domingo, 5 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20814: (De) caras (150): Acossados pelo IN, numa agonia de 4 dias, entre 7 e 10 de outubro de 1965: seis camaradas, da CCAÇ 1420 e CCAÇ 1423, no decurso da Op Lenda, em Gamol, Fulacunda, têm um destino cruel: 3 são abatidos, 2 suicidam-se e o último rende-se (Rui A. Ferreira, ex-alf mil, CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67; e ex-cap mil, CCAÇ 18, Aldeia Formosa, 1970/72)

Rui A.Ferreira, alf mil,  CCAÇ 1420 (Fulacunda, 1965/67)...
Com um chapéu "turra". Cortesia do autor.

1. "Rumo a Fulacunda" era o grito de guerra, muito pouco "guerreiro", da Companhia de Caçadores 1420, em cujas fileiras ingressou o Alf Mil Rui Ferreira, em rendição individual, substituindo um camarada "desaparecido em combate" (,o seu corpor nunca foi recuperado), o Vasco [Nuno de Loureiro de Sousa] Cardoso, nado e criado em Angola, como o Rui Alexandre Ferreira.

"Rumo a Fulacunda" é o título do primeiro livro de memórias do nosso amigo e camarada Rui A. Ferreira, que hoje vive em Viseu, lutando contra uma doença degenerativa, razão por que há anos que não colabora no nosso blogue, onde tem  mais de 70 referências.

Neste livro, conta-nos um cruel episódio de guerra, passado no decurso da Op Lenda,  em Gamol, Fulacunda, em 7 de outubro de 1965, envolvendo as CCAÇ 1420 e CCAÇ 1423. Seis militares, perdem-se do grosso das NT,  dividas em três colunas de progressão, na sequência de uma forte emboscada IN, nesse próprio dia.

O Rui reconstitui, com maestria e grande tensão narrativa, as trágicas circunstâncias em que o Alf Mil Vasco Cardoso, à frente de um pequeno grupo de homens, perseguidos durante três dias por um numeroso grupo IN, morreu, depois de ver morrer mais quatro homens ... O sexto elemento, o soldado José Vieira Lauro, rendeu-se e  foi feito prisioneiro, levado para Conacri e mais tarde, já em 1968, libertado, sendo entregue à Cruz Vermelha do Senegal. Foi o único do grupo que restou, para nos contar esta, que é uma das mais trágicas histórias da guerra da Guiné.

Este episódio já aqui foi publicado, há quase 13 anos atrás (*). Muitos dos novos membros da Tabanca Grande nunca o leram, e o nome do Rui A. Ferreira tende a ficar esquecido. Queremos reavivar esta história, em homenagem às vítimas mortais mas também a quem soube preservar a sua memória (o José Vieira Lauro, sobrevivente e prisioneiro; e o Rui A. Ferreira, que deu a essa memóra letra de forma).

Por outro lado, e no atual contexto de confinamento, resultante da pandemia de COVID-19 e da declaração do estado de emergência, achámos por útil voltar a reproduzir este excerto do livro "Rumo a Fulacunda", agora noutra série, "(De)Caras" (**).

É claramente uma daquelas situações-limite, de vida ou de morte, em que o ser humano é obrigado a fazer escolhas radicais: resistir, lutar, matar, morrer... ou render-se.  Fica aqui o desafio aos nossos leitores, muitos dos quais poderão pôr-se na pele dos nossos infortunados camaradas: "Se fosse eu que estivesse no lugar do alf mil Vasco Cardoso, o militar mais graduado, o que é que eu faria ?"... 

Não, não é um "jogo de guerra", muito menos electrónico... Foi escrito com sangue, suor e lágrimas... Poderia ser um estudo de caso, relevante para a formação humana e militar e que levanta inúmeras questões, do foro militar, ético, jurídico, psicológico, psicotalógico, socioantropológico, filosófico,  etc.

Falta-nos mais informação sobre este episódio e o seu contexto: por exemplo, oficial ou oficiosamente, os nossos camaradas são dados como mortos em 6/10/1965, mesmo sem os corpos terem sido recuperados...

Por outro lado, só mais tarde se terá sabido do aprisionamento do José Veira Lauro... O Rui A. Ferreira diz que a operação teve início na madrugada de 7 de outubro... Confirmámos, noutro poste [, sobre a atividade operacional do BCAÇ 1860],  que a Op Lenda, na zona de Gamol,  subsetor de Fulacunda, teve início nesse dia, e envolveu as CCaç 1420 e 1423.

Sabemos o nome de código da operação, mas falta-nos informação mais detalhada... A emboscada terá sido nesse dia. E nesse mesmo dia, à tarde, as NT terão regressado a Fulacunda... onde deram conta da falta de seis elementos... Pergunta-se:  voltaram ao local da emboscada ?... Parece que sim, no dia seguinte, realizou-se a Op Busca, envolvendo forças da CCaç 797, 1420 e 1423, na zonas de Gamol e Ganjetrá... Mas as buscas terão sido, segundo o Rui A. Teixeira,  apressadas, incompletas e infrutíferas. Houve ainda, a 18Out65, a Op Ovo, nas zonas de Gamol, Bária e Sancorlá, com forças das CCaç 797, 1420, 1423, 1424 e CCav 677.

A agonia dos nossos camaradas ter-se-á prolongado "durante quatro longos, sacrificados, penosos e infernais dias" (sic),  num trágico jogo do gato e do rato, "em manifesta desigualdade"... Quatro dias, quer dizer, 7, 8, 9 e 10... Tudo indica que a última morte, a do Alf Vasco Cardoso, terá ocorrido a 10 de outubro de 1965, bem como a rendição do sold Lauro.

[Segundo a reconstituição feita por uma equipa do portal UTW - Ultramar TerraWeb - Dos Veteranos da Guerra do Ultramar,  a primeira baixa do grupo seria  o Fernando Manuel de Jesus Alves, morto no dia 8; a segunda vítima, a 9, terá sido o  José Ferreira Araújo; o  Armando dos Santos Almeida, morre a  10; o Armando Leite Marinho, morre a seguir,  possivelmente afogado, também no dia 10; o último a morrer, nesse dia, é o alferes Vasco Cardoso.]

Fica aqui a nossa sentida homenagem a estes camaradas, que tiveram sortes diferentes: 5 morreram (2 alegadamente por suicído) e um acabou por render-se ao grupo do PAIGC que os persegiu durante três ou quatro dias (de 7 a 10 de outubro de 1965).



Ficha técnica:

Autor: Rui Alexandrino Ferreira
Título: Rumo a Fulacunda
Editora: Palimage Editores.
Local: Viseu.
Ano: 2000. [1ª ed., 2000, 2ª ed., 2003; 3ª ed., 2016].
Colecção: Imagens de Hoje.
Nº pp.: 415.
Preço: c. 20€.

