sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15768: (In)citações (85): Opinião sobre os Governadores e Comandantes-Chefes das Forças Armadas da Guiné - 2 (Coutinho e Lima, Cor Art Ref)

1. Em mensagem do dia 5 de Fevereiro de 2016, o nosso camarada Alexandre Coutinho e Lima, Coronel de Art.ª Reformado (ex-Cap Art.ª, CMDT da CART 494, Gadamael, 1963/65; Adjunto da Repartição de Operações do COM-CHEFE das FA da Guiné entre 1968 e 1970 e ex-Major Art.ª, CMDT do COP 5, Guileje, 1972/73), enviou-nos um trabalho com a sua opinião sobre os Governadores e Comandantes-Chefes da Guiné, durante a sua permanência naquela Província: Arnaldo Schulz, António de Spínola e Bettencourt Rodrigues. 
Segunda parte.

Aceitando o repto do Tabanqueiro-mor Luís Graça, entendi apresentar algumas considerações sobre o tema.
Por ter cumprido 3 Comissões, por imposição, na Guiné (tenho a convicção que não haverá muitos militares nestas condições), eis a minha opinião resultante, fundamentalmente, das funções que desempenhei em cada um dessas comissões.

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Opinião sobre os Governadores e Comandantes-Chefes das Forças Armadas da Guiné - 2

4. GUERRA DOS 3 G´s (Guidage, Guileje e Gadamael) 

4.1. Introdução – Mísseis terra-ar STRELA, do IN 

Em DEZ72, a DGS/Guiné tinha recolhido a informação que o PAIGC havia recebido novas armas antiaéreas. Mais tarde, Luís Cabral, disse que os mísseis só chegaram, depois da morte de seu irmão, Amílcar Cabral, ocorrida em 20JAN73.

Em 25MAR73, um Avião FIAT G 91, pilotado pelo Sr. Ten. Pil. Av. Miguel Pessoa, foi abatido por um desses mísseis, na região de Guileje, após ter sido chamado a prestar apoio aéreo, na sequência de uma flagelação ao aquartelamento, em pleno dia (14H30); este procedimento do IN foi propositado, pois era conhecido que, nessa situação, a nossa Força Aérea sempre marcava sua presença. O Piloto, verificando que o seu avião fora atingido, conseguiu ejectar-se, mas como o fez a baixa altitude, o pára-quedas não abriu totalmente, tendo caído no arvoredo intenso, sofrendo a fractura de uma perna; conseguiu assinalar a sua presença, mas devido ao adiantado da hora, só foi recuperado na manhã seguinte.

Nas semanas seguintes, foram abatidas mais 4 aeronaves, uma das quais pilotada pelo Sr. Ten. Cor. Pil. Av. Almeida e Brito, Comandante do Grupo Operacional da Base Aérea 12; este abate verificou-se na região do Boé.

Com a introdução dos mísseis terra-ar, a guerra entrava numa nova fase, decididamente bem pior para as forças terrestres, que até então pudera contar com o apoio aéreo, nas suas diversas vertentes: apoio de fogo, acompanhamento de colunas de reabastecimentos, transportes gerais, reconhecimentos aéreos, regulação aérea dos fogos de Artilharia e evacuações, estas efectuadas mesmo em zonas de combate.

Para fazer face à nova ameaça, a FA adoptou as medidas consideradas necessárias, que se traduziram em grandes restrições ao Apoio Aéreo. Nestas condições, a Repartição de Operações do Comando Chefe, enviou, em 27ABR73, uma mensagem, a todos os Comandos, determinando:

. cancelados, temporariamente, as evacuações, por avião ligeiro DO 27, a partir de Guileje, Gadamael,…

. cancelados, temporariamente, os transportes gerais, por DO 27 (o chamado avião do Sector), em todos os Comandos.

. os acompanhamentos por DO 27, passavam a fazer-se a altitudes superiores a 6000 pés.

. os ataques ao solo, por aviões FIAT G 91, seriam feitos só com bombas, a altitudes acima de 6000 pés.

. as evacuações, por helicóptero, passavam a ser objecto de estudo prévio do Comando de Operações Aero-Tácticas (COAT), da FA.

No que se refere a Guileje, as colunas de reabastecimentos (Gadamael/Guileje), até 06ABR73, eram acompanhadas por um avião DO 27, armado, sobrevoando o itinerário; após essa data, deixaram de ter qualquer apoio aéreo, tendo sido determinado que, no caso de haver contacto com o IN, deveria ser pedido apoio imediato.

Com todas estas restrições, nenhum meio aéreo aterrou em Guileje e também em Gadamael (até 22MAI73), com uma única excepção: uma visita a Guileje, em 11MAI73, do Sr. Comandante-Chefe, Sr. General Spínola. As evacuações passaram a ser feitas, por estrada (nas colunas) até Gadamael, daqui por barco para Cacine, onde a FA as fazia para Bissau, de helicóptero.


4.2. GUIDAGE - situado na fronteira Norte, com a Rep. do Senegal 

Dotado de uma nova arma - o míssil STRELA, que condicionou de um forma muito significativa a nossa FA, o IN modificou, radicalmente, a sua maneira de actuação que, até então se caracterizava, fundamentalmente, por montar emboscadas e implantar engenhos explosivos nos itinerários, flagelar os aquartelamentos das NT e as populações, especialmente de noite e passou a uma outra fase, concentrando grandes efectivos, apoiados por bases de fogos com consideráveis quantidades de armamento pesado, sem qualquer restrinção de munições, tendo em vista objectivos específicos das NT.

Assim, em 08MAI73, começou por montar uma emboscada a uma coluna de reabastecimento Farim – Guidage, impedindo a sua realização; de seguida, iniciou as flagelações ao aquartelamento de Guidage, que se iriam manter durante bastante tempo. O Comando Chefe resolveu reforçar de imediato, o COP 3 (Comando Operacional nº. 3), com sede em Bigene, do qual dependia Guidage.

O Sr. Chefe de Repartição de Operações do CEM (Corpo de Estado-Maior) Pinto de Almeida, interrogado sobre o assunto, (no âmbito do processo que me foi instaurado, como consequência da retirada de Guileje), declarou:

“. As flagelações a Guidage tiveram início em 08MAI73 e prolongaram-se até 01JUN73 (não tendo havido flagelações em 20, 24 26, 30 e 31MAI).

. Relativamente a colunas de reabastecimento, a primeira chegou a Guidage em 10MAI, a segunda no dia 12MAI, a terceira em 15MAI. 

. Quanto ao balanceamento de meios do COP 3, para reforçar Guidage, a esta guarnição chegaram em 08MAI, 2 GC (Grupo de Combate) da CCAÇ 3 (Companhia de Caçadores 3 – do recrutamento da Província); em 12MAI, mais 1 GC da CCAÇ 3 e os Destacamentos de Fuzileiros Especiais 1 e 4.

. Relativamente aos reforços atribuídos a Guidage: na coluna de 12 MAI, 5 GC do BCAÇ 4512 (Batalhão de Caçadores de Farim), 1 Bigrupo da 38ª. CCMD (Companhia de Comandos), 1 Secção do Pel Mort 4274 (Pelotão de Morteiros); este reforço manteve-se até à manhã de 13MAI. Na coluna que atingiu Guidage em 15 MAI, chegaram 2 GC do Comando de Bissau, 1 GC da Companhia Eventual Africana e o Grupo de Milícia de Jumbembem; este reforço manteve-se até à manhã de 19MAI. 

. Guidage foi ainda reforçado com a CCP 121 (Companhia de Caçadores Paraquedistas), desde 23MAI até 30MAI. Após o dia 29MAI, foi reforçado por outras unidades, não discriminadas.

. No dia 08MAI73, a guarnição de Guidage era constituída pela CCAÇ 19 (recrutamento da Província) e 24º. Pel Artª. (Pelotão de Artilharia), de 10,5 cm.” 

De 17 a 21MAI73, o Batalhão de Comandos Africanos, realizou a Operação Ametista Real, cuja Missão consistia em aniquilar ou, no mínimo, desarticular a base inimiga de Cumbamory (Rep. do Senegal). Os resultados foram os seguintes: causados 67 Mortos ao IN, bem como bastantes baixas prováveis, provocadas pelos bombardeamentos da FA; destruição de uma enorme quantidade de material e capturado diverso armamento. As N T tiveram 10 Mortos, 22 Feridos graves e 3 Desaparecidos.

Nas várias colunas de reabastecimento (foram iniciadas 7 e 5 destas atingiram Guidage), as NT sofreram 26 Mortos e 100 Feridos; foram destruídas ou danificadas 6 viaturas. O In sofreu, na coluna do dia 08MAI, 13 Mortos e elevado número de Feridos.

Não tenho elementos que indiquem se o Comando Chefe tinha algum conhecimento prévio das intenções do IN sobre Guidage.

