foi esquecido embora deva constar de algum relato. Espero que o Fernandes esteja bem e, caso alguém o conheça, venha aderir ao nosso blogue.
Embora corra o risco de tornar este relato sofisticado e ainda mais surreal, guardei recordação do livro que estava então a ler. Assim como irei escrever que a 6 de Setembro de 1968 quando Missirá foi flagelada eu estava a ler As Sandálias do Pescador, de Morris West, peço que acreditem que quinze dias antes quando o Fernandes dormia a sono solto em Missirá eu relia um dos livros da minha vida: Poirot desvenda o passado, de Agatha Christie (vd. foto da capa, acima).
Foi o livro que me fez ganhar gosto pela intriga policial. Sabiamente construido numa trama clássica de investigação, relata uma reposição da verdade a partir de uma cliente que pede ao célebre detective belga que investigue o envenenamento e a morte do seu pai 15 anos antes. A sua mãe fora julgada e condenada por homicídio. Antes de morrer na prisão escrevera à filha confessando-lhe a sua total inocência. Poirot vai falar em primeiro lugar com os protagonistas da defesa e da acusação, depois com a polícia, depois com a família e os amigos, todos aqueles que viveram um episódio dramático. Como era habitual na estrutura novelística de Agatha Christie, a revelação final pesa no esplendor da sua descodificação, esmagando-nos com a revelação do assassino. E, claro está, Poirot brilha ao desmontar os factos completamente omitidos no processo judicial.
Muito mais tarde, em Lisboa, comprei um reedição deste nº 1 da Colecção Vampiro. Guardo como relíquia mas também por outra razão: a capa é deslumbrante. Um grande artista surrealista, Cândido da Costa Pinto, trabalhava para Livros do Brasil e para quem duvida da grande importância das artes gráficas e da importância do design na apresentação de uma obra, peço que vejam ao pormenor os primeiros cem livros da Vampiro. Felizmente que já se prestou a devida homenagem ao talento do Cândido, naquelas noites de Missirá ele foi um bom companheiro e contribuiu para intensificar o prazer que tenho no design gráfico.
Aproveitei aquela coluna inesperada a Bambadinca para trazer materiais de construção para melhorar a segurança do quartel de Finete. E decidi passar uma semana nesta povoação onde à noite via o bruxelear das luzes de Bambadinca e ouvia os ruídos do Geba. Foi nessa altura que nasceu a minha profunda amizade por Bacari Soncó e Fodé Dahaba. Eu vou contar.
______
Notas de L.G.
(1) Vd. último post, de 8 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1058: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (9): Kaputt
(2) Vd. post de 7 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P0157: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (8): Os meus novos amigos de Missirá
(...) "O Doutor era o petit nom afectuoso de Quebá Sissé, um mandinga todo desengonçado que falava permanentemente a rir. Apercebi-me rapidamente que era uma violência falar de culinária com o Doutor. Comida para ele era bacalhau cozido com batatas. Quando lhe falei em assar, assegurou-me que era impossível pois ficava queimado... Havia o frango, as conservas (o famigerado pé de porco), as compras de porco de mato ou gazela, carnes que não me pareciam apetecíveis.
Levei o Quebá Sissé e o Umaru Baldé para Bambadinca, com uma proposta de estágio nas messes de oficiais, sargentos e praças. E o que era fome passou a fartura. Passou-se a fazer a ementa semanal com os dois cozinheiros a sugerirem canjas, pratos de peixe, bifes de vaca, empadões e até doces. Eu, que vinha traumatizado de ter sido gerente de messe nos Açores, onde obriguei a guarnição a comer ovos de toda a maneira, chicharro e atum, torci o nariz, fui cortando naquelas propostas que julgava pantagruélicas, e sentenciei:
-Estamos em guerra, o dinheiro é pouco, não há luxos, façam simples e saboroso" (...).
(3) Possivelmente o BCAÇ 1911, que estava sedeado em Mansoa em meados de 1968 quando a CCAÇ 2405 (do BCAÇ 2852, com sede em Bambadinca) e o Paulo Raposo lá estiveram: vd. posts do Paulo Raposo
7 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXI: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (5): Periquito em Mansoa~
8 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (6); Mansoa, baptismo de fogo
11 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (7): A ida ao Morés: atenção, heli, aqui tropa à rasca
19 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (8): A ida para o leste
quarta-feira, 13 de setembro de 2006
Guiné 63/74 - P1069: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (13): Para quando África ?
Foto: © Paulo Salgado (2006)
Foto: © Paulo Salgado (2006)
Texto de Paulo Salgado (ex-Alf Mil Cav, CCAV 2712, Olossato e Nhacra, 1970/72; administrador hospitalar, actualmente cooperante em Bissau)
Meu Caro Luís Graça, Amigos (Camarigos):
Insatisfação ou discordância com a Tertúlia? Muitas vezes terá acontecido de tudo um pouco - não nego. Produziu-se tanto trabalho com nível que não me deixou indiferente e muito menos insatisfeito. Discordante, muitas vezes, e disso dei conta há meses atrás...
Quem está aqui em trabalho intenso, meses a fio, deixa coisas para contar num amanhã, escrevinha outras para uma memória que há-de ser escrita, agora e sempre falando da Guiné sob outros ângulos e com outras visões e tu perguntarás e os camaradas perguntarão:
- Por que razão não bombolaste? (1)
E eu:
- Consolei-me com as discussões à volta dos temas mais preferidos dos camaradas tertulianos:a guerra - certamente aquilo que mais sentem hoje, e ainda, na carne e na alma (2)...
Li as prosas do Marques Lopes, as críticas do Didinho (outsider muito crítico). Maravilhei-me com as palavras saborosas e sentidas do Beja Santos (que revi, em Bissau, aqui em 1991), andava ele preocupado com a limpeza e higiene dos alimentos .
Um dia entrou-me no gabinete:
- Você é que é o Paulo Salgado?
E depois fomos visitar o Coronel Jaquité... Lembras-te, Beja Santos, e do pôr-do-sol no Cumeré, depois da visitação e reencontro com esse inimigo amigo?
Pois é:
Já correm de novo as águas violentas no Saltinho;
Já ardeu a casa do Pansau em Uaque (ele, coitado, fugiu para Cabo Verde à procura de melhores dias - oxalá que não se tenha metido nos barcos para as Canárias...) (3);
Já andam a transplantar o arroz de novo;
Os putos brincam com carrinhos de papelão nos regatos das chuvas
e as bajudas lavam os corpos debaixo da chuva abençoada;
e o povo sempre com esperança...
As ONG proliferam (algumas têm valor, claro, outras, nem tanto...valha-me Deus, um qualquer)
e o Banco Mundial aperta. É a roda que roda...
Trabalho?
Sim, imenso.
Naquele perímetro hospitalar, nada de novo, infelizmente para mim, infelizmente - sobretudo - para os doentes;
E a cooperação é feita aos repelões...
Desculpa não falar da guerra,
das emboscadas que nos fizeram,
do Sebastião que morreu sem saber que estava numa guerra...
Do Horácio: - Meu alferes, eu tenho que apanhar uma hepatite para ser evacuado...
Desculpa, Luís.
Mas sabes:
Este ano ainda não chegou a cólera;
Valha-me Deus, é melhor nem pensar, pois aquele hospital está tão carenciado...