Nota biográfica:

1943 - Rui Alexandrino Ferreira nasce no Lubango (antiga Sá da Bandeira), Angola
1964 - Integra o último curso de oficiais milicianos que reuniu em Mafra a juventude do Império.
1965 - Rende, na Guiné-Bissau, o alf mil Vasco Cardoso, dado  um desaparecido em combate [CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67].
1970 - Frequenta o curso para capitão em Mafra, seguindo em nova comissão para a Guiné-Bissau [CCAÇ 18, Aldeia Formosa/Quebo, 1970/72].
1973 - Regressa a Angola em outra comissão.
1975 - Retorna a Portugal.
1976 - Estabiliza em Viseu, onde continua a residir. é ten cor ref.
2000 - Publica, na Palimage, o seu 1º livro, Rumo a Fulacunda: crónicas de guerra  (***)
2014 - Publica o seu 2º livro. Quebo: nos confins da Guiné (2014), igualmente sob a chancela da Palimage.
2017 - Lança um 3º livro,  A Caminho de Viseu,  nas instalações do RI 14 de Viseu, e sob a mesma chancela, a Palimage.



Guiné > Região de Quínara > Mapa de Fulacunda (1955) / Escala 1/50 mil > Posição relativa de Gamol e Ganjetrá, a oeste de Fulacunda,  A norte, o rio Geba, a leste, o rio Corubal.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)


2. Excerto do livro de memórias "Rumo a Fulacunda: crónicas de guerra", do nosso camarada Rui Alexandrino Ferreira (2003), pp. 37/40. (Subtítulos e comentário: L.G.;  fixação do texto para efeitos de edição no blogue: VB / LG).

(...) Na madrugada do dia sete de Outubro [de 1965], lá iniciaram a marcha para o objectivo, de início em bicha de pirilau, uma com a outra logo a morder-lhe os calcanhares.

À medida que o tempo ia passando e o aquartelamento ia ficando mais longe, o passo foi-se tornando mais lento, os ouvidos mais apurados, os olhos mais atentos, todos os sentidos em alerta permanente, numa concentração profunda.

Pausadamente!...Penosamente, lá iam avançando... Subitamente, com o inesperado habitual, deflagrou o tiroteio. O cantar característico das costureirinhas turras (pistolas metralhadoras PPSH) feria os ouvidos e eriçava os nervos.

Milagrosamente não houve nem mortos nem feridos a lamentar, de início. Na frente, que entretanto já havia sido, pelo Capitão Pita Alves, dividida em três colunas de progressão, a que se encontrava mais à direita, onde se integrava o Alferes Vasco Cardoso, directamente visada pelo ataque, ficou, imobilizada, retida pelo fogo das armas ligeiras e metralhadoras do inimigo.

- Tomar posições de defesa! - gritou o Alferes.
- Reagrupar à retaguarda! - comandava bem lá de trás o maior da 23 [, a CCAÇ 1423], Capitão de Artilharia [ou Infantaria ?]  Pita Alves, estratega e Comandante-em-Chefe da operação.


Seis homens isolados 
e perdidos na frente

No meio da confusão que se instalou e que a diversidade das pseudo ordens, opiniões, alvitres e sugestões que se seguiram mais agravou, as colunas viram-se partidas em vários segmentos. Numa das frentes, o Alferes e mais cinco homens fixados pelo intenso tiroteio turra, não conseguiam juntar-se à retaguarda ou reintegrar-se na força.

Por seu lado, ninguém ali conseguia esboçar qualquer tipo de reacção. Sufocados pelo tiroteio, desorientados, metidos cegamente na boca do lobo, impreparados para um confronto tão desigual, sem que alguém tivesse conseguido pôr ordem naquela periquitada, o grosso das Companhias retirou da zona, dispersa e desordenadamente.

Os seus elementos foram chegando a Fulacunda, desfasados no tempo e em pequenos grupos isolados. Uns quantos agora..., outros tantos tempos depois..., ainda mais alguns quando já se pensava no pior.

Isolados frente aos turras,  permaneciam ainda vivos os seis transviados. Batiam-se com o desespero e a raiva de quem luta pela sobrevivência. Nado e criado em África, Vasco Cardoso [, alf mil, CCAÇ 1420], era dos elementos mais válidos da Companhia. Habituado ao calor e à humidade, entendia-se perfeitamente com o clima e não estranhava o mato. Nele se movia, habitualmente, com o desembaraço dum lisboeta no Chiado. Apaixonado caçador como quase todo o bom africano, este era-lhe familiar. O instinto de conservação levava-o, debalde, à busca de uma qualquer solução.

Ia adiando o desastre que já pressentia, fazendo a um tempo pagar bem caro o preço da sua vida e dando oportunidade a que algo sucedesse. Poucos que eram, mantinham ainda em respeito o mais que numeroso grupo inimigo, esperançados na ajuda que certamente lhes prestaria alguma das Companhias. Que nunca chegou!... Foram-se esgotando as munições. Aos poucos... Aos poucos foram entrando em desespero...

Numa tentativa suicida para inverter a situação romperam o contacto em louca e desorientada correria. Tendo conseguido estabelecer alguma distância entre o minúsculo grupo que constituíam e o numeroso efectivo que o perseguia, a trégua de pouco lhes serviu.

E é pelo relato do Soldado José Vieira Lauro [, da CCAÇ 1423], único sobrevivente daquele grupo,  que se pode aquilatar a vastidão do desastre.

Perdidas as noções do tempo e das distâncias, perseguidos, acossados, encurralados, cercados, sem pausas para pensar ou tentar coordenar ideias, sem rumo e sem direcção, completamente desorientados, sem saber sequer onde estavam, na maior confusão sobre a localização do aquartelamento, indecisos para onde ou por onde progredir, durante quatro longos, sacrificados, penosos e infernais dias jogaram tragicamente ao 'gato e ao rato' em manifesta desigualdade.

Desigualdade que se foi agravando com o desenrolar do tempo e com a passagem dos dias, cada vez mais sujeitos à hostilidade dum mar verde que os envolvia, tolhia e amedrontava, cada vez mais rejeitados por uma selva que os não reconhecia e onde não tinham lugar.

Sem hipóteses de sobrevivência, facilmente referenciados dada a impossibilidade de integração ou mesmo de dissimulação no meio ambiente que os rodeava, pressionados pela perseguição feroz que o inimigo lhes movia, foram-se desgastando fisicamente e vendo definhar a pouca força moral que ainda restava.

As duas primeiras baixas 
do grupo

A própria fé que um acordar redentor fizesse com que, em vez da trágica realidade, da dura e cruel situação em que se encontravam, nada mais fosse que um tremendo pesadelo, se desvaneceu.


Afastada por inverosímil e absurda essa hipótese, sem o menor sinal de ajuda, sem a mínima sombra dum apoio, sentiam que o mundo donde provinham, completamente alheado das suas fraquezas, se tinha esquecido das suas angústias e mais grave ainda já duvidava das suas existências.