Relativamente à sua actuação, após o IN ter desencadeado os acontecimentos, considero-a OPORTUNA, EFICAZ e ADEQUADA.

Desta forma, foi possível manter o aquartelamento das NT em Guidage.


4.3. GUILEJE 

No que diz respeito a Guileje, o Sr. Comandante-Chefe conhecia as intenções do PAIGC, com antecedência, pelo menos desde 27DEZ72.

No seguimento de um requerimento que fiz, para serem juntos ao auto de corpo de delito que me foi instaurado, todos os documentos relativos ao COP 5, o Sr. CEM (Chefe de Estado-Maior) do Comando-Chefe Sr. Coronel do CEM Hugo Rodrigues da Silva, fez entrega, ao Sr. Oficial da PJM (Polícia Judiciária Militar), Sr. Brigadeiro Leitão Marques, de uma relação de 124 documentos, em 08AGO73; todos estes documentos foram apensos ao processo. O documento nº. 105 daquela lista de 124 (que passou a constituir a folha nº. 608 do auto), é o seguinte:

“EXTRACTO DO RELATÓRIO DE INTERROGATÓRIO – 27DEZ72”

Este relatório foi elaborado em 271800DEC72 e relata o interrogatório do nativo Mário Mamadu Baldé, de 25 anos, natural de Cacine. Nele declarou:

[...]

“INTENÇÕES DO IN 

2. NA FRONTEIRA: Refere que o In pretende fazer um ataque com bastante força a GUILEJE, porque pretende obter uma maior liberdade de movimentos logísticos e de pessoal no Corredor de GUILEJE. Para isso, ficaram em KANDIAFARA alguns elementos que vieram recentemente dum estágio de Artª. na Rússia, para fazerem reconhecimentos na área de GUILEJE e preparar esta acção.


MODOS DE ACTUAÇÃO

Os chefes sabem que as flagelações aos aquartelamentos não têm obtido resultados compensadores e por isso resolveram mandar vários elementos ao estrangeiro receber uma instrução mais adiantada de Artilharia. 

Esses elementos ficam a saber trabalhar com cartas topográficas, para poderem determinar com precisão as distâncias de tiro. Aprendem também a trabalhar com goniómetros-bússolas e outros aparelhos, assim como ficam a saber através da regra do milésimo converter as correcções métricas em direcção em correcções angulares. Estes elementos ficarão normalmente em observadores avançados durante as flagelações, ligados por telefone às bases de fogos, dirigindo a acção e regulando o tiro.”

Importa salientar que, incompreensivelmente, tal relatório de interrogatório não me foi dado a conhecer, quando fui nomeado Comandante do COP 5; se tivesse sabido o que nele constava, teria confrontado o Sr. Comandante-Chefe da impossibilidade de, apenas com os meios de que iria dispor e que já estavam no terreno, fazer face à ameaça muito precisa e que, em consequência, necessitava que o COP 5 fosse reforçado convenientemente. Mesmo que não me tivesse sido dado nenhum reforço, não deixaria de, com as poucas possibilidades que tinha, ter na devida atenção aquela ameaça.

O conteúdo do documento em questão, por não ter suscitado nenhuma reacção do Comando-Chefe e do seu Estado-Maior, é, em minha opinião, altamente comprometedor para aquelas entidades. Após dele ter conhecimento, a Repartição de Informações (REP/INFO) deveria ter tomado todas as diligências, no sentido de confirmar ou não o que nele constava. Não há nenhum indício de que tenha sido esse o procedimento da REP/INFO.

Estou convicto que, nem o CEM do Comando-Chefe – Sr. Coronel do CEM, Hugo Rodrigues da Silva, nem o Sr. Oficial da PJM – Sr. Brigadeiro Leitão Marques, dedicaram a este documento qualquer importância, pois que, se o tivessem lido com atenção, seguramente seria excluído da lista e nunca teria sido incluído no processo.

Num artigo publicado no jornal Público, em 26JUL2004, o Sr. Osvaldo Lopes da Silva (OLS), antigo Comandante de Artilharia do PAIGC, (págs. 358 a 361 do livro “A Retirada de Guileje”), relata a maneira como foi encarregado por Amílcar Cabral, em Agosto ou Setembro de 1972, de preparar as condições para destruir Guileje. Amílcar afirmara: “Se o quartel de Guiledge cair, cai tudo à volta”. Com um grupo de cerca de 30 homens, postos à sua disposição, OLS fez, durante alguns meses, os reconhecimentos e as acções, na zona de Guileje, que permitiram ao PAIGC desencadear uma acção em força sobre Guileje, com início em 18MAI73. Confirmava-se, totalmente, o que o nativo Mário Mamadu Baldé declarara, no interrogatório que lhe foi feito em 27DEZ72.

Em meados de Abril de 73, como as obras em Guileje estavam muito atrasadas e a época das chuvas estava próxima, enviei à REP/OPER do Comando Chefe uma mensagem, solicitando autorização para que a actividade da CCAV 8350 (Guileje) fosse reduzida ao mínimo, para poder intensificar o ritmo das obras; a autorização foi concedida, mas devendo continuar os reconhecimentos na área de Mejo, anteriormente determinados, tendo em vista a reocupação dessa localidade.

Esta reocupação fazia todo o sentido, porque serviria, também, para apoiar Guileje e as NT no Cantanhez. Como verifiquei nos reconhecimentos que foram feitos, nessa altura, o local mais adequado, para o futuro aquartelamento, era junto a um dos braços de rio, porque, além de garantir o abastecimento de água, permitiria ainda utilizar a via fluvial, para evacuações e até talvez para os reabastecimentos; neste caso, seria uma alternativa para o reabastecimento de Guileje, que estava totalmente dependente da ligação terrestre a Gadamael. Na sequência desses reconhecimentos, foi possível fazer por via fluvial, a evacuação do Morto e dos Feridos resultantes da emboscada ocorrida no dia 18MAI73. Se a evacuação, nestas condições, não tivesse sido possível, era muito provável que o militar Morto tivesse sido sepultado em Guileje, como sucedera em Guidage, em situações análogas.

Recorda-se que Mejo tinha sido abandonada por ordem do Sr. General Spínola, quando no início do seu Comando, determinara a remodelação do dispositivo; desta forma, mudou de opinião. A localidade de Mejo não foi reocupada.

Quando tive acesso ao processo que me foi instaurado, esperava encontrar respostas às dúvidas que tinha, relativamente à actuação do Comando Chefe e do seu Estado-Maior, acerca do que sucedeu em Guileje, no período de 18/22MAI73. As minhas expectativas foram goradas, em grande parte.

Uma das minhas interrogações era a forma como o Sr. Comandante-Chefe pensava resolver o problema de Guileje, alvo de um ataque em força do PAIGC, desde 18MAI73. A única resposta foi a proporcionada pelas declarações do Sr. Coronel Paraquedista Rafael Durão, quando foi ouvido com testemunha, no processo que me foi instaurado (pág. 117 do livro “A Retirada de Guileje”):

“No dia 21 recebi directamente de Sua Excelência o General Comandante-Chefe ordem para manter a todo o custo o destacamento de GUILEJE, naquele local, para o que devia verificar as necessidades em meios para lá colocar os abastecimentos de toda a ordem, mais de 200 toneladas, que se encontravam ainda em GADAMAEL, CACINE e muitos ainda a chegar de BISSAU….” 

O Sr. General Spínola, ao nomear o Sr. Coronel Rafael Durão Comandante do COP 5, substituindo-me nessa função, entendeu alterara missão para “defesa a todo o custo”, que não constava na missão que eu tinha recebido. A defesa a todo o custo é a mais exigente de todas, implicando resistir até ao último homem. Não obstante o Sr. Coronel Durão ter toda a confiança do Sr. Comandante- Chefe, este quis ter a certeza que, em qualquer circunstância, Guileje seria defendido até ao fim.

O Sr. General Spínola, que me tinha negado o reforço, bem modesto, de uma Companhia de tropa especial, atribuiria ao Sr. Coronel Durão os meios que este considerasse necessários; e estes só seriam apresentados quando o novo Comandante do COP 5 chegasse a Guileje e aqui fizesse o estudo da situação, o que, na melhor das hipóteses, aconteceria em 22MAI; seguir-se-ia o accionamento da ida dos reforços, que só chegariam ao seu destino (Guileje) passados uns dias.

Interessava também saber o que pensava, sobre este assunto, o Sr. Chefe da REP/INFO do Comando Chefe, Sr. Ten. Cor. de Infª. Baptista Beirão. Para isso, volto a recorrer ao processo e às declarações que nele fez (folhas 749 a 751):

“3. Sendo perguntado… 

e. No entanto e embora me pareça que estas flagelações foram mais violentas, devo acrescentar que quase não provocaram baixas na guarnição (apenas 1 morto)…” 

Esta declaração do Sr. Chefe da REP/INFO “apenas 1 morto” é lamentável, pelo desrespeito evidente pela vida humana, mesmo só uma. Parece que é lícito concluir que se as baixas tivessem sido maiores, a sua declaração teria sido diferente.