Já temos o que chegue e o que não chega:
- Olha, olhai: uma vez fizemos um golpe de mão e fomos deslocados para o objectivo em heli.
Sabes o que vimos? Tabancas ardidas pelos Fiats (não era assim que se chamavam os caças?) Velhas e velhos esbaforidos. E putos assustados. E encontrámos papéis espalhados no caminho: Soldados, desertai, esta guerra não serve ninguém... Bom, não me lembro se eram estas as palavras, mas os panfletos continuam numa gaveta em casa.
As cartas de amor/carinho/paixão/ - miudinhas, às vezes com minudências nuas cruas suaves - mas tão curiosas - do Lobo Antunes (4)- deixaram-me a pensar e a reflectir na grandeza e na pequenez que nós somos (quando a minha mulher mas lê ao fim destas tardes chuvosas de Agosto e Setembro - eu tinha-as trazido porque era do LA que se tratava).
- Ainda bem, dirás tu, com a tua benevolência. Ainda bem que somos grandes e pequeninos.
Esteve cá um parasitologista do INSA - Porto (5). Ficou admirado. Cientificamente, claro. O caso não era para menos:
- Há tantos parasitas.
E eu disse-lhe:
- Venha passar aqui uns mesitos e vai ver as troponossomíases, as bilharzioses, as filiarises (não sei se se escrevem assim estas doenças) e outras...
Sabes, Luís, anda aqui tanta gente: franceses, suecos, espanhóis, americanos, senegaleses, que sei eu? Até aconteceu a reunião da CPLP. E eu sem dar notícias...O bombolom não ecoou...
Lá no Hospital há traumatizados há meses à espera de intervenção. Era isto que eu ia contar?
Mas hoje apeteceu-me. 10 de Setembro de 2006. (Ouvi passar uma ambulância uivando - o que irá fazer ao Hospital com o doente?).
Se calhar foi porque me chegou às mãos Para Quando África, entrevista de René Holenstein a Joseph Ki-Zerbo, edição do Campo das Letras (Porto, 2006, c. € 14). Polémico, é certamente. Mas muito profundo.
Mantenhas pa tudus
Paulo Salgado
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd. o último 'bombolom' do Paulo Salgado, com data de 2 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCI: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (12): reviver o passado em Olossato
(2) Julgo que o último post assinado pelo Paulo Salgado foi de 3 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXVIII: Do Porto a Bissau (13): Notícias do Paulo Salgado Insatisfação ou discordância com a Tertúlia? Muitas vezes terá acontecido de tudo um pouco - não nego. Produziu-se tanto trabalho com nível que não me deixou indiferente e muito menos insatisfeito. Discordante, muitas vezes, e disso dei conta há meses atrás...
Quem está aqui em trabalho intenso, meses a fio, deixa coisas para contar num amanhã, escrevinha outras para uma memória que há-de ser escrita, agora e sempre falando da Guiné sob outros ângulos e com outras visões e tu perguntarás e os camaradas perguntarão:
- Por que razão não bombolaste? (1)
E eu:
- Consolei-me com as discussões à volta dos temas mais preferidos dos camaradas tertulianos:a guerra - certamente aquilo que mais sentem hoje, e ainda, na carne e na alma (2)...
Li as prosas do Marques Lopes, as críticas do Didinho (outsider muito crítico). Maravilhei-me com as palavras saborosas e sentidas do Beja Santos (que revi, em Bissau, aqui em 1991), andava ele preocupado com a limpeza e higiene dos alimentos .
Um dia entrou-me no gabinete:
- Você é que é o Paulo Salgado?
E depois fomos visitar o Coronel Jaquité... Lembras-te, Beja Santos, e do pôr-do-sol no Cumeré, depois da visitação e reencontro com esse inimigo amigo?
Pois é:
Já correm de novo as águas violentas no Saltinho;
Já ardeu a casa do Pansau em Uaque (ele, coitado, fugiu para Cabo Verde à procura de melhores dias - oxalá que não se tenha metido nos barcos para as Canárias...) (3);
Já andam a transplantar o arroz de novo;
Os putos brincam com carrinhos de papelão nos regatos das chuvas
e as bajudas lavam os corpos debaixo da chuva abençoada;
e o povo sempre com esperança...
As ONG proliferam (algumas têm valor, claro, outras, nem tanto...valha-me Deus, um qualquer)
e o Banco Mundial aperta. É a roda que roda...
Trabalho?
Sim, imenso.
Naquele perímetro hospitalar, nada de novo, infelizmente para mim, infelizmente - sobretudo - para os doentes;
E a cooperação é feita aos repelões...
Desculpa não falar da guerra,
das emboscadas que nos fizeram,
do Sebastião que morreu sem saber que estava numa guerra...
Do Horácio: - Meu alferes, eu tenho que apanhar uma hepatite para ser evacuado...
Desculpa, Luís.
Mas sabes:
Este ano ainda não chegou a cólera;
Valha-me Deus, é melhor nem pensar, pois aquele hospital está tão carenciado...
Já temos o que chegue e o que não chega:
- Olha, olhai: uma vez fizemos um golpe de mão e fomos deslocados para o objectivo em heli.
Sabes o que vimos? Tabancas ardidas pelos Fiats (não era assim que se chamavam os caças?) Velhas e velhos esbaforidos. E putos assustados. E encontrámos papéis espalhados no caminho: Soldados, desertai, esta guerra não serve ninguém... Bom, não me lembro se eram estas as palavras, mas os panfletos continuam numa gaveta em casa.
As cartas de amor/carinho/paixão/ - miudinhas, às vezes com minudências nuas cruas suaves - mas tão curiosas - do Lobo Antunes (4)- deixaram-me a pensar e a reflectir na grandeza e na pequenez que nós somos (quando a minha mulher mas lê ao fim destas tardes chuvosas de Agosto e Setembro - eu tinha-as trazido porque era do LA que se tratava).
- Ainda bem, dirás tu, com a tua benevolência. Ainda bem que somos grandes e pequeninos.
Esteve cá um parasitologista do INSA - Porto (5). Ficou admirado. Cientificamente, claro. O caso não era para menos:
- Há tantos parasitas.
E eu disse-lhe:
- Venha passar aqui uns mesitos e vai ver as troponossomíases, as bilharzioses, as filiarises (não sei se se escrevem assim estas doenças) e outras...
Sabes, Luís, anda aqui tanta gente: franceses, suecos, espanhóis, americanos, senegaleses, que sei eu? Até aconteceu a reunião da CPLP. E eu sem dar notícias...O bombolom não ecoou...
Lá no Hospital há traumatizados há meses à espera de intervenção. Era isto que eu ia contar?
Mas hoje apeteceu-me. 10 de Setembro de 2006. (Ouvi passar uma ambulância uivando - o que irá fazer ao Hospital com o doente?).
Se calhar foi porque me chegou às mãos Para Quando África, entrevista de René Holenstein a Joseph Ki-Zerbo, edição do Campo das Letras (Porto, 2006, c. € 14). Polémico, é certamente. Mas muito profundo.