Abandonados, isolados, completamente entregues a si próprios e às desventuras que o destino lhes reservara, vencidos pelo desânimo, vergados pelo infortúnio, progressivamente se quebrou a pouca resistência que sobrava.

Já só um milagre os salvaria da morte. Milagre que não aconteceu... Sustidos pelo rio que lhes barrava o caminho, encerradas assim as já poucas saídas que lhes restavam, tudo começava a consumar-se.

Uma bala mais certeira trespassou, no segundo dia [8 de outubro de 1965], um deles, provocando a primeira baixa no grupo...

O corpo para ali ficou abandonado, repasto para os bichos!... Ao terceiro dia [, 9 de outubro de 1965] caiu o segundo. Mais um despojo que para ali ficou esquecido a marcar tragicamente a transitoriedade da vida. Tal como o primeiro,  o seu corpo para ali ficou de qualquer maneira, insepulto.

O desespero leva a 
dois suicídios

No último dia [, 10 de outubro de 1965,] em que funestamente tudo se consumou, um dos sobreviventes entrou em desespero. Não conseguindo suportar todo aquele sofrimento, toda aquela imensa pressão, no limite do controlo sobre as já pouco lúcidas faculdades mentais, em absoluta crise emocional, sem conseguir sequer imaginar uma saída redentora, só a morte se lhe afigurava como solução libertadora. Profundamente deprimido e a caminho da alienação total, pôs termo à vida e ao sofrimento, com um tiro na cabeça.


No auge do desespero e numa tentativa suicida, à partida absolutamente condenada ao fracasso, um tentou a salvação através do rio, por onde se meteu...para nunca mais ser visto. Jaz com certeza morto, algures... E se não teve por benção e por morte o afogamento, serviu de repasto aos crocodilos no que certamente terá sido um final dramático.


A morte do Alferes Vasco Cardoso 
e a rendição do Soldado Lauro

O Alferes foi o último a ser abatido e o Soldado Lauro, largou a arma e entregou-se… De nada lhe serviria o sacrifício da vida. Teve início então o longo calvário que se seguiu.

A caminhada rumo à fronteira, só atingida ao fim de vinte e dois dias de marcha, onde as canseiras, a dor e o sofrimento lhe causavam bem menor mágoa que o sentimento de culpa, o profundo abatimento e a vergonha de se sentir prisioneiro. A esse angustiante estado de alma se aliava o enorme desconforto motivado pelo receio do desconhecido, agudizado pela incerteza do futuro.

Só, inacreditavelmente só, como nunca se tinha sentido, possuído por uma tristeza mais negra que a pele dos próprios captores que o conduziam, caminhava como se fosse um autómato. Da fronteira para Conacri, o transporte em viatura, a entrevista com o próprio Amilcar Cabral, a recusa em ler para a rádio Argel, onde alguns compatriotas então brilhavam, fosse o que fosse contra Portugal, a clausura numa prisão, num antigo forte colonial francês, na cidade de Kindia, cerca de uma centena de quilómetros a nordeste de Conacri.

Aí, onde sob o enorme portão fronteiriço se podia ler Maison de Force de Kindia, foi encontrar o 1.° Sargento Piloto-aviador Sousa Lobato, primeiro militar português que o PAIGC aprisionou quando, no sul da província, teve de efectuar uma aterragem de emergência numa bolanha, corria o ano de 1963.

Permaneceu em cativeiro, trinta longos meses. Foi libertado num gesto de boa-vontade, em 1968 e entregue à Cruz Vermelha Internacional que o fez chegar a Lisboa. (****)

Não esqueceu os tempos maus que por lá passou mas nunca foi alvo de procedimentos vexatórios ou de maus tratos. Era um prisioneiro de guerra, assim foi considerado e como tal tratado. Nesse aspecto e unicamente reportando-me à Guiné, se alguém teve razões de queixa, não foi seguramente a tropa portuguesa. O próprio Amílcar Cabral nunca se cansou de afirmar que a luta era contra o Regime Colonialista que então detinha o poder em Portugal e nunca contra o povo português.

Entretanto em Fulacunda, procedia-se ao rescaldo da operação. Formadas as Companhias já a meio da tarde, quando se começou a recear que mais ninguém conseguisse regressar, contavam-se os efectivos.

- Seis! Faltavam seis homens! Dois da [CCAÇ] 1420 (o Alferes Vasco Cardoso e o Soldado-telefonista nº 1020/64 Armando Leite Marinho) e quatro da [CCAÇ] 1423 (o 1.° Cabo Fernando de Jesus Alves e os Soldados José Ferreira Araújo, Armando Santos e José Vieira Lauro. (...) (*****)




Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral > Senegal > Dacar > 15 de março de 1968 > "[Da esquerda para a direita:] Eduardo Dias Vieira, José Vieira Lauro e Manuel Fragata Francisco, prisioneiros de guerra portugueses entregues pelo PAIGC à Cruz Vermelha do Senegal, na sede em Dakar."  (Reproduzido com a devida vénia...)

Citação:
(1968), "Entrega pelo PAIGC de prisioneiros de guerra portugueses à Cruz Vermelha do Senegal", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_44076 (2020-4-5)

______________

(**) Último poste da série > 11 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20724: (De)Caras (122): Carta pungente do Umaru Baldé (c. 1953-2004), um dos meninos-soldados que passaram pelo CIM de Contuboel, entre março e julho de 1969... Era dirigida ao seu antigo instrutor militar, Valdemar Queiroz.

(...) Um outro camarada ex-prisioneiro de Conacri foi o José Vieira Lauro, que já era prisioneiro em Conacri quando o Jacinto Barradas lá chegou (...).

Foi um dos que mais tempo esteve aprisionado e, na prisão, cabia-lhe a tarefa de distribuir a comida pelos restantes prisioneiros. Na maior parte das vezes (segundo o Jacinto Barradas) apenas era distribuído arroz porque, das poucas vezes em que a refeição trazia alguma carne de galinha, esta era roubada pelos guardas.

O José Vieira Lauro vive na região de Leiria - telef. 244 881 695; telem. 919 086 150. (...)


Vd. também poste de 18 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1967: Prisioneiros em Conacri, capa da Revista do Expresso, 29 de Novembro de 1997: o que é hoje feito deles ? (Henrique Matos)


Militares mortos:

Armando dos Santos Almeida, Soldado / CCaç 1423 / 06.10.65 /Fulacunda-Gamol / Ferimentos em combate / Queiriga, Vila Nova de Paiva / Corpo não recuperado.

Armando Leite Marinho, Soldado / CCaç 1423 / 06.10.65 / Fulacunda-Gamol / Ferimentos em combate / Jugueiros, Felgueiras / Corpo não recuperado.

Fernando Manuel de Jesus Alves, 1.º Cabo / CCaç 1423 / 06.10.65 / Fulacunda-Gamol / Ferimentos em combate / Leiria / Corpo não recuperado.