“7. Sendo perguntado se havia notícias que referissem a acção sobe Guileje e se essas notícias aumentaram nos princípios do mês de Maio disse: 

a. Sempre houve notícias de ataque a Guileje até de ataques em força. No entanto essas notícias esbatiam-se sempre em flagelações mais ou menos violentas, sem consequências graves.

b. Em princípios de Maio começaram a aparecer mais notícias, parecendo assim que aumentavam as probabilidades do ataque. A flagelação de cerca de uma hora, em 10 ou 11 de Maio, chegou a fazer supor que seria a acção que essas notícias anunciavam, o que, depois, veio a verificar-se não corresponder à verdade, com uma série de acções desencadeadas a partir de 18 MAI….”

Verificou-se que o Sr. Chefe da REP/INFO “esqueceu-se” de referir o documento, referido atrás – Extracto do Relatório de Interrogatório – 27 DEZ 72. Este esquecimento demonstra, com evidência, que não prestou nenhuma atenção ao conteúdo de tal documento, o que, do meu ponto de vista, é INACEITÁVEL.

A minha maior expectativa, que estava nas declarações do Sr. Chefe da REP/OPER, Sr. Ten. Cor. do CEM, Pinto de Almeida, foi totalmente frustrada. E o caso não é para menos, pois que, tratando-se de um auto do corpo de delito, sobre a retirada de Guileje, o Sr. Brigadeiro Leitão Marques, nomeado pelo Sr. Comandante-Chefe para dirigir as averiguações, teve o descaramento de NÃO TER FEITO UMA ÚNICA PERGUNTA, sobre Guileje, ao Sr. Chefe da REP/OPER.

Não tenho a mínima dúvida que tal actuação foi concertada entre os dois intervenientes, pois que o segundo respondeu, com todo o pormenor, sobre todas as perguntas relativas a GUIDAGE!!!, com excepção da que inquiria quais as baixas que tinham incidido sobre a CCAÇ 19 (Guidage), ao que a resposta foi “…ignorando qual percentagem sobre a Companhia de Caçadores dezanove…”. Seguramente que tal pormenor não fora objecto de prévio acerto mútuo.

Sendo o objectivo primário da fase de inquirição do processo, o esclarecimento da verdade dos factos, o modo como o Sr. Oficial da Polícia Judiciária Militar, Sr. Brigadeiro Leitão Marques, conduziu as averiguações, relativamente à inquirição do Sr. Chefe da REP/OPER do Comando Chefe, foi INACREDITÁVEL.


4.4. GADAMAEL

Após a retirada de Guileje, todo o pessoal que daqui viera, incluindo a população, ficou em Gadamael; nessa manhã de 22MAI73, tinha chegado o novo Comandante do COP 5, Sr. Coronel Paraquedista Rafael Durão.

Num documento elaborado pela REP/OPER do Comando Chefe, sobre a situação em Gadamael, no período 22/30MAI, não é referida a actividade das NT; segundo a informação de diversos militares que lá se encontravam, fiquei a saber que foram realizados, com frequência, vários patrulhamentos e emboscadas, tendo-se verificado a presença de alguns grupos inimigos, que não se empenhavam, indiciando que se tratava de missões de reconhecimento. No PERINTREP nº. 21/73 (PERÍODO de 20 a 27MAI73, a REP/INFO referia:

 “…De assinalar, ainda, os reconhecimentos efectuados ultimamente na área de GADAMAEL, constituindo possível indício duma acção em força.”

Não obstante tudo isto, aparentemente não se tiraram nenhuns ensinamentos do que se tinha passado em Guileje; o IN, após entrar neste em 25MAI e, porque, eventualmente, não foi sujeito a forte pressão da Força Aérea durante o período 22/25MAI, como deveria ter acontecido, rapidamente deslocou o seu dispositivo para a região de Gadamael.

Nem o Comando-Chefe e o seu Estado-Maior, em Bissau, nem o novo Comandante do COP 5, em Gadamael (Sr. Coronel Durão), consideraram que o efectivo das NT, profundamente desgastado, física, moral e psicologicamente, era manifestamente insuficiente para fazer face a uma acção em força do IN; acresce o facto, do conhecimento de todos, que o aquartelamento de Gadamael não dispunha de abrigos semelhantes aos de Guileje.

Salienta-se a presença de carros de combate do IN na fronteira (mensagem da CCAÇ 3566 – Empada, de 16MAI73), possivelmente para actuar sobre Gadamael, onde a configuração do terreno, mais aberto, era propícia à sua actuação.

O Sr. Coronel Durão, ciente de que o IN não actuaria sobre Gadamael, conforme disse a um Sr. Oficial da Companhia que tinha vindo de Guileje, foi para Cufar em 30MAI, tendo sido substituído, em Gadamael, pelo Sr. Capitão Comando Ferreira da Silva, que chegara no helicóptero que levou o Sr. Coronel Durão.

Em 31MAI, pelas 14H00, teve início uma forte flagelação inimiga, sobre Gadamael; no período de 31MAI (14H00) a 02JUN (18H00), caíram no aquartelamento cerca de 700 granadas. As NT tiveram 5 Mortos e 14 Feridos. Foram provocados avultados danos materiais.

Só então foi accionado o reforço da guarnição, inicialmente com 2 Companhias de Paraquedistas, que se encontravam em Cufar (Sector do COP 4). A partir de 12JUN73, o Batalhão de Caçadores Paraquedistas n.º 12 (3 Companhias), esteve a reforçar Gadamael (com períodos de recuperação de uma Companhia em Cacine). Apesar deste considerável reforço, esteve prevista a retirada de Gadamael, para onde foi enviado o Sr. Major Leal de Almeida, para preparar o seu abandono, que não se verificou.

Nestas condições, parece lícito perguntar: se a guarnição de Gadamael tivesse sido reforçada, após a retirada de Guileje – 22MAI73, teriam sido tão graves os efeitos da acção inimiga sobre as NT? Arrisco-me a afirmar que, se os paraquedistas tivessem chegado mais cedo, seguramente que o IN teria tido muita dificuldade em montar o seu dispositivo de ataque.

A actuação do Comando-Chefe e do seu Estado-Maior, bem como do Sr. Comandante do COP 5, em Gadamael, no período 22/30MAI73, foi INCOMPETENTE, por não terem tido a capacidade de prever o que, com grande probabilidade, iria ser a iniciativa do IN.

A partir do início do ataque inimigo, o Comando Chefe accionou o reforço ADEQUADO, que no entanto pecou por tardio.

(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior de 17 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15759: (In)citações (84): Opinião sobre os Governadores e Comandantes-Chefes das Forças Armadas da Guiné - 1 (Coutinho e Lima, Cor Art Ref)

Guiné 63/74 - P15767: Agenda cultural (465): Encarceramento colonial no século 20: uma abordagem comparativa no 80º aniversário do campo do Tarrafal (Cabo Verde) | Conferência Internacional, Museu do Aljube, Lisboa, 21-22-23 Julho 2016: chamada de comunicações até 28/2/2016



Encarceramento colonial no século 20: uma abordagem comparativa no 80º aniversário do campo do Tarrafal (Cabo Verde) > Conferência Internacional, Museu do Aljube, Lisboa, 21-22-23 Julho 2016


1. Mensagem de ontem, de Helena Pinto Janeiro

Caro Luís Graça

Após a muito proveitosa troca de ideias sobre o campo prisional da Ilha das Galinhas (*), volto ao contacto consigo para pedir a preciosa ajuda do seu blog para a divulgação desta chamada para comunicações junto de colegas que tenham investigações em curso ou estejam interessados em desenvolver investigação sobre prisões e prisioneiros políticos nos impérios britânico, francês, holandês, belga, alemão e português, no século 20.

São especialmente bem-vindos olhares transversais e transnacionais sobre o encarceramento político em situação colonial. 

As propostas de comunicações podem ser enviadas, em português ou em inglês, até 28 de Fevereiro de 2016.(**)

Muito obrigada!


Campo de São Nicolau, Angola, maio de 1974 (Foto do Arquivo Nacional da Torre do Tombo)



2. Apresentação [, com a devida vénia...]

Em inglês / English version

A historiografia sobre o encarceramento colonial no período do colonialismo europeu moderno, de finais do século 19 até às independências do século 20, tem manifestado uma vitalidade assinalável nos últimos anos, com uma explosão de estudos empíricos e novas abordagens teóricas. Um dos casos mais estudados é o da África do Sul, onde se criaram os primeiros campos de detenção de prisoneiros políticos no seguimento da guerra Anglo-Boer. A investigação sobre outros contextos coloniais europeus no império britânico, francês, holandês, belga e Italiano também revelou a utilização frequente de campos em África e Ásia para o encarceramento de membros da oposição política perseguidos em contextos metropolitanos e coloniais.