Mantenhas pa tudus
Paulo Salgado
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd. o último 'bombolom' do Paulo Salgado, com data de 2 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCI: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (12): reviver o passado em Olossato
(3) Vd. post de 30 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXXV: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (10): ontem e hoje em Uaque
(...) Hoje, ao fim de tarde, no troço desta picada faz-se tarde e todos sabem que a noite está aí, negra: o rapazio, ao som dos últimos assobios em toscos mas belos instrumentos de lama fabricados, empurra as vacas para o redil junto das tabancas, as mulheres recolhem as crianças e as galinhas, o Pansau acaba de entaipar as entradas da casa que planificou e construiu (tenho o filme de meses de trabalho) para evitar a devassa enquanto não tiver o telhado feito de cibes, e o capim respectivo, uma mulher puxa o último balde do fundo do poço para prevenir uma noite longa, o Martinho já passou por mim há uns minutos com meia dúzia de peixes que apanhou na armadilha de um riacho que enche na maré cheia, uma mulher nova com os filhos às costas troca um chau comigo e logo dois meninos: chau" (...).
(4) Referência ao último livro de António Lobo Antunes > D’este viver aqui neste papel descripto: Cartas da guerra. Organização e prefácio Maria José Lobo Antunes e Joana Lobo Antunes. Lisboa: Dom Quixote, 2005.
(5) Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge
Guiné 63/74 - P1068: Álbum das glórias (2): Misérias e grandezas de Mamadu Camará (Mário Beja Santos)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > 1968 > Mamadu Camará, um dos soldados do Pel Caç Nat 52, sob o comando do Alf Mil Beja Santos.
Foto: © Beja Santos (2006)
Foto enviada, em 18 de Agosto de 2006, com a seguinte mensagem do Beja Santos:
Caro Luís:
Conforme prometido, dou-te notícias depois de duas semanas de férias. Creio que te disse que ia para os Condados de Oxford e Yorkshire e depois uma semana pelo interior da Escócia, sobretudo nas Terras Altas.
Recomposto, recomeço alguns reenvios. Passo-te a descrever as fotografias que vou enviar pelo correio.
(...) Esta, que hoje se publica, foi tirada em Missirá ao Mamadu Camará. Era o 222, soldado indómito, de quem guardo a memória do seu companheirismo.
Foi Furriel na 1º Companhia de Comandos Africana (1), perdeu um pé numa emboscada algures no Sul (creio que na mata do Fiofioli), veio para Portugal em 71 e cá vive. Foi o primeiro a dar muito trabalho antes da desconolização pois juntou-se a uma cabo-verdiana que tinha o morto o primeiro marido com um facalhão de talho e fez-lhe a vida mais negra do que ele era.
Havia, salvo erro, 5 filhos fora do casamento, tive de andar pelas misericórdias a pedir ajuda, os míudos cresceram e hoje aparecerem-me já com filhos.
Inevitavelmente, falar-se-à muito de Mamadu nestas memórias, até porque ele teve uma indiscutível importância nas noites de flagelação em Missirá.
(...) Hoje recomeço a escrita com uma informação prévia. Tu ficarás como fiel depositário de todo o material original que está a aparecer. Quando eu morrer, entregas tudo no Arquivo Histórico Militar. Recebe um grande abraço do Mário Beja Santos
_____________
Nota de L.G.
(1) Vd. post de 11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri (Luís Graça)
Foto: © Beja Santos (2006)
Foto enviada, em 18 de Agosto de 2006, com a seguinte mensagem do Beja Santos:
Caro Luís:
Conforme prometido, dou-te notícias depois de duas semanas de férias. Creio que te disse que ia para os Condados de Oxford e Yorkshire e depois uma semana pelo interior da Escócia, sobretudo nas Terras Altas.
Recomposto, recomeço alguns reenvios. Passo-te a descrever as fotografias que vou enviar pelo correio.
(...) Esta, que hoje se publica, foi tirada em Missirá ao Mamadu Camará. Era o 222, soldado indómito, de quem guardo a memória do seu companheirismo.
Foi Furriel na 1º Companhia de Comandos Africana (1), perdeu um pé numa emboscada algures no Sul (creio que na mata do Fiofioli), veio para Portugal em 71 e cá vive. Foi o primeiro a dar muito trabalho antes da desconolização pois juntou-se a uma cabo-verdiana que tinha o morto o primeiro marido com um facalhão de talho e fez-lhe a vida mais negra do que ele era.
Havia, salvo erro, 5 filhos fora do casamento, tive de andar pelas misericórdias a pedir ajuda, os míudos cresceram e hoje aparecerem-me já com filhos.
Inevitavelmente, falar-se-à muito de Mamadu nestas memórias, até porque ele teve uma indiscutível importância nas noites de flagelação em Missirá.
(...) Hoje recomeço a escrita com uma informação prévia. Tu ficarás como fiel depositário de todo o material original que está a aparecer. Quando eu morrer, entregas tudo no Arquivo Histórico Militar. Recebe um grande abraço do Mário Beja Santos
_____________
Nota de L.G.
(1) Vd. post de 11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri (Luís Graça)
Guiné 63/74 - P1067: In Memoriam: Morreu o major cav Mendes Paulo (BCAV 2922, Piche, 1970/72) (José Martins)
Mensagem do José Martins (ex-Furriel Miliciano de Transmissões, CCAÇ 5, Os Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70)
Caro Luís:
A noticia não é das boas. Mais um camarada da Guiné que partiu! Era o Major de Cavalaria JOÃO LUIS LAIA NOGUEIRA MENDES PAULO (1), que foi Oficial de Informações e Operações no Batalhão de Cavalaria nº 2922, oriundo do Regimento de Cavalaria nº 3, de Estremoz.
Chegou à Guiné em 23 de Julho de 1970 e assumiu o sector L 4 - Piche em 12 de Agosto de 1970. Regressou à Metrópole em 20 de Junho de 1972.
É autor do livro Elefante Dundun, que conta as suas aventuras em Macau, Angola e Guiné. O livro é acompanhado de um DVD, que contou com a colaboração de seus filhos.
Não o conhecia pessoalmente mas, na longa conversa que com ele tive há mais ou menos 2 meses, revelou ser um autêntico camarada. Contava conhecê-la brevemente num encontro que tentaria marcar com ele.
Partiu a semana passada. Mais um que parte... Cada vez somos menos...
MAJOR MENDES PAULO, presente!
Um abraço
José Martins
____________
Nota de L.G.:
(1) Ainda recentemente (1 de Março de 2006), numa intervenção no ForumDefesa.com (Assunto: Carros de Combate M5A1 em Nambuangongo), o major Mendes Paulo tinha feito a sua apresentação nestes termos:
Antes de mais, desejo enviar uma saudação calorosa a todos os visitantes deste fórum, aos conhecedores e interessados nas questões militares e àqueles que, por uma razão ou outra, aos modos castrenses se sintam ligados. Passo a apresentar-me: o meu nome é João Luiz Mendes Paulo, major, arma de Cavalaria, nascido em 1932 e passado à reserva em 1971.
Completei o ensino secundário no Colégio Militar e cursei na Escola do Exército (hoje Academia Militar). Fui mobilizado para Goa em 1958 (onde estive até 1961, em Valpoy, no 1º pelotão do Pel/Rec 4, com sede em Bicholim) e depois para a Zambézia, Moçambique, com o Batalhão de Cavalaria 571 (63-66).