José Ferreira Araújo, Soldado CCaç 1423 / 06.10.65 / Fulacunda-Gamol / Ferimentos em combate / Povolide, Viseu / Corpo não recuperado.

Vasco Nuno de Loureiro de Sousa Cardoso, Alferes / CCaç 1420 / 06.10.65 / Fulacunda-Gamol / Ferimentos em combate / Belém, Lisboa / Corpo não recuperado.

[No portal da Liga dos Combatentes, Mortos no Ultramar, todos estes nossos camaradas continuam a ser dados com mortos,  em combate, no dia 6 de outubro de 1965.]

Sobre as duas companhias envolvidas:

A CCAÇ 1420, mobilizada pelo RI 2, partiu para  o CTIG em 31/7/1965 e regressou a 3/5/1967. Esteve em Fulacunda, Bissorã e Mansoa. Comandantes: cap inf Manuel dos Santos Caria; cap inf Humberto Amaro Vieira Nascimento; cap mil inf Adolfo Melo Coelho de Moura. Pertence ao BCAÇ 1857 (Bissau, Mansoa, Mansabá, 1965/67).

A CCAÇ 1423, mobilizada pelo RI 15, partiu para o CTIG em 18/8/1965 e regressou a 3/5/1967. Esteve em Bolama, Empada e Cachil. Comandantes: cap inf Artur Pires Alves; cap inf João Augusto dos Santos Dias de Carvalho; cap cav Eurico António Sacavém da Fonseca; pertence ao BCAÇ 1858  (Bissau, Teixeira Pinto, Catió, 1965/67).

sábado, 4 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20813: Em busca de... (304): Do ex-1.º Cabo Américo Aflalo do Pel Mort 4580, em tempos morador em Alvalade (Carlos Vieira, ex-Fur Mil do Pel Mort 4580)

1. Mensagem de hoje, 4 de Abril de 2020, do nosso camarada Carlos Vieira, ex-Fur Mil do Pel Mort 4580 (Bafatá, 1973/74), em busca do seu camarada de armas, 1.º Cabo Américo Aflalo:

Boa tarde camarada Carlos

Se possível a publicação da foto em anexo para procurar um camarada amigo e que alguns anos (muitos) que não sei nada dele.

Esta foto foi tirada em Bissau em 1973 e eu sou o Furriel que está de óculos escuros e o camarada que procuro é o 1.º Cabo Américo Aflalo que está de calções e que era morador em Alvalade, tendo casado com uma moça chamada Lurdes. 

Isto são as últimas informações que tenho dele. Se alguém me poder ajudar, ficarei grato.

Um grande abraço para todos os camaradas, esperando que seja possível brevemente fazer um almoço, embora eu nunca ter participado em nenhum mas prometendo ir ao próximo.

Carlos Vieira 
(ex-Furriel do Pel Mort 4580 - tabanqueiro 761)

 1.º Cabo Américo Aflalo e Fur Mil Carlos Vieira
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20789: Em busca de... (303): Domingos Ferreira da Costa, da CCAÇ 2317 / BCAÇ 2835, natural de Seixo Alvo, Olival, V. N. Gaia, morto em combate, nas imediações de Guileje, em 28/3/1968 (Rosa Cruz, sobrinha)

Guiné 61/74 - P20812: Efemérides (321): No dia 4 de Abril de 1970, saiu a CCAV 2721 do cais de Alcântara em direcção a Bissau (Paulo Salgado)

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado, [ex-Alf Mil Op Esp,  CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor do livro (, o mais recente,) "Milando ou Andanças por África"], com data de hoje, dia 4 de Abril de 2020, relembrando a partida da CCAV 2721 de Lisboa com destino à Guiné.


50 ANOS

No dia 4 de Abril de 1970, saiu a CCAV 2721 do cais de Alcântara em direcção a Bissau (como seria em tempos de Cais da Ribeira, quando embarcavam as naus e carracas e caravelas e galeões, e nela iam marinheiros e grumetes e soldados e pilotos e mestres e boticário e barbeiro e despenseiro e centenas de viajantes que ansiavam a riqueza lá longe, nas lonjuras da África e do Oriente?).

O navio TT Carvalho Araújo na Gare Marítimo de Alcântara
Foto: António Tavares

Durante a viagem de sete dias, no velho Carvalho Araújo (velho navio das viagens para os Açores e Madeira, carregando passageiros e vacas, recuperado para transporte de carne para canhão), os mesmo enjoos de mar que nos séculos XV, XVI, XVII e sempre, e as mesmas chatices nos porões: a monte, matando o tempo com as cartas, e com os olhares tristes postos nas famílias que ficaram.

Há um relato do cabo do meu Grupo de Combate, o Moura Marques1, desde a saída de Lisboa até ao Olossato. Vou pedir-lhe para o registar no nosso blogue, dentro de dias. Um texto notável.

Desejo para todos os camaradas, a vontade de sobreviver, a mesma vontade de sobreviver o melhor possível à presente luta pela vida, aquela vontade que nos fez regressar, e uma saudade aos que partiram, então, e ao longo dos tempos.

Hoje, deixo-vos um poema de Amílcar Cabral – um dos pensadores mais importantes da História da Humanidade (considerado o segundo maior líder mundial - o ideólogo das independências da Guiné-Bissau e Cabo Verde, que surge numa lista elaborada por historiadores para a BBC2). A minha homenagem ao Homem que quis e tentou por diversas vezes o diálogo com os governos de Salazar e de Caetano.

Leiamos este poema “NO FUNDO DE MIM MESMO” (In Antologia Poética da Guiné-Bissau Editorial Inquérito, 1990) – talvez muito nos diga agora, igualmente.
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[1] - O Moura Marques esteve comigo em Bissau em 2006. Como foi interessante a ida ao Olossato e reencontrar amigos da população; os miúdos, homens agora, e os mais velhos recordarem o que se passou.
[2] - Vide, por todos, https://www.cmjornal.pt/mundo/africa/detalhe/amilcar-cabral-considerado-o-segundo-maior-lider-mundial.
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20693: Efemérides (319): O "Jornal do Exército", fundado em janeiro de 1960, faz 60 anos (Jorge Araújo)

Guiné 61/74 - P20811: Os nossos seres, saberes e lazeres (384): Uma memorável visita ao mundo albicastrense (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
Chama-se uma viagem ratificadora, com vários assomos de saudade.
No segundo ano da licenciatura em História, o professor, D. Fernando de Almeida, incitava os alunos a fazer trabalho de campo, e coube-me duas estadias na Egitânia (Idanha-a-Velha) e o castro eneolítico do Zambujal (Torres Vedras), o que se saldava por limpar e catalogar tíbias e caveiras, fazer fichas de pedras e pedregulhos e apoiar a equipa de arqueólogos nas interpretações estratigráficas, entre outros labores. Assim se chegou a Castelo Branco, que logo tanto impressionou o aprendiz de arqueólogo.
O que hoje assombra é a boa manutenção da cidade, respira-se ali muita qualidade de vida, as iniciativas culturais são muitíssimas e os critérios urbanísticos, salta à vista, são rigorosos e afeitos a uma cidade com muita História.