No caso do III Império Português, o encarceramento de opositores é geralmente identificado com a Ditadura Militar e o Estado Novo, que criou campos especiais de detenção para este efeito nas colónias de então. O campo de prisioneiros do Tarrafal na Ilha cabo-verdiana de Santiago é o caso mais notório, denunciado internacionalmente como o primeiro campo de concentração português. Pese embora os africanos que também aí estiveram detidos já em plena guerra colonial, é a sua ligação à política metropolitana que lhe tem conferido um maior peso simbólico e visibilidade. Se alargarmos o foco a todo o império, verificamos que, exceptuando alguns estudos recentes, a história dos campos coloniais portugueses de detenção política no século XX se encontra ainda largamente por explorar. A historiografia crescente do encarceramento colonial tem-se sobretudo focado outros impérios europeus em África e Ásia.

O Instituto de História Contemporânea (Universidade NOVA de Lisboa) e o Museu do Aljube – Resistência e Liberdade pretendem marcar o 80º aniversário da abertura do campo do Tarrafal em Cabo Verde através da organização de uma conferência sobre o encarceramento político em colónias europeias durante o século XX. São bem-vindas propostas com investigações em curso sobre prisões e prisioneiros políticos nos impérios britânico, francês, holandês, belga, alemão e português, bem como olhares transversais e transnacionais sobre o encarceramento político em situação colonial. Uma selecção das comunicações apresentadas será incluída num número especial de uma revista internacional de revisão por pares.


Campo do Tarrafal, Ilha de Santiago, Cabo Verde, s/d  (Foto de José Gabriel L. de Magalhães,  Arquivo Nacional da Torre do Tombo). Sobre o Tarrafal temos doze referências no nosso blogue.
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

16 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14370: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (26): Letra (em crioulo e português) e vídeo da canção "Djiu di Galinha", de José Carlos Schwarz (Helena Pinto Janeiro / António Estácio)

16 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14374: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (27): Ainda sobre o cantor José Carlos Schwarz (Bissau, 1949 - Havana, 1977) e a letra da canção "Djiu di Galinha" [, Ilha das Galinhas] (Helena Pinto Janeiro, historiadora)

(**)  Último poste da série > 12 de fevereiro de 2016 >  Guiné 63/74 - P15740: Agenda cultural (464): Lançamento, em Paris, no Museu de Arte e História do Judaísmo (MAHJ), dia 18, 5ª feira, da edição francesa do livro de Samuel Schwarz (1880-1963), "Os cristãos-novos em Portugal no séc. XX" (1ª ed, 1925) (João Schwarz)

Guiné 63/74 - P15766: Notas de leitura (809): “Amílcar Cabral, Um outro olhar”, por Daniel dos Santos, Chiado Editora, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Abril de 2015:

Queridos amigos,
É a vez de um cabo-verdiano se afoitar a narrar a vida e Amílcar Cabral.
Não se pode desmerecer do trabalho aturado que subjaz a esta narrativa. Estranha-se que o autor nunca refira os livros-chave de Julião Soares Sousa e Leopoldo Amado, nem uma palavra refere sobre a entrevista do seu compatriota José Vicente Lopes a Aristides Pereira, peça incontornável para procurar decifrar o contencioso entre guineenses e cabo-verdianos.
No estudo histórico não podemos segregar as investigações de nomeada. A despeito da incompreensível falta de referência a textos fundamentais, anda por este livro imensa investigação e um grande afã numa interpretação do papel do líder revolucionário africano mais popular do seu tempo e no equívoco da unidade Guiné-Cabo Verde.

Um abraço do
Mário


Uma nova investigação sobre Amílcar Cabral (1)

Beja Santos

Compreende-se a atração que Amílcar Cabral continua a provocar nos investigadores: foi indiscutivelmente o ideólogo revolucionário mais importante nas colónias portuguesas; historicamente, é visto como o pai fundador de dois países africanos; no início dos anos 1970 era uma das figuras mais cotadas na cena internacional, encarado como uma autêntica estrela devido à sagacidade do seu pensamento, a originalidade que impusera na estratégia política dos movimentos libertadores, admirado pela estrutura organizativa que soubera impor no PAICG; e todos os estudiosos puderam confirmar como ele foi a força motriz desde a génese do partido revolucionário, o preparador da guerra, o autor de comunicados, de jornais, de apresentador de comunicações nos mais reputados areópagos, e um muito mais que se sabe.

Quando aparece um novo trabalho sobre Amílcar Cabral, faz todo o sentido, por conseguinte, esperar algo de novo no campo da investigação, pois existem trabalhos de valor incalculável, onde pontificam Julião Soares Sousa que recebeu o prémio Gulbenkian de Ciência pelo seu magistral “Amílcar Cabral – Vida e morte de um revolucionário africano”, Edições Nova Veja, 2011 e Leopoldo Amado com o seu “Guerra colonial e guerra de libertação nacional”, IPAD, 2011. São trabalhos de consulta obrigatória, é como se estivéssemos a revisitar a biografia de Salazar e escamoteássemos a biografia de Filipe Ribeiro de Menezes, ou a Idade Média em Portugal ignorando toda a investigação de José Matoso. Muitos outros escreveram sobre Amílcar Cabral, caso de Mário Pinto Andrade, Gérard Chaliand, António Tomás, Patrick Chabal, Luís Cabral, Aristides Pereira, Basil Davidson. Pois bem, “Amílcar Cabral, Um outro olhar”, por Daniel dos Santos, Chiado Editora, 2014, é uma investigação que não se pode ignorar, está para ali muita pesquisa, uma vontade sincera em iluminar eventos controversos, pôr clareza em acontecimentos que continuam dominados por uma certa religiosidade ou mitologia. Mas escrever sobre Amílcar Cabral passando ao largo das obras cimeiras é que não lembra a ninguém.

Daniel dos Santos apresenta-se como jornalista, politólogo e professor universitário. É um cabo-verdiano que se lançou neste empreendimento dizendo que pretende descrever o percurso de Amílcar Cabral tal como realmente foi, nada de abstrações, lendas ou alegorias. E para situar o biografado começa por nos dizer que Cabo Verde era uma colónia sem colonialismo, que a construção identitária de Cabo Verde se fez a par das revoltas de escravos e das reivindicações separatistas. Cabo Verde possui um vasto portefólio de sentimento nativista sem igual no espaço lusófono africano. Para o investigador este pano de fundo ajuda a esclarecer que a ideia da independência de Cabo Verde e da Guiné-Bissau, assim como a da criação de um partido africano, não nasceu com Amílcar Cabral. É pena que não nos tenha dado o contexto permanentemente conflitual entre as gentes da Senegâmbia e os portugueses, ao menos ficava-se a saber que as soluções separatistas da Guiné e Cabo Verde não se confundiam. Ao forjar uma coexistência entre os dois povos preparou-se a cizânia, que não se esclareceu completamente com a rutura de Novembro de 1980. Daniel dos Santos retrata-nos o meio familiar de Amílcar, os seus estudos na Guiné e em Cabo Verde, a constituição da sua formação cultural, a sua vida para Lisboa, a sua frequência a Casa dos Estudantes do Império, os novos ventos independentistas que sopravam no termo da II Guerra Mundial. Trata-se de um período já bem documentado onde as investigações de Dalila Mateus deixaram esclarecido como estes jovens estudantes procuravam estudar a identidade cultural.

Numa segunda parte, o estudioso anda à volta de Cabral como homem político, a génese da sua revolta, as fomes e as secas no espaço cabo-verdiano, a falta de direitos cívicos. Insinua-se mesmo que Cabral se terá revoltado por discriminação num concurso no Instituto Superior de Agronomia. Mesmo que se admita que tal tenha acontecido, em 1958 Cabral já se encaminhava para o confronto com o regime de Salazar, pesaria muito pouco a traquibérnia de um professor racista. Mais a mais, o autor desmonta o episódio do regresso de Cabral e a mulher da Guiné para Lisboa, durante tempos pusera-se a correr que o Governador da Guiné o expulsara, sabe-se hoje que ambos regressaram de urgência a Lisboa adoentados pelo paludismo.