No seguimento da vida militar (as Forças Armadas combatiam então em três frentes de guerra em África), embarquei para Angola com o Batalhão de Cavalaria 1927 (destino final e base da unidade: Nambuangongo). Em 1970 fui de novo mobilizado, desta vez para a Guiné, como Oficial de Operações do Batalhão de Cavalaria 2922 (seria a minha 4º comissão, a terceira em cenário de guerra) (...).
Caro Luís:
A noticia não é das boas. Mais um camarada da Guiné que partiu! Era o Major de Cavalaria JOÃO LUIS LAIA NOGUEIRA MENDES PAULO (1), que foi Oficial de Informações e Operações no Batalhão de Cavalaria nº 2922, oriundo do Regimento de Cavalaria nº 3, de Estremoz.
Chegou à Guiné em 23 de Julho de 1970 e assumiu o sector L 4 - Piche em 12 de Agosto de 1970. Regressou à Metrópole em 20 de Junho de 1972.
É autor do livro Elefante Dundun, que conta as suas aventuras em Macau, Angola e Guiné. O livro é acompanhado de um DVD, que contou com a colaboração de seus filhos.
Não o conhecia pessoalmente mas, na longa conversa que com ele tive há mais ou menos 2 meses, revelou ser um autêntico camarada. Contava conhecê-la brevemente num encontro que tentaria marcar com ele.
Partiu a semana passada. Mais um que parte... Cada vez somos menos...
MAJOR MENDES PAULO, presente!
Um abraço
José Martins
____________
Nota de L.G.:
(1) Ainda recentemente (1 de Março de 2006), numa intervenção no ForumDefesa.com (Assunto: Carros de Combate M5A1 em Nambuangongo), o major Mendes Paulo tinha feito a sua apresentação nestes termos:
Antes de mais, desejo enviar uma saudação calorosa a todos os visitantes deste fórum, aos conhecedores e interessados nas questões militares e àqueles que, por uma razão ou outra, aos modos castrenses se sintam ligados. Passo a apresentar-me: o meu nome é João Luiz Mendes Paulo, major, arma de Cavalaria, nascido em 1932 e passado à reserva em 1971.
Completei o ensino secundário no Colégio Militar e cursei na Escola do Exército (hoje Academia Militar). Fui mobilizado para Goa em 1958 (onde estive até 1961, em Valpoy, no 1º pelotão do Pel/Rec 4, com sede em Bicholim) e depois para a Zambézia, Moçambique, com o Batalhão de Cavalaria 571 (63-66).
No seguimento da vida militar (as Forças Armadas combatiam então em três frentes de guerra em África), embarquei para Angola com o Batalhão de Cavalaria 1927 (destino final e base da unidade: Nambuangongo). Em 1970 fui de novo mobilizado, desta vez para a Guiné, como Oficial de Operações do Batalhão de Cavalaria 2922 (seria a minha 4º comissão, a terceira em cenário de guerra) (...).
terça-feira, 12 de setembro de 2006
Guiné 63/74 - P1066: Homenagem a Amílcar Cabral, o Inimigo Libertador (João Tunes)
João Tunes prefere, em vez de mitificá-lo, "prestar-lhe tributo de homenagem como ilustre Inimigo Libertador": sem ele, a sua luta e a sua liderança, à frente do PAIGC, dificilmente teríamos tido o 25 de Abril e a reconquista da liberdade e da democracia (LG).
Foto: Fonte desconhecida
Texto do João Tunes:
NO 82º ANIVERSÁRIO DO NASCIMENTO DE AMILCAR CABRAL
Caro Luís,
Hoje é dia de importante efeméride que nos respeita. Mando-te para eventual publicação no nosso blogue um texto que hoje editei sobre Amilcar Cabral no blogue Agua Lisa (6)
LEMBRANDO AMILCAR CABRAL, O INIMIGO LIBERTADOR
Se ainda estivesse vivo, Amílcar Cabral celebraria hoje o seu 82º aniversário. É impossível prever, caso não fosse assassinado em 1973, a um passo de tempo da libertação total e absoluta da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, se Cabral hoje ainda estaria vivo e no poder, como exerceria ele a sua época de estadista, se seriam diferentes, melhores ou piores, as vivências dos povos e nações de que ele foi líder incontestado na fase de luta de libertação contra o colonialismo português.
Olhando para o rasto deixado por outros libertadores como Luís Cabral, Nino Vieira, Samora, Chissano, Guebuza, Agostinho Neto e Eduardo dos Santos, os exemplos não são nada animadores quanto a previsões deste tipo. Resta a mera esperança confiante em que a enorme envergadura intelectual e política de Cabral o tornaria distinto, para melhor, dos demais companheiros de luta anti-colonial.
De qualquer forma, tal como Mondlane, o seu martírio e perda durante a luta armada, deu-lhe o manto do mito e eximiu-o da demonstração prática de como conduziria o período pós-independência. Sobretudo, como iria traduzir-se, com ele no poder, o deslindar da sua fantasiosa e misteriosa utopia da unidade Guiné-Cabo Verde (utopia esta que, a par da Pide e do exército colonial, mais umas tantas conexões geoestratégicas talvez simétricas, o levou até às rajadas fatais que o abateram).
Se não se quiser entrar em fantasias panegíricas (1) ou diabolizantes, Cabral só pode ser historicamente julgado pelo que foi e pelo que fez entre a sua juventude e 1973. E, neste campo, Amílcar Cabral avulta como uma das maiores e mais prolixas inteligências políticas de África e do Mundo em todos os tempos. Como homem de cultura, mestre em sínteses de sócio-culturas centrípetas, como político, ideólogo e diplomata, como chefe militar e organizador administrativo, Cabral foi exímio, criativo, exemplar e eficiente.
Em tempo algum, os portugueses (alheando-nos da questão da legitimidade de quem, em cada momento, os representou em governo) se bateram, em guerra, contra um líder inimigo tão talentoso, tão persistente e tão eficaz. Talvez porque coincidiu, além das excepcionais capacidades próprias, que este inimigo de guerra, mais que qualquer outro que nos combateu em qualquer outro tempo e lugar, conhecia como os dedos da sua mão a cultura, o ser e o estar dos portugueses, sobretudo as nossas grandezas e misérias, além, é claro, as nossas sempre abundantes mediocridades.
De tal forma foi tão bem construída a sua praxis que o seu slogan Combatemos o colonialismo português, não os portugueses não foi nem figura de retórica nem esguicho de propaganda. E tanto foi assim que os portugueses, combatendo-o e assassinando-o, em vez de o derrotarem, libertaram-se pela sua luta e pela sua liderança, pois foi muito devido ao PAIGC de Amílcar Cabral que tivemos o 25 de Abril, a democracia e a liberdade.
Recordar hoje Amílcar Cabral, pelo menos no meu caso de português que o combateu na guerra, resume-se a prestar-lhe tributo de homenagem como ilustre Inimigo Libertador.
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Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 19 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P971: Amílcar Cabral e a Cuba de Fidel Castro ou os mortos também se instrumentalizam (João Tunes)
(...) Amílcar Cabral, assassinado em 1973, hoje, só tem contas a ajustar com a história pelo que fez em vida e por aquilo que lutou na forma como lutou. Especialmente perante a memória dos povos da Guiné e de Cabo Verde cujos destinos invocou como causa da sua vida e marcou indelevelmente. Pela sua inegável envergadura, mais a força do impacto do seu martírio, a figura de Amílcar ainda sofre do efeito da névoa do mito. Um mito construído, a meias, entre os que o diabolizam e o santificam. E um mito é sempre uma redução. (...)