Um abraço do
Mário


Uma memorável visita ao mundo albicastrense (1)

Beja Santos

São coisas a que cada um está sujeito, pela vontade e pela boda do destino, tem-se uma casinha ali a pouco mais de setenta quilómetros, deambula-se por Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos ou Sertã, às vezes toma-se a A23 para ir a Trancoso visitar um grande amigo, também não é incomum dar um salto até ao Geopark Naturtejo, há quem nos peça para ir ver as Portas de Ródão, e depois damos conta que já soma décadas que não se visita Castelo Branco, de quem se tem as melhores lembranças, alguém atira com o nome da cidade e logo se fala no Paço Episcopal e o seu fabuloso jardim e o não menos atrativo Museu Francisco Tavares Proença Júnior. E à pergunta de que é que o viandante pensa do Centro de Cultura Contemporânea de Castelo Branco, obra do catalão Josep Lluis Mateo, em colaboração com o arquiteto português Carlos Rei de Figueiredo, fica-se envergonhado, ainda mais porque se contou a história dos dois meses em que se andou por Egitânia, por força da disciplina de Arqueologia, aqui se fez o obrigatório trabalho de campo. Estava tomada a decisão, passar um dia em Castelo Branco, viagem preparatória para estadia mais prolongada. Foi assim que tudo começou.




Inicia-se a viagem dentro de um Monumento Nacional, o Paço Episcopal e o Jardim do Paço Episcopal. Aqui pontifica uma arquitetura renascentista, barroca e rococó. O jardim é de uma patente originalidade, no seu barroquismo indisfarçável. Dedicado a S. João Baptista, foi encomendado pelo Bispo da Guarda, quem completa o jardim e o Paço Episcopal é D. Vicente Ferrer da Costa, foi Bispo de Castelo Branco. Há quatro sítios dentro deste jardim, todos eles de visita obrigatória: a entrada, o patamar do buxo, o jardim alagado e o plano superior.




Tudo impressiona, os azulejos, a escadaria monumental que conduz ao patim principal, ali estão prantados os dois bispos impulsionadores da construção do jardim, o portal é do século XVIII. Sobe-se para o Jardim do Buxo, quem por ali anda, e o viandante é um puro leigo, olha-se como boi para palácio, falta o fio condutor. A brochura entregue à entrada ajuda a compreender o que se olha sem entender: vinte e quatro talhões, cinco lagos com repuxos, estátuas organizadas por percursos iconográficos, como se o visitante tivesse diante dos olhos um autêntico compêndio material e espiritual do mundo, abrange o ciclo de Zodíaco, as quatro partes do mundo, as quatro estações do ano, as virtudes teologais e as virtudes cardeais. Assim dá gosto andar por ali a cirandar e perceber a lógica do artífice.




Portanto o Jardim do Paço Episcopal estende-se por vários patamares, tem vários lances de escadaria, é no patamar superior do jardim que encontramos Moisés a encimar a cascata que jorra para o tanque grande. Dali também se avista o jardim alagado. Tudo somado e multiplicado, é um prazer para os olhos, desfruta-se de belas panorâmicas, podem-se ver os restos dos panos de muralha do castelo. É também lendo a brochura que se fica a saber que este fabuloso jardim fazia parte de uma vasta e complexa unidade agrária, paisagística e estética. Andamos só pelo jardim, a visita ao paço (hoje o museu mais precioso da Beira Baixa) fica para depois.



(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20784: Os nossos seres, saberes e lazeres (383): Andar por Ceca e Meca e não pelos olivais de Santarém (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20810: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte II: Peste: "Mercator ergo pestiferus"


Esta aquarela mostra um EPI (equipamento de proteção individual) usado pelos médicos que lidavam com doentes de peste no início do século XVII. O EPI foi descrito por Jean-Jacques Manget (1652-1742) no seu 
 "Traité de la peste: recueilli des meilleurs auteurs anciens et modernes, et enrichi de remarques et observations théoriques et pratiques : avec une table très ample des matières"(Geneva: Philippe Planche, 1721). 

O EPI era composto por; (i) blusa feita de couro marroquino, (ii) por baixo do qual usava-se uma saia, calções e botas, todas em couro e ajustadas uma à outra; (iii) a parte comprida do nariz tinha forma de um longo bico de pássaro; (iv) estava cheia de substâncias aromáticas; (v) e os olhos estavam portegios por um óculo de vidro.

Fonte: cortesia de Wikimedia Commons / Imagem do domnínio público.


1. Até ao séc. XVI, há três grandes epidemias com maior ou menor impacto na situação sanitária e demográfica da Europa Cristã: a lepra, a peste e a sífilis. Estamos a abordar cada uma delas, para procurar tirar algumas lições para os dias de hoje, em que enfrentamos a pandemia de COVID-19.

Recorremos para isso a textos, já com duas décadas, que continuam disponíveis na página Saúde e Trabalho: Página Pessoal de Luís Graça, Sociólogo, alojada do sítio da Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade MOVA de Lisboa. 


São excertos que estou a rever e a aligeirar, retirando por exemplo todas a maior parte das citações e referências bibliográficas. Depois da lepra (*), vamos falar da peste.




Peter Bruegel, o Velho (Breda, c. 1525/30 - Bruxelas, 1569): "O Triunfo da Morte" (c. 1562). Museu do Prado, Madrid. Pintura a óleo, de médias dimensões (1,17 m x 1,62 m), que mostra o triunfo da morte sobre o mundo dos vivos, simbolizada por um grande exército de esqueletos que devastam a Terra (, tema por certo inspirado nas frequentes pandemias e guerras que assolaram a Europa desde a Alta Idade Média, e noemadamente a "peste negra").

Ao fundo, surge uma paisagem, terresttre e marítima, desoladora, árida, ainda com cenas de destruição. Em primeiro plano, a figura da morte, com a sua foice apocalíptica, à frente dos seus exércitos triunfantes: vem montada num esquelético cavalo avermelhado. Todos os vivos são empurrados para um caixão enorme, tipo terminal, sem qualquer esperança de fuga ou de salvação. Todas as classes sociais, os ricos, os poderosos e os pobres, estão aqui reprentados, e nada os salva, o dinheiro, o poder, a fé, a devoção.



Imagem do domínio público. Cortesia de: Wikimedia Commons


A Peste ou o Triunfo da Morte 

2. Mais uma vez a mobilidade espacial, neste caso o regresso dos cruzados, terá igualmente contribuído para a introdução de muitas doenças transmissíveis, até então desconhecidas na Europa, e que se transformaram em terríveis epidemias. 