Depois traça-nos o quadro dos movimentos nacionalistas então existentes, revela que o episódio de massacre do Pidjiquiti não teve nem podia ter interferência tanto de Cabral como dos seus amigos, embora seja admissível que o Movimento de Libertação da Guiné o tenha impulsionado, esmiuça o MAC (Movimento Anticolonial), os seus protagonistas e as razões do seu fracasso até se transformar em 1960 no FRAIN – Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das Colónias Portuguesas, avultando o papel de um líder injustamente esquecido, o angolano Viriato da Cruz. Tudo irá mudar com o início da guerra em Angola, como partido só existia a UPA, tornou-se premente que os movimentos libertadores aparecessem inequivocamente identificados por países e a FRAIN transformou-se em CONCP – Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas. É o momento em que Cabral é levado a tomar uma decisão difícil: a partida para o exílio, teremos doravante, e até ao seu assassinato, o revolucionário sedeado em Conacri.

E numa reviravolta surpreendente da sua investigação, somos atirados para a morte de Cabral e a sua constelação e mistérios, cumplicidades e negligências. Passa em revista os diferentes episódios em que se procurou abater Cabral e deixa-se claro que a hostilidade entre cabo-verdianos e guineenses era percebida por todos. Poderão ter interferido em diferentes fases, com o papel instigador, as autoridades da PIDE, mas não há na verdade um só documento que conecte a polícia política com uma conspiração que acabou por levar à prisão centenas e centenas de guineenses em Conacri. O autor interroga a quem interessava a morte de Amílcar Cabral, põe várias hipóteses, mas todos os testemunhos desaguam sempre num litígio racial que se apresentava como insanável. Há o mistério Sékou Touré, mas continua por apurar qual o verdadeiro papel desempenhado pelo ditador de Conacri.

Ainda há muito mais para dizer sobre este livro, seremos seguidamente envolvidos na história do PAIGC, na grande utopia de Cabral, no papel da unidade Guiné-Cabo Verde. No epílogo, o autor não se escusa de referir Cabral dizendo que é urgente situá-lo no seu lugar na história de Cabo Verde. Nesta observação também se percebe a trajetória à volta de identidade cabo-verdiana… Afinal o autor dá como comprovado que aqueles dois países não eram conciliáveis em qualquer forma de federação. É pena que tenha iludido as explicações de fundo para uma contenda de séculos.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15752: Notas de leitura (808): “Spínola”, de Luís Nuno Rodrigues, A Esfera dos Livros, 2010 (2) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15765: Efemérides (216): O Pepito deixou-nos há 2 anos... Retenho a ideia que tinha dele em vida: um homem de grande coragem física e moral, um cidadão de princípios e de valores, um intelectual de fina inteligência e sensibilidade sociocultural, um engenheiro agrónomo e gestor com uma espantosa capacidade de trabalho, organização, determinação e liderança, um dirigente de arguta visão, um abnegado patriota, um amigo generoso e hospitaleiro, um bom pai e melhor avô, e sobretudo, um bom gigante com um coração de ouro... Enfim, um homem que, perante a adversidade, sabia que "desistir era perder, recomeçar era vencer"... (Luís Graça)



Lisboa > Campus da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Liosbnoa > 6 de setembro de 2007 > A face lumionsa do engº agrº Carlos Schwarz da Silva, 'Pepito'  (Bissau, 1969-Lisboa, 2014)... Tal como a máquina fotográfica a fixou, há mais de 8 anos atrás...


Lisboa > Campus da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade NOVA de Lisboa > 18 de fevereiro de 2016 > A palmeira cresceu, está vigorosa, contrariamente a muitas que na zona foram atacadas pelo escaravelho da palmeira (Rhynchophorus ferrugineus Olivier) e morreram... Sempre que passo por ela,  lembrou-me do Pepito e da sua face luminosa...  Hoje voltei a sentir o vazio da sua ausência...

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2016). Todos os direitos reservados.

1. Faz hoje dois anos que o Pepito, "nickname" de Carlos Schwarz da Silva, nos deixou, aos 64 anos,  Era um lusoguineense, filho de pais portugueses, nascido em Bissau, em 1/12/1949. Morreu, em Lisboa, no Hospital Curry Cabral, em 18/2/2014. 

A sua vida foi um exemplo para todos os que com ele trabalharam, dentro e fora da Guiné-Bissau. Muitas imagens foram usadas para o descrever, a corpo inteiro. Mas continua a faltar um grande biógrafo para um "homem grande" como ele que não foi apenas um "construtor de sonhos" (José Teixeira) como um  "arquiteto de pontes de diálogo" (Luís Graça), e, claro, sempre, um lutador, um sobrevivente,  um resistente,  um cidadão  do mundo.

No dia do seu 63º aniversário, escrevi: "Espero que a Guiné e o seu povo continuem a merecer a vida e a história de vida deste homem que nos honra a todos".

No Natal de 2005, recebi uma prenda do Pepito que muito me sensibilizou. Ele enviou-me, para publicação no blogue, um dos contos, escritos pelo seu pai, já falecido (Artur Augusto Silva) e que os filhos (Henrique, João e Carlos Schwarz da Silva) decidiram reunir em livro. Dois meses depois, em fevereiro de 2006,  conheci pessoalmente o Pepito, que me ofereceu o livro ("O cativeiro dos bichos"). Foi o início de uma bela amizade, que lamentavelmente só iria durar 7 anos.

À medida que foi nasccendo entre nós essa amizade (que foi curta mas grande) e que o fui conhecendo melhor, reforcei a ideia que tinha dele em vida: um homem de grande coragem física e moral, um cidadão de princípios e de valores, um intelectual de fina inteligência e sensibilidade sociocultural,  um engenheiro agrónomo e gestor com uma espantosa capacidade de trabalho, organização, determinação e liderança,  um dirigente de arguta visão, um abnegado patriota, um amigo generoso e hospitaleiro, um bom pai e melhor avô, e sobretudo, de um bom gigante com um coração de ouro... Enfim, um homem que  perante a adversidade,  sabia que "desistir era perder, recomeçar era vencer"...

O José Teixeira, dirigente da Tabanca Pequena ONGD,  também grande amigo e admirador do Pepito, escreveu sobre ele:

"Tive a felicidade de caminhar várias vezes a seu lado pelo interior da Guiné. Impressionava-me vivamente a forma como era acolhido em festa. Como os mais velhos e os mais novos se acercavam dele, em grupo ou isoladamente, para lhe darem conta dos resultados dos projetos em desenvolvimento. (...) Havia sempre razão para um sorriso de esperança. Havia sempre uma mão estendida num cumprimento afetuoso. Havia sempre uma palavra amiga e de estímulo. O Pepito acreditava naquela gente, mais que ninguém porque conhecia pessoa a pessoa e chamava-a pelo nome."

O Pepito teria, com certeza, os seus defeitos, como qualquer ser humano. Os amigos são magnânimos ao engrandecer as virtudes e ao minimizar os defeitos dos grandes homens e, sobretudo, dos amigos.

Quero, porém,  recordá-lo como o descrevi ao meu filho, João Graça, na véspera de partir, em dezembro de 2009, para a Guiné onde foi passar duas semanas, entre 6 a 19 de Dezembro de 2009, numa jornada mix de voluntariado e de férias. Ofereceu os cinco primeiros dias (de 6 a 10 de Dezembro de 2009), para trabalhar como médico no Centro de Saúde Materno-Infantil de Iemberém, no Cantanhez, com apoio (logístico) da AD - Acção para o Desenvolvimento e a hospitalidade do Pepito (e da Isabel Levy Ribeiro). Para além de Bissau e do Cantanhez, o João esteve nos Bijagós, na zona leste (Bambadinca, Bafatá, Tabatô e Gabu) e na região do Cacheu (São Domingos): foi um jornada, também para ele, inesquecível... (Valeu um ano de faculdade... de medicina!).

Devo também ao Pepito a oportunidade de regressar à Guiné, 37 anos depois da guerra colonial... Escrevi sobre isso aqui, no primeiro de 18 postes publicados na série "Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça):

(...) "Regresso à Guiné. 37 anos depois. É duro, é uma provação. Tenho sentimentos ambivalentes. Quero e não quero ir. Há o Graça que quer ir, o fundador e o editor deste blogue; e o Henriques que não quer, o velho tuga, o furriel miliciano, apontador de armas pesadas de infantaria que esteve na CCAÇ 12, em Bambadinca, em 1969/71, e a quem deram uma G3 de atirador de infantaria… Durante muito tempo, todos nós quisemos esquecer a Guiné, ao mesmo que alimentámos o desejo secreto, voyeurista, de lá voltar… Eu decididamente não teria lá voltado se não tivesse surgido a oportunidade que representou, para mim e outros camaradas, a realização do Simpósio Internacional Guiledje na Rota da Independência da Guiné-Bissau, que vai começar amanhã e prolongar-se até 7 de Março de 2008. (...) Mas já houve mais resistências ou defesas, há uns tempos atrás, quando recebi o convite dos organizadores do Simpósio. Agora os dados estão lançados, é tarde demais para hesitações. Vou à Guiné, não em romagem de saudade (acho piroso o termo…), mas pura e simplesmente em trabalho. Quero convencer-me disso. É mais fácil assim. Racionalizo, logo passo o teste. (...).