Guiné 63/74 - P1065: Recordações do Saltinho e do Xitole (David Guimarães)
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > 2001 > O David J. Guimarães junto à ponte do Saltinho. Segundo o testemunho deste antigo combatente (1970/72), o Saltinho era um aquartelamento que ficava a 20 Km de Xitole na estrada para Aldeia Formosa (hoje, Quebo).
Em 2001 revisitou com amigos (inbcluindo o médico Dr. Vilar) os sítios por onde passou (Sector L1/Zona Leste).
Foto: © David J. Guimarães (2005)
Mensagem de David J. Guimarães (ex-furriel miliciano da CART 2716, aquartelada no Xitole, 1970/1972, e pertencente ao BART 2917, sedeado em Bambadinca) (e-mail com data de Agosto, que não posso precisar).
Luís e Paulo: Mais memórias e recordações....
O Polidoro Monteiro - na altura a que te referes - ainda Comandava o BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) pois que nós regressámos em Maio de 1972...
Quanto ao Paulo (1), creio bem que nos conhecemos, lá mesmo no Mato. O Saltinho foi uma Companhia que não teve problemas na altura da Comissão que fez - (1970/72) pois que esse Batalhão de Galomaro (2) foi enquadrar aquela zona de intervenção um mês antes de nós irmos para Bambadinca e por aí fora até ao Xitole...
Poderei dizer que quase todos os Furriéis desse batalhão andaram comigo na Recruta: de nomes lembro-me do Belarmino e do Moreira (este açoriano), que estavam no Saltinho, e do Barbosa, que estava em Galomaro, creio eu. Era um Furriel grandalhão que encontrei um dia no mato e ele gritou:
- Oh puito - olhei de imediato e sabia quem era, tantas vezes ele me tinha chamado por mim na sua língua de S. Miguel... Andou também na recruta comigo....
Os nomes passam, estes retive-os. Aliás, o Saltinho na circunstância e o Xitole eram companhias que se visitavam muitas vezes e eram o quebra-cabeças para quem vinha na coluna de Bambadinca ao Xitole e por vezes seguiam ao Saltinho (3)... Para nós, quando íamos ao Saltinho era dia de festa, embora o trajecto não fosse fácil: aquela estrada colonial era mesmo assim, charcos de água e cuidado não se vá enterrar uma viatura...
O Paulo diz lembrar-se da minha cara: era natural, e na altura decerto que convivemos. Mas os nomes passam e através das fotografias, um ou outro ainda ainda conseguimso reter as carinhas jovens. Enfim, o tempo... Ainda bem que encontro o Paulo agora... A história dele é curiosa, sim, eles tinham essa função de andar a acudir aqui e ali por aquela zona, muito provavelmente o que a CCAÇ 12 também também...
Uma coisa tenho a certeza: o Pel Caç Nat 53, como ele diz, era o pelotão dos Anjos da Guarda da CCAÇ do Saltinho... Pelo que me deram a conhecer, sei que no fim da Comissão em 1972 o Saltinho passou a ser um local bem de guerra e quem para lá foi a seguir comeu bem nos olhos. Sei que o Xitole esteve sempre na mesma como entre 1970 e 72: de vez enquando lá vinham os canhões saudá-los e os locais de emboscadas mantinham-se. Enfim, tudo se complicava para aquelas zonas...
Quanto ao Dr Vilar (Marques Vilar) (4), ele efectivamente é da Murtosa, trabalhou no Hospital de Aveiro e aposentou-se do Estado. Sei que tem consultório para aqueles lados: há dias estive com ele no convívio que tivemos da CART 2716 ...
Pronto - agora tipo professor - Luís procura o João Paulo Dinis da RDP - ele foi Furriel connosco de 70 -72 e fez programa de rádio lá - acho que era importante uma colaboração dele para sabermos o que se fazia de paz na guerra e para ele relatar o Programa das Forlças Armadas da Rádio - sei que ele esteve lá.... Bissau...
Um abraço ao Luís e outro ao Paulo: se me reconheceste na fotografia, melhor, estamos meios sintonizados - e a nossa Companhia aumenta e bem....
Como Vacas de Carvalho diz por aí, estou feliz agora com os meus amigos e sinto-me lá nos mesmos locais a conviver com eles, isso é que mais importa...
Um abraço, David Guimarães
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Nota de L.G.:
(1) Vd. os seguintes posts do Paulo Santiago, entre outros:
26 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P914: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (1): Bissau
29 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P923: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (2): Bambadinca
30 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P926: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (3): Saltinho e Contabane
5 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P938: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (4): branco com coração negro no Rio Corubal
12 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P955: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (5): O pesadelo da terrível emboscada de 17 de Abril de 1972
20 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P975: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (7): ainda as trágicas recordações do dia 17 de Abril de 1972
23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P980: A tragédia do Quirafo (Parte I): o capitão-proveta Lourenço (Paulo Santiago)
25 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P986: A tragédia do Quirafo (Parte II): a ida premonitória à foz do Rio Cantoro (Paulo Santiago)
26 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P990: A tragédia do Quirafo (parte III): a fatídica segunda-feira, 17 de Abril de 1972 (Paulo Santiago)
28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1000: A tragédia do Quirafo (Parte IV): Spínola no Saltinho (Paulo Santiago)
(2) Vd. post de 25 de Julho de 2006 > > Guiné 63/74 - P985: CCAÇ 3490 (Saltinho), do BCAÇ 3872 (Galomaro, 1971/74)
(3) Vd. post de 20 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXII: O inferno das colunas logísticas na estrada Bambadinca-Xime-Xitole- Saltinho
(4) Médico do BART 2917, psiquiatra. Há tempos (há um mês e tal) o Paulo Santiago tinha-me dado notícias dele, a meu pedido:
"Hoje, à hora de almoço, ligou uma senhora aqui para casa a perguntar quem tinha
ligado para o consultório do Dr Vilar. Expliquei-lhe o motivo do meu telefonema
dizendo-me a Srª ser a esposa do Vilar, que tinha ido dar umas consultas a
Condeixa, e quando chegasse lhe transmitia a minha mensagem.
"Ligou-me o Vilar, há meia hora, e falámos para aí uns 15 mikes. O gaijo está cada vez mais maluco. Não quer saber de internet, telemóvel só tem no carro para
chamar a Polícia se alguém lhe bater.Diz (...) só atender o telefone às horas de expediente, que são: 2ª e 6ª feiras, 15,00-19,00 horas para o 234865153 (Murtosa), 3ª e 5ª feiras, 14,00-19,00 para o 234427326 (este é em Aveiro).Diz estar tão apanhado que o maior problema dele, é não ter problemas. Pelo nome não está a ver quem tu [Luís Graça] és , mas está disposto a beber uns copos contigo. Telefona-lhe e logo vês como está a peça).
Guiné 63/74 - P1064: Hoje, Amílcar Cabral faria 82 anos se fosse vivo (Marques Lopes)
Foto: © A. Marques Lopes (2006)
Mensagem do nosso camarada A. Marques Lopes, coronel DFA, na reforma, ex-alferes miliciano na Guiné (1967/68) (CART 1690, Geba, 1967/68; e CCAÇ 3, Barro, 1968), dirigente da Associação 25 de Abril (A25A) - Delegação do Norte.