A mais mortífera de todas foi, sem dúvida, a peste negra (ou "pestilentia pestis", do latim peius, "a pior doença"). Estima-se que terá vitimado cerca de 25 a 30 milhões de pessoas (entre um terço a um quarto da população do Ocidente) em meados do séc. XIV. 

No caso português, a peste negra terá dizimado um terço a um quarto da população. De qualquer modo, as epidemias, as fomes e as guerras continuarão a acompanhar toda a segunda metade do séc XIV até quase ao final do séc XV, condicionando de tal modo a evolução demográfica que só nos primeiros anos do séc XVI o nosso país atingirá o volume populacional que tinha no início do séc XIV (cerca de 1.5 milhões de habitantes).

A peste negra está admiravelmente retratada em quadros de Pieter Brueghel, o Velho (ca.1525-1569) e em particular em O triunfo da morte (ca. 1556, Museu do Prado, Madrid). 


Por sua vez, Giovanni Boccaccio (1313-1375) descreveu magistralmente, em Il Decamerone (justamente iniciado em 1348 e concluído em 1353),  as cenas pungentes da epidemia que se abateu sobre Florença. 

Endémica na Ásia (ou, pelo menos, no planalto à volta dos Himalaias), a peste negra terá chegado ao Ocidente através dos tártaros que cercavam Caffa, na Crimeia, porto comercial utilizado pelos mercadores genoveses que operavam no mar Negro, e que  através destes últimos entra em Messina, na Sicília, espalhando-se rapidamente por toda a península de Itália e pelo resto da Europa, entre 1347 e 1352.

Caffa, antiga colónia genovesa, entre 1281 e 1475 (, e depois Keve à época do Império Otomano), chama-se hoje Teodósia: é uma cidade da República Autónoma da Crimeia, na Ucrânia, sendo um importante porto e localidade turística de veraneio. 



Mercator ergo pestiferus 
("Sou mercador, logo portador da peste") 


3. Foi um pandemia brutalmemte mortífera, de que resultou talvez a maior catástrofe demográfica do Ocidente.  Foi também uma  tragédia social, económica e cultural, gerando uma tremenda crise de valores. 

Factores que terão favorecido esta tragédia: 

(i) tempo de guerras, crises alimentares, fome, subutrição, enfraquecimento do sistema imunológico; 

(ii) ausência de estruturas sanitárias, incipiente medicina arábico-galénica, as doenças transmissíveis sendo atribuídas a misteriosos miasmas; 
  
(iii) populações mentalmente predispostas à superstição,  à vitimização, ao fanatismo e ao pânico.

"Por todo o lado, na Itália, na França, na Alemanha, os homens mais responsáveis e os marginais mais anónimos parecem irmanados num instinto selvagem de subsistir. Subsistir primeiro e, se possível, lucrar. Emparedam-se em nome da lei casas e bairros com mortos, moribundos e sãos; enviam-se para os monturos e valas comuns, pais a filhos e vice-versa, doentes ainda vivos; lincham-se peregrinos e viandantes; queimam-se judeus; fabrica-se com o pus dos bubões e banha de enforcados venenos para matar e roubar; usam-se cadáveres de pestosos como balas biológicas no assalto a cidades; organizam-se cortejos de autoflajelantes possuídos da mais paroxística histeria; realizam-se orgias; chama-se o Diabo; invectiva-se Deus". (Sousa, 1992)

O mais surpreendente é que esta epidemia flagelou brutalmente a cristandade do Ocidente, enquanto o mundo árabe (ou de influência muçulmana), da bacia mediterrânica, foi relativamente poupado. 

Para Cosmicini (1995), o homem medieval do Ocidente cristão, ao contrário do seu contemporâneo oriental, nomedamente na bacia mediterrância, não tinha hábitos de higiene (limpeza do corpo, lavagem da roupa, higiene doméstica, saneamento urbano...) A extrema contagiosidade da infeção comprova que o seu vetor é mais a imundície humana do que o rato, o transportador das pulgas...

Além disso, não é apenas é uma peste bubónica, transmitida pela pulga, é também pulmonar e seticémica (e, portanto, mais mortal ainda).

"A peste também é pulmonar e septicémica, transmitida diretamente de homem a homem, através - hoje sabemos - das partículas de espectoração,  carregadas de bacilos, projetadas pelos doentes no ato de tossir, e inaladas pelos saudáveis". 

O adjetivo "bubónico" (do francês "bubonique") quer dizer que a doença  se caracteriza(va) pela formação de bubões  ou  tumefacções ganglionares dolorosas.

  Quais foram, afinal, as condições que predispuseram a Europa Ocidental a esta terrível pandemia ? Há que compreendê-las a vários níveis, segundo Cosmicini (1995): 

(i) Ao nível veterobiológico ["vetero", de velho, oposto a "neo"]

A peste terá sido relativamente pior na Europa do que na Ásia (onde era endémica), devido a mudanças quer orgânicas quer ambientais, seis séculos depois da vaga de epidemias na Alta Idade Média, precedida dois séculos antes da pandemia que se abateu sobre o Império Romano (542-548) no reinado de Justiniano; em meados do séc. XIV, a peste negra irrompe no quadro de uma economia mercantil em franco desenvolvimento, com contactos comerciais com o Oriente (através da Rota da Seda, a primeira "estrada" da globalização) e de uma população, fugida dos campos e  concentrada em cidades, e, portanto, muito mais vulnerável. 


(ii) Ao nível económico e socioecológico: 

Constata-se uma relação bi-unívoca entre a fome e epidemia, agravada por problemas climatéricos e pela quebra da produção cerealífera: "a crise de subsistência de uma população que cresce cada vez mais e que come cada vez menos é mecanicamente traduzida em desnutrição coletiva e morbidade epidêmica".


(iii) E, por fim, ao nível neo (oposto a vetero…) biológico ou imunológico: 


A dieta da população da época era, já de si, muito pobre em calorias, proteínas e vitaminas; a má nutrição crónica agravou-se com a crise alimentar que antecedeu a peste; como resultado, terá havido uma progressiva debilitação do sistema de defesa imunológico, e em particular uma atrofia dos tecidos linfáticos... Estavam, pois, reunidas todas as condições para que o bacilo de Yersin, Yersinia pestis, se tornasse terrivelmente letal.  (Este bacilo só foi descoberto em 1894,  por Alexandre Yersin, um médico francês, de origem suiça, do  Instituto Pasteur, ns sequência de uma epidemia de peste em Hong Kong.)

“A fame, peste et bello, libera nos, Domine!" ("Da fome, da peste e da guerra, livrai-nos Senhor!"), implorava ao céu o homem medieval... A que o povo, em Portugal, acrescentava, em surdina: "... e do bispo da nossa terra, ámen!!  



Foge depressa, vai para longe e volta devagar...


4. Sobre a falta de hábitos de higiene pessoal e ausência de salubridade pública, convirá acrescentar o seguinte: as condições sanitárias ambientais eram péssimas. As cidades medievais não tinham sistemas de saneamento básico. Os despejos domésticos eram feitos para a via pública. A água potável era escassa.