Essa viagem (com ida ao Cantanhez, num fim de semana prolongado) reforçou a minha convicção de que a Guiné-Bissau é um terra de esperança e de futuro... Pepito escolheu, e não foi por acaso, a escultura do Nhinte-Camatchol como "mascote" do Simpósio Internacional de Guiledje.  Em Bissau escrevi um longo poema que terminava assim:



(...) E que o Nhinte-Camatchol, 

o grande irã dos nalus,
te proteja,
Guiné, Tabanca Grande.
E o Deus dos cristãos,
dos grumetes do Geba e da Amura,
e o Alá dos fulas, mandingas e beafadas,
e os irãs dos balantas, manjacos, papéis, bijagós
e demais povos ribeirinhos, animistas,
que todos eles te inspirem
e te protejam! (...)

O Nhinte-Camatchol não protegeu o Pepito, que sacrificou muito da sua saúde, segurança e "qualidade de vida" (suas e da sua família) pelo seu povo. Esperemos que Deus, Alá e os Grandes Irãs protejam aquela terra que continuamos a amar, e os nossos amigos que lá vivem. Eles merecem. E que o exemplo do Pepito continue a ser inspirador, para eles e para todos nós. (LG)



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Iemberém> Simpósio Internacional de Guileje > 1 de Março de 2008 > Grafito com o desenho nalú do irã protetor da tabanca, o Nhinte-Camatchol, e que fez parte do logótipo do Simpósio, organizado pela AD -Acção para o Desenvolvimento, o INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesqusias, e UCB - Universidade Colinas do Boé

O Nhinhe Camatchol é uma escultura dos nalus do Cantanhez usado na festa do fanado. Representa uma cebeça de pássaro com rosto humano, sendo a mensagem aos participantes deste ritual de iniciação à vida adulta a seguinte: que todos eles passam a considerar-se como verdadeiros irmãos, mais verdadeiros que os próprios irmãos biológicos. O que deve ser entendido como a afirmação do interessse colectivo, comunitário, acima do interesse dos indivíduos e das famílias. Orginalmente esta máscara não poderia ser vista pelos não iniciados, sob pena de morte (Campredon, Pierre – Cantanhez, forêts sacrées de Guinée-Bissau. Bissau,Tiguena. 1997, pp. 32-33).

Foto (e legenda): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados.


2. O Pepito, direta e indiretamente, tem no nosso  blogue algumas centenas de referências, desde 2006. É-nos impossível, por falta de tempo,  fazer um recolha sistemática num universo que já vai a caminho dos 16 mil postes (não falando das imagens, algumas centenas das quais são dele ou relacionadas com ele e os seus projetos).

Aqui ficam alguns marcadores e, mais abaixo, uma seleção de postes (incompleta, já que faltam muitos postes entre 2006 e 2008).

Em termos biográficos, é de lembrar que ele descende de uma notável família, portuguesa, de origem polaco-judaica, pelo lado materno (Clara Schwarz) e caboverdiana, pelo lado paterno (Artur Augusto Silva). Clara Schwarz, com 101 anos, honra-nos com a sua presença na Tabanca Grande, sendo a nossa decana. (**)


AD - Acção para o Desenvolvimento (216)

Artur Augusto Silva (26)

Clara Schwarz (39)

João Schwarz da Silva (4)

Núcleo Museológico Memória de Guiledje (21)

Pepito (197)

Samuel Schwarz (3)

Simpósio Internacional de Guiledje (12)

Tabanca de São Martinho do Porto (16)

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 17 de fevereiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15758: Efemérides (215): Canquelifá, 9 de fevereiro de 1970: o burro, as carraceiras e o tiro ao alvo com uma Mannlicker... Ou quando um burro valia mais do que um Unimog... (Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)

(**) Vd. postes de:

8 de fevereiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15722: Notas de leitura (806): Textos de Carlos Schwarz (Pepito), na Revista Sumara, publicação da responsabilidade da Fundação João Lopes, Cabo Verde (Mário Beja Santos)

31 de outubro de  2014 > Guiné 63/74 - P13828: Notícias dos nossos amigos da AD - Bissau (36): Vídeo de homenagem ao Pepito (1949-2014)


18 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13006: 10º aniversário do nosso blogue (12): Faz hoje 2 meses que o Pepito nos deixou... Em sua memória reproduzimos aqui um vídeo de 2012, em que ele relata, com humor e boa disposição, uma das cenas de violência de que foi vítima, na sua casa do Quelelé, ao tempo de Kumba Ialá (c. 2000)...



21 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12869: Blogpoesia (377): O Dia Mundial da Poesia, 21 de março de 2014, na nossa Tabanca Grande (VIII): Pepito, o construtor de sonhos (José Teixeira, ONGD Tabanca Pequena, Matosinhos)


7 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12804: Manuscrito(s) (Luís Graça) (25): O Pepito que eu conheci... em 16/2/2006 e que, no fim da conversa de 1 hora, me fez um pedido algo insólito: um obus 14 para o Núcleo Museológico Memória de Guiledje...

25 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12772: In Memoriam (184): Carlos Schwarz da Silva (1949-2014)... Pepito ca mori!... E obrigado, homem grande e querido amigo, pelo teu calendário de 2014, com belíssimas fotos do Ernst Schade sobre as gentes da tua terra que tu amavas como poucos (Luís Graça)


15 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11098: In Memoriam (138): Cadi Baldé (c. 1984-2013), mãe da pequena Alicinha do Cantanhez (Luís Graça / Alice Carneiro)

6 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11064: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (5): Em Catesse, com o Pepito... Pela primeira vez tive medo!...Medo de não conseguir corresponder ao tanto que a população espera de todos nós!

2 de novembro de  2012 >  Guiné 63/74 - P10606: Blogpoesia (301): Na ka misti tchora mas, Guiné (Luís Graça)


25 de abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8165: 7º aniversário do nosso blogue: 23 de Abril de 2011 (20): O nosso Blogue serviu para colar partes da vida separadas pela guerra e que através dele se reencontraram (Pepito, AD- Acção para o Desenvolvimento, Bissau)

3 de abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6102: PAIGC - Quem foi quem (9): Abdú Indjai, pai da Cadi, guerrilheiro desde 1963, perdeu uma perna lá para os lados de Quebo, Saltinho e Contabane (Pepito / Luís Graça)

1 de abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6086: Ser solidário (63): Gente feliz... com lágrimas: a Cadi e a sua filha, a Maria Alice do Cantanhez (Pepito / Luís Graça)

26 de agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4863: Agenda cultural (24): A História de Cristina, por Mikael Levin, no CCB, de 31/8 a 8/11 (Carlos Schwarz, 'Pepito' / Luís Graça)

3 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3168: Ser solidário (20): Bissau: O triste caso da Cadi e a ajuda extraordinária do Tino, que trabalha na AD (Nuno Rubim)

3 de setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3167: Ser solidário (19): Morreu o Nuninho, da Cadi. De paludismo. De abandono (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P15764: FAP (94): O acidente com o T6, em Canquelifá, que vitimou o fur mil pil Alberto Soares Moutinho, ocorreu em 4/12/1969 (Portal Ultramar TerraWeb / Valdemar Queiroz / Abílio Duarte / José Manuel Matos Diniz)

 

Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Canquelifá > CART 2479 / CART 11 (1969/70)  > Canquelifá > 1970 >  O Valdemar Queiroz junto à carcaça de um T 6 que se havia despenhado uns tempos antes, em finais de 1969.

Foto: © Valdemar Queiroz (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: L.G.]


1. Comentários ao poste P15758 (*)

(i) Abílio Duarte [, ex-fur mil,CART 11, Nova Lamego, Paunca, 1969/1970]

A carcaça do avião, que aparece na foto, é o resto de um T6.

Aquele avião despenhou-se em Canquelifá, quando pretendia sair daquele destacamento para uma operação, no sector.
Lembro-me muito bem deste acontecimento, porque no dia anterior, o piloto aviador que faleceu, tinha estado connosco na nossa messe em Nova Lamego, penso que era amigo do nosso furriel Pais (mecânico),  lá de Espinho, e jantou com a malta.
Muita tristeza. Foi a nossa sina.

(ii) José Manuel Matos Diniz [,ex-Fur Mil da CCAÇ 2679,Bajocunda, 1970/71]

Estive por duas vezes em Canquelifá por períodos de uma semana cada, talvez a partir de Abril de 1970. 

Sobre o acidente do T-6 ouvi que o piloto teria sido festejado pelo seu aniversário, e que se bebeu alegremente. O avião levantou, mas em vez de tomar o rumo para Bissau, o piloto terá querido fazer uma manobra de agradecimento, um looping que acabou na grande árvore que havia no centro da localidade.

Obviamente não posso jurar que foi assim.