Caros camaradas:
Hoje, 12 de Setembro, Amílcar Cabral faria 82 anos se fosse vivo. E a Guiné-Bissau seria diferente, talvez... É uma figura que merece todo o respeito e admiração, mesmo dos inimigos que contra ele combateram. Permitam-me, pois, que transcreva o que dele diz Oscar Oramas no prefácio do seu livro Amílcar Cabral : para além do seu tempo, da Hugins - Editores, Lda., publicado em 1998.
Abraços
A. Marques Lopes
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“(...) Amílcar Cabral tem o valor do exemplo e a sua vida e obra reclamam, não só serem reconhecidas, mas também estudadas como referência de quem contribuiu de maneira decisiva para a libertação dos povos sob dominação colonial no continente africano, particularmente os subjugados por Portugal e tentou que os filhos desses países tivessem lugar reconhecido na civilização universal.
"Tanto pelo seu pensamento como pela sua estatura política, Cabral ultrapassa o panorama da luta contra o colonialismo português, e deve ser considerado uma das principais figuras do Terceiro Mundo, na sua época, esse mundo que não só reclamava a independência nacional, mas também a emancipação social e o desenvolvimento económico.
"Homem de grande cultura, não só autóctone, como europeia e universal, adquirida tanto em Portugal como nas suas viagens por diferentes países, caracterizou-se, fiel às tradições das suas raízes, por ser um excelente orador, como soe dizer-se actualmente – um comunicador. Hábil a cativar o interlocutor e brilhante negociador capaz de abordar qualquer tema com simplicidade, sem palavras rebuscadas, mas com evidente profundidade.
"Personagem multi-dimensional no quadro da sua acção, Cabral deixou nos seus escritos um balanço de excepcional riqueza: a capacidade de situar o colonialismo português como muito atrasado para manter o seu domínio colonial e muito ligado a um passado glorioso mas distante para pensar como metrópole; o conhecimento concreto das estruturas sociais das populações da Guiné Bissau e Cabo Verde, adquirido pela prática no terreno e por uma análise baseada, entre outros por um aporte conceptual das tendências filosóficas mais modernas, entre elas as de Marx e Lenine; a tenacidade dos verdadeiros criadores para construir pacientemente um partido, que estabeleceria, em primeiro lugar, as bases da identidade nacional com vista a traçar uma estratégia que promoveria a formação de quadros, estabeleceria uma infra-estrutura clandestina no seio da população, que conduziria à luta armada e a negociações políticas mediante uma organização democrática nas regiões libertadas e a seu tempo levaria o espírito da revolta pela independência nacional ao Arquipélago de Cabo Verde.
"A década de 1960, em que se inicia a luta de libertação na Guiné Bissau com intenção de a levar também ao coração de Cabo Verde, foi um momento particular da História, pois numerosos países africanos ascenderam à independência e só ficaram debaixo do jugo colonial os territórios portugueses, o Sudoeste Africano, a Rodésia do Sul e esse crime de lesa-humanidade que se chamou apartheid na África do Sul.
"A guerra fria estava em todo o seu esplendor e dois modos de produção antagónicos tipificam o panorama do planeta. Tensões aqui, ali e acolá, povos desejosos de ultrapassar o limiar das independências para percorrerem o caminho da soberania real e da construção económica, e para tanto batalhas por vezes cruéis, com as grandes multinacionais que insistiam no controlo económico das riquezas que jaziam no solo dos novos estados.
"Foi neste contexto que diplomática e habilmente Cabral logrou estabelecer relações de vizinhança, às vezes conflituosas, no meio de circunstâncias por vezes adversas, com a sabedoria necessária para obter o apoio de numerosos governos africanos e promover a ajuda de certos governos e organizações não governamentais ocidentais, obtendo a sua cooperação ou reconhecimento da luta de libertação, contribuindo assim para a crise do colonialismo português e posterior queda do regime fascista em Portugal.
"Cabral, com tacto e discernimento, logrou situar-se para além da polémica sino-soviética, e com uma perspicácia extraordinária criou um clima favorável para a sua causa em Moscovo, sem tomar partido contra Pequim.
"Elaborou uma teoria original ao considerar as particularidades da luta de classes no quadro das sociedades africanas, afectada sensivelmente pêlos problemas tribais, regionais e religiosos no contexto social africano; o papel e a ambivalência da pequena burguesia à frente dos movimentos de libertação nacional e o papel da cultura na luta contra o colonialismo português. O seu profundo conhecimento do meio social em que se desenvolveu, levou-o sempre a tomar em consideração o nível e os sentimento do seu povo e uma das suas preocupações fundamentais é de nunca o ultrapassar com acções que poderiam ir para além da compreensão do mesmo.
"Um desaparecimento prematuro e trágico transformou-o numa figura mítica. Foi o fundador da Nação e do partido; a sua obra não foi só a de quem dirigiu a luta armada, mas também a do pensador, a do homem que projectou um futuro para o seu povo e desenhou as bases e os caminhos do seu desenvolvimento. Foi também o poeta que sonhou e que sonhando fez história. Com esta obra queremos render merecida homenagem aos povos da Guiné Bissau e Cabo Verde, e, através deles, a todos os que foram vítimas do colonialismo português. (...)"
Guiné 63/74 - P1063: A propósito do Capitão Diamantino André: um dia em Banjara (António Moreira / A.Marques Lopes)
Foto: © A. Marques Lopes (2005)
1. Texto do nosso camarada A. Marques Lopes, coronel DFA, na reforma, ex-alferes miliciano na Guiné (1967/68) (CART 1690, Geba, 1967/68; e CCAÇ 3, Barro, 1968), dirigente da Associação 25 de Abril (A25A) - Delegação do Norte.
Caro Luís
Ao ler o último post do Paulo Raposo [P1060, de ontem], em que ele fala do "Capitão André (mais tarde, Presidente da Câmara de Proença-a-Nova, durante 20 anos, até 2005)", vi que, afinal conheci bem o Capitão Diamantino André: primeiro quando ele era alferes e dava instrução em Mafra a um dos pelotões da 3ª do COM (eu era de um dos pelotões dessa companhia, o 1º, comandado pelo Tenente Chung-Su-Sing), e estive com ele, casualmente, quando ele era ainda Presidente daquela autarquia.
Disse-me o meu camarada António Moreira, ex-alferes da CART 1690, que a companhia do Domingos André o foi substituir em Banjara no fim de 1968, quando esta companhia foi para Bissau (eu estava em Barro, com a CCAÇ3). Se ele já era, então, o capitão da CAÇ 2405, esta companhia passou por Banjara. Mas, pelos vistos, terá lá estado pouco tempo.