Quanto à tradição romana dos banhos públicos, de algum modo valorizada pela medicina judaica e árabe na península ibérica, sabemos como ela foi duramente combatida pelo cristianismo: por exemplo, homens da Igreja como São Jerónimo (c.343-420) não viam razões válidas para um cristão tomar banho depois do baptismo, se bem que na planta arquitectónica do célebre mosteiro de Sankt Gallen (Séc. IX) estivessem previstas latrinas e balneários.

Refira-se que este preconceito teológico em relação aos cuidados de higiene corporal vai ter consequências nefastas na saúde da população europeia.

Além disso, a teoria demoníaca da doença tinha então muito ascendente e, no caso das devastadoras epidemias que assolavam a Europa (sob o nome comum de peste), o bode expiatório eram geralmente os judeus ou grupos espeíficos como as bruxas. Ou até os próprios médicos, os comerciantes ricos, a nobreza, o alto clero e a corte real que sempre tinham mais meios de fugir, "depressa e para longe", dos sítios atingidos pela peste ou outras epidemis, de acordo com a aforismo da Escola de Salerno: "Cito, longe, tardo, fuge, recedde, reddi" (Foge depressa, vai para longe e volta devagar.)


5. A peste negra na Europa tinha sido já precedida por graves faltas de alimentos entre 1308 e 1318. A fome nunca foi um fenómeno isolado, acabando por escancarar,  mais cedo ou mais tarde,  as portas às epidemias, reconhecem os historiadores.

Por outro lado, a peste negra aparece num contexto de crise do feudalismo, de êxodo rural, de sobrepopulação, de concentração urbana e de desenvolvimento da economia mercantil. 

Todavia, parece que continuam por explicar os "ciclos da peste" que, em todos os 10-12 anos, irá ressurgir, no Ocidente, durante quase quatro centúrias, de meados do séc. XIV até às primeiras décadas do Séc. XVIII. 

Entre nós, a última epidemia ocorrerá no Porto, em 1899, sob a forma de peste bubónica.  Mas no princípio do séc.XX ainda se morre de peste nos Açores onde a doença se manterá endémica sob forma murina. Em "Mau Tempo no Canal",  o escritor Vitorino Nemésio (1944) evoca, na figura impagável do Manuel Bana, o medo atávico que os homens continuarão a ter do rato e da pulga por causa do risco de contágio que eles representam.  

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Referências bibliográficas:

COSMACINI, G. (1995) - Storia della medicina e della sanità in Italia. Roma: Economica Laterza

SOUSA, A.: 1325-1480. In: História de Portugal (Dir. de José Mattoso), II vol.: A monarquia feudal (1096-1480). S.l.: Círculo de Leitores. 1992. 311-556.



Para saber mais, do ponto de vista clínico, vd. Larry M. Bush  e Maria T. Perez - Peste e outras infecções por Yersinia. In:  MANUAL MSD Versão para Profissionais de Saúde.  

(...) Peste é causada por bactérias gram-negativas Yersinia pestis. Os sintomas são de pneumonia grave ou linfadenopatia acentuada com febre alta, progredindo frequentemente para sepse. O diagnóstico é epidemiológico e clínico, confirmado por cultura e sorologia. O tratamento é feito com estreptomicina ou gentamicina; as alternativas são fluoroquinolona ou doxiciclina. (...) 

(...) Nos EUA, o último surto urbano da peste associada a ratos ocorreu em Los Angeles em 1924 a 1925. Desde então, > 90% dos casos de peste humana nos EUA ocorrem nas áreas rurais ou semirrurais da região sudoeste, especialmente Novo México, Arizona, Califórnia e Colorado.

Em todo o mundo, a maioria dos casos desde os anos de 1990 ocorreu na África. Nos últimos 20 anos, quase todos os casos ocorreram entre pessoas morando em pequenas cidades e aldeias ou áreas agrícolas, em vez de em grandes cidades. (...)

Em áreas endémicas nos EUA, vários casos podem ter sido causados por animais de estimação domésticos, especialmente gatos (infectados ao comer roedores infectados). A transmissão a partir de gatos pode ser por meio de mordida ou pulga infectada, se o gato tiver peste pneumónica, por inalação de gotículas respiratórias infectadas. (...)

(...) Transmissão: A peste ocorre principalmente em roedores selvagens (p. ex., ratos, camundongos, esquilos, cachorros-de-pradaria) e é transmitida do roedor ao ser humano pela picada de uma pulga-vetor infectada. A peste também pode ser transmitida através de contato com secreções ou tecidos de um animal infectado. (...) A peste pneumônica também pode ser transmitida pela exposição em um laboratório ou pela propagação intencional de aerossóis como ato de bioterrorismo. (...).

(...) Sinais e sintomas:  Peste tem várias manifestações clinicamente distintas: Peste bubónica (a mais comum); Peste pneumónica (primária ou secundária); Peste septicémica; Pestis minor. 

Peste faríngea e meningite por peste são formas menos comuns. (...)
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 2 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20800: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado ? (Luís Graça) - Parte I: A lepra, a doença por antonomásia na Idade Média

Guiné 61/74 - P20809: Parabéns a você (1780): Agostinho Gaspar, ex-1.º Cabo Mec Auto do BCAÇ 4612/72 (Guiné, 1972/74); António Dias, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2406 (Guiné, 1968/70); Hernâni Acácio Figueiredo, ex-Alf Mil TRMS do BCAÇ 2851 (Guiné, 1968/70) e José Eduardo Reis Oliveira, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCAÇ 675 (Guiné, 1963/65)




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Nota do editor

Último poste da série de 3 de Abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20803: Parabéns a você (1779): Álvaro Vasconcelos, ex-1.º Cabo TRMS do STM/CTIG (Guiné, 1972/74)

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20808: Viagem de volta ao mundo: em plena pandemia de COVID 19, tentando regressar a casa (Constantino Ferreira & António Graça de Abreu) (5): em navegação, no Oceano Índico, devendo atravessar o equador no dia 6, 2ª feira, de madrugada... mas sem a alegria da primeira vez


MSC - Magnífica > Cruzeiro de Volta ao Mundo > Em navegação, Ocenao Índico, 1 de abril de 2020 >  Fim de tarde

Cortesia da página do faceboook de Constantino Ferreira. Foto reeditada pelo Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.


1. Constantino Ferreira d'Alva, ex-fur mil art da CART 2521 (Aldeia Formosa, Nhala e Mampatá, 1969/71), membro da nossa Tabanca Grande desde 16 de fevereiro de 2016... Trabalhou 30 anos na TAP, como tripulante de cabine; começou a escrever o seu diário de bordo, em 23 de janeiro de 2020, na sua página do Facebook, Viagens no Tempo.

A ele junta-se agora o António Graça de Abreu; vão escrever, a quatro mãos, o diário de bordo...