Abraços fraternos
JD

2. Comentário do editor:

Segunda a preciosa informação do portal Ultramar TerraWeb [Militares mortos em serviços > FAP - Pilotos e especialistas > de 12 abr 1959 a 14 nov 1975, lista elaborada por JCAS], o piloto do T 6 G [ # 1795] que se despenhou em Canquelifá, foi o Alberto Soares Moutinho, fur mil pil, da BA 12, Bissalanca, natural de Lourosa, Santa Maria da Feira.   

A fatídica data foi 4/12/1969. Tratou-se de um acidente: "após a descolagem,  bateu no solo e incendiou-se" (**).


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15763: Blogoterapia (275): Paisagens que dão tanta beleza à vida, abulia e esquecimento (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 13 de Fevereiro de 2016:


PAISAGENS QUE DÃO TANTA BELEZA À VIDA, ABULIA E ESQUECIMENTO

Para combater o excesso de peso, e a ferrugem dos músculos e articulações, males provocados pela idade e  pelos excessos alimentares, muitas vezes na companhia de amigos e camaradas, faço muitos passeios sozinho, em marcha forçada, no Parque da Cidade que fica perto da minha casa. Habituado desde muito jovem na minha aldeia, às longas caminhadas que me levavam a todos os sítios da sua área agrícola e florestal, ultimamente  comecei a sentir saudades desses espaços mais  amplos e diversificados, com outra lonjura dos caminhos do Parque, que consigo percorrer numa hora.

Pelo prazer das caminhadas, dos espaços amplos e das paisagens que entram pelo olhar e dão tanta beleza à nossa vida, recordo-me também dos anos da Guiné e das caminhadas que fiz por lá, com melhores pernas do que actualmente.

Porto - Vista do Parque da Cidade

Nos primeiros meses em Buba, fiz grandes caminhadas com o pelotão, que já mostrava alguns sinais de cansaço para acompanhar o periquito, que eu era, pois eles já tinham sete meses de mato.
Sem nunca sair para fora da área que estava atribuída à companhia eu achava que devia ter conhecimento do terreno, para maior segurança psicológica, pela utilidade que poderia ter nalguma emergência, por outro lado era também levado pela curiosidade em explorar as paisagens de floresta e bolanha que me rodeavam. Nesses  longos "passeios" tivemos a sorte de nunca nos cruzarmos com o inimigo, e confesso que como amante da vida ao ar livre e da natureza, foi das melhores experiências que tive na Guiné.

Problemas e azares, de que já falei, houve depois, nos últimos meses da comissão, para lá dos ataques mensais ao aquartelamento, que o Nino Vieira parecia fazer para cumprir calendário, que nos assustavam mas  nunca magoavam ninguém. A norte da bolanha dos Passarinhos, que tínhamos que cruzar na estrada de terra batida, que nos ligava a Nhala, para fazer protecção às frequentes colunas de reabastecimento, havia  uma enorme bolanha, que já não recordo se seria a sua continuação ou outra. Nesta grande área de bolanha só estive uma vez, com toda a companhia e terá sido das poucas vezes que o capitão saiu. Gostei muito de conhecer esse enorme descampado pouco arborizado e rodeado de floresta, talvez por alguma nostalgia da parte planáltica da minha aldeia, onde se cultivava o trigo e o centeio.
A nossa imaginação transporta para toda a parte as cópias das gentes e das paisagens onde nascemos e fomos criados e gostamos de as encontrar projectadas noutros ambientes. Fui algumas vezes na direcção de Fulacunda, que sendo bastante distante de Buba, parecia-me que havia entre as duas tabancas, muita terra de ninguém que poderia ser controlada pelo PAIGC. Fulacunda que talvez por ter um nome sonante e quase mágico e pela vizinhança confinante com Buba ainda que um pouco distante, sempre foi para mim um mistério a  despertar a minha curiosidade.

O José Teixeira, que fez tropa em Buba, antes de mim, e é um grande andarilho, que já voltou algumas vezes à Guiné, falou-me duma povoação nessa direcção, não muito longe de Buba, controlada pelo inimigo, segundo testemunho que recolheu junto de habitantes dela. Nunca soube ou não me apercebi da existência dessa tabanca. Saindo de Buba, próximo da pista de aviação, havia um troço de estrada abandonado, onde já crescia algum mato, que segundo parece não levava a parte nenhuma, que eu nunca percorri em toda a sua extensão até por ser um caminho muito exposto. Terá sido uma tentativa frustrada de abrir uma estrada, no tempo de companhias anteriores, na direcção de Aldeia Formosa.
Na direcção de Empada, a sudoeste, só me recordo de ter ido duas vezes com dois pelotões, numa espécie de patrulhamento sem outro objectivo definido, que não fosse observar se haveria vestígios da passagem ou actividade do inimigo, que por vezes nos atacava dessa zona, ainda perto do quartel, do outro lado do Rio Grande Buba.

Paisagem da Guiné - Pôr-do-sol no Pelundo

Depois de Buba, rumei para Mansabá, recomendado, por erro de casting, como bom combatente, como me chegou a dar a entender o Capitão Abreu, Comandante do COP, e para aborrecimento do capitão miliciano da companhia, que chegou uns dias depois de mim, Economista na vida civil e que tinha tanto jeito como eu para a vida militar.  Bom homem esse capitão, pois se ele fosse rigoroso na aplicação do RDM, eu provavelmente teria cumprido mais alguns meses de Guiné.
Mal recordo a actividade operacional. Lembro-me de fazermos uma operação, no sentido contrário à mata do Morés, não recordo qual o objectivo. Sei que andei muito tempo a pé por uma mata bastante densa e não me recordo porque motivo cheguei a andar de helicóptero, talvez para ver a paisagem.
Foi nessa ou noutra operação, que de manhã cedo a companhia estava toda formada na parada à minha espera, e o capitão danado pela minha demora, e eu a chegar  impassível e abstracto a olhar para ele.
Já escrevi algures no blogue que por muita pena minha nunca pude entrar na mata do Morés, por proibição conjunta do PAIGC e das autoridades militares, já que nessas operações somente eram utilizadas tropas especiais. Mas eu gostaria tanto de conhecer essa grande extensão de floresta, de preferência sem tiros nem bombas.

Pelo prazer que sempre tive em conhecer os campos e florestas da Guiné, se revelam as minhas origens camponesas. Se pudesse tinha dado a volta a toda a Guiné a pé.

Por causas várias que talvez não consiga analisar objectivamente, ou porque isso não me agrade agora, reconheço que nos meses passados em Mansabà, já estava um pouco "apanhado pelo clima" e o meu comportamento reflectiu bastante isso, confirmado recentemente pela minha irmã, mais próxima da minha idade, que há dias me falou do meu regresso a casa.

As nossas irmãs, essas jovens que desde cedo desenvolviam em relação a nós, uma mistura de sentimentos fraternais e maternais e alguma admiração e curiosidade pelas  nossas diferenças físicas e psicológicas.
As nossas irmãs, que nesses anos de aflição das famílias, acrescentavam tanto carinho e afectividade à que nos era dedicada pelos pais e que, segundo ela, eu tratei com tanta indiferença quando regressei. Nunca demos muito realce ao amor e sofrimento dessas jovens como se elas fossem obrigadas a isso por dever familiar. Tantos anos passaram e só agora esta irmã me fez esta "queixa", que surgiu somente, por acaso, no decorrer de uma conversa sobre o passado comum.

Outros factos que não sabia e outros que esqueci, por exemplo que a minha mãe chorava muito porque eu não dava notícias, e ela culpava as filhas por me escreverem pouco quando isso até não seria verdade. Note-se que a nossa mãe tinha a quarta classe mas bastante ocupada nas múltiplas tarefas que tinha que fazer no lar, cozinhar, costurar, chulear, tecer e outras, entre as quais ir na burra à horta, uma grande paixão para além dos filhos, encher as alforjes com as diferentes qualidades de hortaliça, atribuía a responsabilidade da escrita dos aerogramas às filhas.

Talvez esse estado de espírito, de que falei, em que se misturava abulia e esquecimento tenha varrido da minha memória muito do que se passou e vivi em Mansabá. Algumas recordações conservo e já aqui falei delas, sobretudo a cordialidade e camaradagem que senti da parte de todos.

Durante muitos anos, como muitos camaradas, voltei as costas à Guiné, quis esquecê-la e riscar da minha vida os dois anos que por lá passei. Há três anos, com a descoberta do blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné" e com a premência causada pelos dias intermináveis dos primeiros meses da reforma e o avançar da idade, comecei a sentir mais a necessidade de fazer um balanço da minha vida pelo que tentei explicar e integrar esses dois anos na corrente e sucessão dos outros de forma a reconciliar-me com a memória dos tempos de brasa da juventude.