E esta lembrança e, talvez, coincidência, fez-me lembrar o que o meu camarada António Moreira escreveu sobre Banjara, onde passou oito meses, interpolados, para o jornal Bandarra de Torres Vedras (não sei o número nem a data). Transcrevo o textro a seguir, com a devida vénia, ao autor e ao jornal (os parêntesis são acrescentos meus)
Quanto ao encontro em Montemor-o-Novo [em 14 de Outubro próximo], acho uma muito boa iniciativa. Pessoalmente não sei se lá poderei ir, com muito pena minha. A razão é que, talvez já na próxima semana, vou ser internado no Hospital Militar Nº 1, no Porto, para uma intervenção cirúrgica e não sei que tempo lá estarei (e em que condições de lá sairei). Esse internamento deve-se à necessidade de reparação das mazelas apanhadas naquela coisa da Guiné...
Um abraço
A. Marques Lopes
2. Comentário de L.G.: Vamos todos fazer votos para que a estadia do nosso coronel, no estaleiro, seja rápida e indolor... Daqui a um mês e picos ele estará, seguramente, em boas condições (físicas e psíquicas) para fruir connosco de umas horas de convívio em Montemor, na casa do Paulo Raposo... António: Um abraço quebra-costelas, à moda de Montemor-o-Novo. Obrigado pelo texto oportuno, do teu camarada António Moreira que, desde já, fica convivado para ingressar na nossa tertúlia. L.G.
3. Um dia em Banjara, por António Moreira, ex-alf mil da CART (originalmentre publicado no jornal Bandarra, de Torres Vedras. Comentários, entre parênteses rectos, de A. Marques Lopes)
Banjara fica situada a cerca de 40 Km de Geba e a cerca de 20 Km de Mansabá, na estrada Bissau/Bafatá. Fica no coração da mata do Oio, e teve, antes da guerra colonial, uma unidade industrial de serração de madeiras. Pertencia, durante a guerra, à área de actuação da Companhia de Geba, do Batalhão de Bafatá.
[Cabe aqui um parêntesis para dizer que aquela serração em Banjara pertenceu ao português Fausto Teixeira: “Antifascista desde a sua juventude, via-se no comportamento de Fausto Teixeira toda a história de um velho democrata que amou profundamente a liberdade, lutou por ela e acbou por ser vencido pelas forças da repressão e do mal. No entusiasmo e dedicação que pôs no cumprimento desta arriscada missão, sentia-se todo o seu orgulho em poder participar na luta que então travávamos, também pela liberdade, contra os mesmos inimigos”. Isto diz Luís Cabral no seu livro Crónica da Libertação, aí referindo também que a missão do Fausto Teixeira foi ajudá-lo na sua fuga para o Senegal, em 1960, levando-o no seu “Peugeot 203 pintado de cor azul forte” desde as Oficinas Navais do porto de Bissau até perto da sua serração, de onde Luís Cabral seguiu a pé até a uma aldeia senegalesa, passando por Fajonquito.]
Banjara gozava da fama, e do proveito, de ser o segundo pior destacamento da Guiné, a seguir a Beli, na zona de Madina do Boé. Não apenas pelos ataques mas, sobretudo, pelo perigo que representava, por estar muito isolado da Companhia, e por estar cercado por uma cintura de destacamentos IN, que vigiavam de fora do arame farpado e do alto das gigantescas árvores que o envolviam todos os movimentos da nossa tropa. [Consultando os mapas publicados no blogue, verão que tinha Sinchã Jobel do lado sul e Samba Culo do lado norte].
O destacamento era constituído por uma caserna, quatro abrigos subterrâneos e um posto de comando, que era uma casa abarracada, sem portas nem janelas, por onde os sardões e as cobras vagueavam livremente, sem nenhum obstáculo que lhes barrasse a passagem, a não ser a presença humana. Tinha ainda outros abrigos à superfície. A envolver este destacamento, que no essencial era uma clareira circular com cerca de mil metros de diâmetro, duas fiadas de arame farpado paralelas e em círculo. O capim era necessário cortá-lo de dois em dois meses, para evitar a aproximação camuflada do IN. As casas de banho, como é de calcular, eram a céu aberto.
A guarnição deste destacamento, comandado por um Alferes, variava entre 60 a 80 homens, normalmente (houve alturas em que tinha só um pelotão), bem armados e disciplinados, capazes de aguentar debaixo de fogo uma boas dezenas de horas. O seu comando era rotativo e por lá passámos os mais longos meses da nossa juventude, então com 23 anos, e responsabilidades tremendas em cima dos galões de Alferes.
A paisagem envolvente era de uma beleza indescritível, com dezenas de cajueiros, mangueiras, árvores gigantes, capim e as célebres lianas. O barulho ensurdecedor dos milhares de pássaros e a vozearia nocturna da mais variada bicharada, desde macacos a hienas, tornavam aquele ambiente um mistério todos os dias renovado.
O dia, em Banjara, iniciava-se naqueles anos (1967/1968), por volta das 18 horas. A essa hora o Comandante mandava distribuir a 3ª refeição, e as sentinelas avançadas ocupavam os seus postos. Toda a gente vestia então o seu camuflado, calçava as botas e recarregava as armas. Não é que de dia estivessem todos a dormir, mas durante a noite entrava-se em alerta máximo. Durante a noite era rigorosamente proibido acender luzes, fazer fogo e fumar à vista desarmada para não denunciar a presença e a localização de ninguém.
Tomada a 3ª refeição e colocadas as sentinelas, que eram sempre dobradas, iniciava-se toda uma série de rondas de posto a posto, podendo os soldados que estavam de folga, e só nos abrigos subterrâneos, jogar cartas, conviver e confraternizar, pôr a correspondência em dia, etc. De vez em quando dormia-se uma hora ou duas mas sempre em sobressalto, e sem a mínima tranquilidade. Posso dizer que durante o tempo que passei neste destacamento não dormi uma única noite descansado.
Durante a noite, de vez em quando, uma sentinela nossa dava um tiro, à aproximação do arame farpado de um macaco ou qualquer outro bicho (podia não ser...). Logo todos corriam para as armas pesadas e, normalmente, o IN respondia com dois tiros ao longe. Então a nossa sentinela, aquela ou outra, respondia passado algum tempo com três tiros. A seguir a resposta de novo do IN, então com 4 tiros. Era um jogo macabro, que nos mantinha constantemente vivos e despertos.
O dia amanhecia, então, e, pelas 7 da manhã, iniciava-se a distribuição da 1ª refeição. As horas mortas do pessoal eram gastas, durante o dia, à caça, quando isso era possível e o capim estava seco e caído no chão, a jogar cartas, pôr a correspondência em dia e jogar futebol. O jogo de futebol era normalmente diário, mas sempre a horas diferentes, para não se cair na rotina, e sempre com os abrigos guarnecidos de atiradores.
Terminada a 1ª refeição iniciavam-se os trabalhos de rotina, para o que o efectivo estava dividido em 4 grupos, cada um deles composto por 15 ou 20 homens, comandados por um sargento.Um grupo estava de serviço à água e à lenha para as refeições. Os banhos eram tomados na bolanha a um quilómetro do arame farpado, e sempre com 10 ou 12 homens armados em vigia. Outro dos grupos era o piquete que realizava, normalmente, uma patrulha de reconhecimento nas imediações do aquartelamento. O terceiro grupo estava de prevenção rigorosa e o quarto estava de folga.