Um abraço.
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15737: Blogoterapia (274): Portas estreitas da vida onde nem sempre se consegue passar (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto, CART 3493, Mansambo, Fá Mandinga, Bissau, 1972/74)

Guiné 63/74 - P15762: Blogpoesia (437): "Quem Sou Eu?" (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381)

1. Mensagem do dia 15 de Fevereiro de 2016 do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), trazendo até nós um poema da sua autoria intitulado "Quem Sou Eu?"


Quem sou eu? 

Ao olhar para mim, interrogo-me: 
Quem sou eu? 
O que faço aqui? 
O que me fez ser assim, 
Tal como sou, em construção, 
Desde o dia em que nasci? 

Sou um somatório de tudo o que me aconteceu. 
Sou comunhão 
De tudo o que fui. 
Do que a vida me deu. 
De tudo o que vivi. 
De tanta coisa que pensei, 
Do muito que vi e senti, 
De tudo o que dei e recebi. 

Sou fruto do que fiz, 
Ténues marcas no Universo, 
Que ajudei a construir. 

Do que me fizeram, 
Puro amor gratificante, 
Base construtora da vida que vivi. 
Sou mistério envolvente 
Que me abraça e me conduz. 

Sou eu, 
Sou tudo e sou nada… 
À procura da luz. 

Zé Teixeira
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15746: Blogpoesia (436): Tudo passa (Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728)

Guiné 63/74 - P15761: Memória dos lugares (334): Fulacunda (Fernando Carolino, ex-alf mil, 3.ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74; natural de Alcobaça, a viver em Valado dos Frades, Nazaré)


Foto nº 2


Foto nº 2 A


Foto nº 1

Foto nº 1 A



Foto nº 3


Foto nº 7 > Mercado


Foto nº 5 > Tabanca


Foto nº 4 > Jorge Pinto (à esquerda) e Fernando Carolino, ambos do concelho de Alcobaça



Foto nº 6 > O Fernando

Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) 


Fotos (e legendas): © Fernando Carolino (2016). Todos os direitos reservados. [Edição:  L.G.]



1. Fotos enviadas em 13 do corrente pelo Juvenal Amado, com a seguinte indicação: 


Fernando Carolino, setembro de 1973.
Cortesia do blogue
Vallado de Frades, Um Século de Fotos
"Carlos e Luís, o meu cunhado Fernando [Lopes] Carolino prestou serviço em Fulacunda como alferes miliciano onde foi colocado em rendição individual entre 72 e 74. [Foto à esquerda, setembro de 1973]

Foi camarada do Jorge Pinto, membro do blogue. Estas são algumas fotos que pedi ao meu cunhado para publicar,"

2. Resposta do editor LG, em 21 do corrente:

Juvenal: obrigado, é o contributo do teu cunhado para o nosso património memorialístico. 

Acho que em troca ele deve passar a figurar doravante na lista alfabética dos membros da 
Tabanca Grande. Não sei se tu ou ele têm qualquer objeção... 
Não sei se ele nos acompanha, e se tem endereço de email.
 Fala com ele. Diz-lhe que a sua entrada nos honraria a todos.. 
Podes ser tu a apresentá-lo ao pessoal... Duas ou três linhas,,, 
Não arranjas uma foto atual ?...

Se ele é do tempo do Jorge Pinto (que é de Alcobaça,), e da mesma companhia, então havia dois alferes da mesma terra (ou vizinhos) em Fulacunda... Verdade ?...  Ab. Luis

3. Resposta do Juvenal Amado:

Ele vive Valado dos Frades que fica entre a Nazaré e Alcobaça , 6 km para cada lado. Valado dos Frades pertence à Nazaré. Mas ele nasceu em Alcobaça, foi novo para o Valado dos Frades. Eu vou falar com ele porque ele tem mais fotos mas em "slides".

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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P15760: Os nossos seres, saberes e lazeres (141): O ventre de Tomar (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Fevereiro de 2016:

Queridos amigos,
É comum dizer-se que as obras-primas não cansam, cada vez que as revisitamos somos alertados para nova leitura da contemplação. Assim sucede com o Convento de Cristo.
Tive um professor de História de Arte que observava que o turista que visita templos grandiosos, como S. Pedro, não se detém a ver as portas soberbas, do melhor nível escultórico, tem que ser induzido.
E quando se visita o interior e uma casa magnificente como aquela que ajudou a recuperar e viveu tão feliz o embaixador António Pinto da França, o segundo embaixador de Portugal na Guiné-Bissau, e se é guiado pela proprietária que sabe muito bem comunicar, a visita empola, e até apetece voltar, tal e tanta é a riqueza, o cuidado em resguardar os espaços íntimos e em saber expor o que se adquiriu pelas quatro partidas do mundo.
É um lugar que se confunde com os primórdios da história de Portugal, chama-se Quinta da Anunciada Velha.

Um abraço do
Mário


O ventre de Tomar (5)

Beja Santos


O turista desacautelado, após ter recebido uma descarga de alta voltagem na Charola, sai deste espaço de fascínio às arrecuas, para mirar a parede rasgada por determinação do rei Venturoso, ele pretendia um ecrã largo para deslumbrar quem chegava. O mesmo turista pode subir uma escada para o coro e daí captar a grandeza da porta multicolorida, ali só falta o som das trombetas para anunciar o paraíso na terra. E pode dar-se o caso de sair dali sem se aperceber do esplendor deste teto tardo-gótico, o que é uma pena, pode não estar rigorosamente à altura do exterior, onde se dependura a mais linda janela de Portugal, mas tem um fulgor especial, olhem bem para a elevação das paredes, harmoniosamente rasgadas, deixem-se estar uns minutos a namorar este toque gentil do que há de melhor em arquitetura.


Estamos agora no interior de uma casa prenhe de história, aqui houve conservação de memória, recuperação do passado, um bom gosto inexcedível na consagração dos lugares. Atenda-se à lareira, à pedra e aos azulejos, e depois a vista sobe até aos quadros pintados pela zona da casa, quando andou por Angola, ali estão também as armas do Conde de Tomar, a sua família por aqui passou, é narrativa longa que aqui não cabe, convém não esquecer que o Convento de Tomar, aí por 1940, foi posto em hasta pública, consta que Salazar, que por ali passeara no anonimato, compreendeu logo que se tratava de um tesouro nacional, e mandou um representante ao leilão, finda a licitação o Estado teve o direito de preferência. E ainda bem.



Aqui viveu o Embaixador António Pinto da França, delicadeza, afabilidade e cultura foram seu apanágio. Rodeou-se de invulgaridades, como estes ex-votos envolvendo o Santo do seu nome, era uma conjugação tão bela, com tal impacto cénico, foi só questão de procurar o ângulo que evitasse o excesso de luz. Ali perto, dando sinais de organização e método, ergue-se em várias salas uma biblioteca extraordinária, fixou-se esta imagem por se tratar de um recanto íntimo, tudo arrumado e aproveitado, sinal de que o proprietário lia e relia, aliás deixou uma bonita obra, injustamente nas mãos só dos conhecedores, bem merecia ter leitores aos milhões, escrita luminosa, saída de alguém que procurava tirar o partido do melhor que a gente tem.



Por inerência de funções, o Embaixador viajou muito e quando regressava trazia as suas preciosidades de vários continentes. É o caso destas figuras da Indonésia, lembram-me personagens de teatrinho, e esta máscara da vaca veio seguramente de um artista dos Bijagós, é esplendorosa, esse povo do arquipélago guineense é bom dançarino, é um povo animista e reporta a sua arte a tubarões e a vacas. Podemos encontrar máscaras como esta nos melhores museus do mundo, a arte bijagó tem uma genialidade que chama à atenção dos colecionadores mais exigentes.


Ao refazer a casa, os proprietários encontraram cacos de muitas peças, pediram ajuda a peritos em recuperação de património e vale a pena o visitante deleitar-se com este trabalho de amor, são séculos de cerâmica destas e de outras tábuas, aqui nestas prateleiras cruzam-se culturas, o proprietário ainda desejou catalogá-las mas não teve tempo. O importante é que quem visita a casa fica embevecido com este testemunho do tempo e a paixão de preservar.


Acaba a visita numa torre muito antiga, no interior há uma capela, uma singela cruz feita de pregos e esta imagem da Virgem que parece zelar no espaço austero, como se tivesse a deixar uma mensagem de que aqui viveram Frades Capuchos que rezavam a desoras, por isso se compreende a solicitude da Mãe de Deus para quem chega e se encomenda num espaço que há quem diga que é território mágico, o que é possível já que é comum comentar-se que é há uma atmosfera mística em Tomar e nos vários espaços onde evola o sentimento templário. Verdade ou patranha, para o caso não interessa, neste espaço, asseguro-vos, há uma atmosfera consagrada.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15732: Os nossos seres, saberes e lazeres (140): O ventre de Tomar (4) (Mário Beja Santos)