Este destacamento tinha apenas uma coluna de reabastecimento por mês, no máximo, mas chegava a estar mais de 2 meses sem alimentos frescos e sem correio. Não havia população civil, apenas militares.
segunda-feira, 11 de setembro de 2006
Guiné 63/74 - P1062: Uma cena em Bambadinca: quando o Major caiu da cama (Paulo Santiago)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Campo de futebol de Bambadinca, em 24 de Dezembro de 1971. O Caco - alcunha por que era conhecido o Com-Chefe - passa revista. O Alf Santiago vai atrás com o Cap Tomás, ajudante campo do Spínola.
Foto: © Paulo Santiago (2006)
Mensagem do Paulo Santiago:
Luís
Mando-te uma história com algum caricato, sendo o personagem principal o A.C. (1), já aqui referido no nosso blogue.
Quando o Major caiu da cama
Uma bela noite, em Dezembro de 1971, após o jantar, dedilhando a viola, o Major A. C. lamenta-se ao Vacas, a dedilhar outra viola, andar desde a manhã sem mijar. O médico, [o Vilar,]
tinha ido jantar ao Rendeiro [,comerciante branco de Bambadinca] o Zé Luís aproveita para receitar um tratamento imediato:
- Meu Major, beba dois ou três whiskies com Perrier - aconselhou.
O A. C. , preocupado com a falta de diurese, aceita o conselho. Bebe dois uísques, bebe três, bebe quatro, começa a ficar com os copos e continua bebendo. Uma monumental bebedeira. Cantou no Bar até às duas da madrugada, não deixando ninguém dormir.
Todos os dias, às sete horas, tinha a formatura da companhia de milícias, onde estavam presentes o comandante e 2º comandante, Polidoro [Monteiro] e A.C. .Seguia-se um desfile até ao campo de futebol com o acompanhamento rufante de dois tambores.
Naquela manhã, com a companhia formada, o Polidoro presente, eu mando ombro arma, faço a continência e grito:
- Meu comante, dá licença, companhia pronta!
Diz- me:
- Mande descansar a companhia e faça o favor de ir chamar o nosso Major.
Dirijo-me ao quarto do A.C., bato à porta e uma voz debilitada pelo álcool, diz:
- Entre .
Entrei e digo:
- Meu major, o nosso comandante está à espera para apresentação da companhia.
- Oh Santiago, diga ao nosso comandante que estou adoentado e levanto-me mais tarde.
Transmito estas palavras ao Polidoro Monteiro. Reacção dele:
- O caralho é que está adoentado, doentes ficámos nós com o barulho que fez à noite. Quem não sabe beber, faz destas cenas.
Vira-se para os dois militares dos tambores e diz:
- Acompanhem o nosso Alferes e despertem o nosso Major.
Reparo que vão todos excitados, imaginando um despertar fora do vulgar. Vão à minha frente, abrem a porta do quarto, tocam os tambores. O A. C. salta da cama e cai esparramado no chão. Uma cena macaca.
Passados poucos minutos lá chega, esbaforido, à parada, ainda a compor a camisa começando logo a ouvir uma piçada:
- Não tem respeito por esta companhia, há meia hora esperando pelo senhor. Não teve
respeito pelas pessoas que não deixou dormir. Um péssimo exemplo! - atira-lhe o Polidoro sem lhe dar hipóteses para desculpas.
Enfim, uma luta entre um Infante e um Artilheiro.
Paulo Santiago
(ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72)
PS-Nunca tive bom relacionamento com o A. C.: era um emproado.
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Notas de L.G.
(1) Oficial superior do BART 2917 (Bambadinca , 1970/72). Uma vez que ainda está vivo e até já terá manifestado interesse em visitar o nosso blogue, decidi pôr o seu nome em iniciais, sem consultar o Paulo Santiago que, decerto, irá compreender e aceitar a minha decisão editorial (3)... No blogue, todos os ex-combatentes, amigos e inimigos, devem ser tratados com a dignidade e a compaixão que todo o ser humano merece... Este episódio, de qualquer modo, é da esfera pública, é contada por um dos seus intervenientes e faz parte da nossa memória...
Conheci-o, ao A.C., a partir de meados do ano de 1970. Na altura, era um militarão que nos obrigava a fazer continência. Todos nós apanhámos bebedeiras de caixão à cova. Um major não era diferente dos outros militares. Só com uma diferença: era pressuposto ser um líder, um comandante, ser o exemplo vivo do RDM...
Ainda no meu tempo assisti a uma cena parecida, em que ele foi o protagonista... Dizem que foi a sua estreia em matéria de copos, na Guiné... Um dia chamei-lhe nomes feios, na sequência da terrível Operação Abencerragem Candente (26 de Novembro de 1970) (2)... Passei-me dos carretos... Mas tudo isto é fado e passado... Já não lhe guardo rancor... Éramos todos de carne e osso...
(2) Vd. post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970) (Luís Graça)
(3) O Paulo mandou-me depois a seguinte mensagem: "Acho que fizeste bem ao utilizares unicamente as iniciais" (12 de Setembro de 2006).
Guiné 63/74 - P1061: Álbum das glórias (1): Um brinde no bar de oficiais de Bambadinca (Mário Beja Santos)
Texto e foto: © Beja Santos (2006)
Caro Luís, seguem-se três fotografias para o álbum das glórias. Na primeira (que hoje se insere) estou a brindar com não sei quem. Ao fundo, no lado esquerdo, está um Major que conviria identificar e que corresponde à chegada do batalhão de artilharia em Julho de 1970 [BART 2717].
Ao fundo, a meio, identifico o [Alferes miliciano] Nelson Wahnon Reis de quem iremos falar já perto do final desta saga. Foi ele quem me veio substituir em Agosto de 70, [no comando do Pel Caç Nat 52], em condições que me pareceram dramáticas para ele, visto ser cabo-verdiano.
A meio lado, a fixar a câmara temos o Tenente-Coronel Domingos Magalhães Filipe [comandante do BART 2917] que me comoveu muito com o louvor que me concedeu e mais tarde foi atribuido pelo Presidente da República.
Ao fundo, do lado direito, o [Alferes miliciano, da CCAÇ 12], Abel Rodrigues sorri como se a festa fosse toda dele e tenho a certeza que é o Vacas de Carvalho [alf mil, comandante do Pel Rec Daimler 2206] quem está junto à porta.
Mário Beja Santos
(ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70)
Caro Luís, seguem-se três fotografias para o álbum das glórias. Na primeira (que hoje se insere) estou a brindar com não sei quem. Ao fundo, no lado esquerdo, está um Major que conviria identificar e que corresponde à chegada do batalhão de artilharia em Julho de 1970 [BART 2717].
Ao fundo, a meio, identifico o [Alferes miliciano] Nelson Wahnon Reis de quem iremos falar já perto do final desta saga. Foi ele quem me veio substituir em Agosto de 70, [no comando do Pel Caç Nat 52], em condições que me pareceram dramáticas para ele, visto ser cabo-verdiano.
A meio lado, a fixar a câmara temos o Tenente-Coronel Domingos Magalhães Filipe [comandante do BART 2917] que me comoveu muito com o louvor que me concedeu e mais tarde foi atribuido pelo Presidente da República.
Ao fundo, do lado direito, o [Alferes miliciano, da CCAÇ 12], Abel Rodrigues sorri como se a festa fosse toda dele e tenho a certeza que é o Vacas de Carvalho [alf mil, comandante do Pel Rec Daimler 2206] quem está junto à porta.
Mário Beja Santos
(ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70)
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