Embarcaram no MSC - Magnífica, em 6 de janeiro, em Marselha, numa viagem de volta ao mundo em 115 dias, seguindo a Rota de Fernão de Magalhães. O cruzeiro deve (ou devia) voltar ao ponto de partida no dia 1 de maio p.f..  Com eles vai mais um "camaradas da Guiné",  de quem ainda não sabemos o nome, num titak 2800 pessoas (2000 passageiros, 800 tripulantes). 300 já tinham optado por regressar de avião, desistindo da viagem por mar... A boa notícia é que não há, a bordo, até à data, nenhum caso de infecção provocado pelo vírus SARS-CoV-2 (nome oficial dado pela OMS), e que origina a COVID-19 (nome oficial da doença. O drama, agora, é terem combustível e mantimentos para chegaram a casa, sãos e salvos.

O nosso camarada e amigo António Graça de Abreu [ ex-alf mil SGE, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), membro sénior da Tabanca Grande, com 250 referências no nosso blogue], começou a "dar sinais de vida" em 22 do corrente... Até então sabíamos apenas que ele andava "embarcado"... Agora sabemos que também está "confinado", no MSC- Magnifica, não podendo ele e os demais passageiros e tripulantes sair a terra, nos portos onde o luxuoso paquete tem que aportar para se reabastecer...


2. Mensagem de António Graça de Abreu:

Data - Quinta, 2/04, 22:11

Assunto - Em navegação, Oceano Índico, 2 de Abril de 2020 Ultimas  noticias

Meu caro Luís

Vai a actualização das notícias. Podes publicar com umas fotos do navio Magnifica, da Net, não há problema, ou então colocas fotos do navio feitas pelo Constantino Ferreira, ele autoriza, com todo o gosto.
Obrigado, como sempre, pela tua dedicação e cuidado.
Abraço,
António Graça de Abreu


3. Viagem de volta ao mundo: em plena pandemia de COVID 19, tentando regressar a casa (António Graça de Abreu) 
O António,com a esposa Hay Yaun,que deixou
o cruzeiro em Sidney, onde tomou o avião Xangai,
para visitar a faília. Foto de Constantino Ferreeira (2020),
 com a devida vénia
 
Em navegação, Oceano Índico, 2 de Abril de 2020 Ultimas noticias

Navegando, navegando, navegando. Mar e mais mar. Agora, o Oceano Indico liso, calmo, azul brilhante.
Tudo bem entre nós, passageiros e tripulação  do MSC - Magnifica.
Eis o comunicado do capitão do navio, hoje às doze horas, lido por ele próprio ao microfone da potente instalação sonora e depois colocado nos écrãs dos televisores que temos nos camarotes:

"Estamos navegando no Oceano Indico Ocidental, a uma distância de 700 milhas náuticas da ilha de Sumatra, em nosso raio de estibordo, Já percorremos metade da nossa viagem para Colombo. De Fremantle (Austrália) navegamos 1.600 milhas náuticas e faltam 1.550 milhas náuticas para chegarmos a Colombo. Passaremos a linha imaginária do Equador, dia 5 de Abril, de manhã bem cedo, antes do amanhecer. A nossa chegada a Colombo continua marcada para as 6 horas de 6 de Abril. Capitão Roberto Leotta.".

Daqui a quatro dias chegaremos então a Colombo, a capital do Sri Lanka. Não entraremos no porto da cidade, ficaremos à entrada, no mar, esperando por um barco de reabastecimento de combustíveis, carregado de gasóleo. Nós temos medo do coronavírus em Colombo, em Colombo têm medo do coronavírus no nosso navio. 

De Fermantale a Colombo há que contar com 5.650 quilómetros e gasta-se o gasóleo todo. Com o navio reabastecido de carburante, reiniciaremos de imediato a viagem. Agora, diz-se nas conversas não oficiais nos corredores e salas do navio que o rumo seguinte ser o Djibuti, a base naval francesa existente nesse enclave do corno de Africa, para novo reabastecimento de gasóleo e comida.

Virá depois o tempo de se procurar o canal do Suez, atravessá-lo e chegar ao Mediterrâneo, daqui a uns vinte dias. Fala-se que o navio irá  atracar a Marselha, onde sairão todos os passageiros para os seus destinos europeus. 

A Espanha está impossível, hoje, com o coronavírus, chegou ao dez mil mortos, a Itália também é o que se sabe, quase mil mortos por dia, a França, onde o número de contaminados também tem parecenças com uma catástrofe, será o menos atingido pela pandemia entre estes três países. 

E de Marselha, como iremos para Portugal? Haverá um avião para nos levar para Lisboa? Se não, será melhor permanecermos no navio. Somos vinte e tal portugueses a aguardar desenvolvimentos. A viagem para Lisboa também pode ser assustadora, com malas e bagagens, e os nossos corpos a passar por aeroportos onde o vírus tem passeado o seu veneno de morte. 

E depois, como será a nossa chegada a Portela, digo aeroporto Humberto Delgado? E o transporte para as nossas casas? Haverá quarentena para estes pobres portugueses que tiveram a sorte e o azar de entrar numa Volta ao Mundo de navio em Janeiro de 2020, num ano errado, num mês de mil equívocos. Na quarentena em Portugal não será possível apanharmos o vírus, quando a a sua propagação estiver no ponto mais alto?

Que os pequenos e grandes deuses tomem conta de nós e decidam, por bem, o nosso destino !...

António Graça de Abreu

4. Viagem de volta ao mundo: em plena pandemia de COVID 19, tentando regressar a casa (Constantino Ferreira):

A Navegar entre a Austrália e o Srilanka no Sul da Índia!, 1 de abril de 2020

Depois de alguns dias de espera, fundeados na Baía de Fremantle-Perth, para reabastecimento suficiente para chegarmos a Colombo, largámos na esperança de que a navegação iria correr bem. Assim tem sido, nestes dias tropicais de Sol e também de alguma chuva.

Dentro de três dias, iremos mais uma vez “saltar” o Equador, mas agora, do lado de baixo para o lado de cima! Sinto que não haverá a mesma alegria, a mesma festa, que foi na “descida” do Atlântico, antes de chegarmos a São Salvador da Baía de Todos os Santos, no Brasil. Mas a vida continua, com muita alegria e esperança aqui a bordo!

No dia 6 de Abril, pela madrugada, iremos fundear frente ao porto da cidade de Colombo, no Srilanka, a que Camões chamou de Taprobana, na sua Epopeia de “Os Lusíadas”. Aí, seremos reabastecidos de combustível suficiente para chegarmos ao Mediterrâneo, embora esteja prevista uma paragem técnica, na Base Naval Francesa em Djibuti, á entrada do Mar Vermelho.

Escrevi a minha crónica habitual, à saída da Baía de Fremantle-Perth, mas como não tive nenhum “feedback”, será que essa crónica não seguiu o seu caminho via Satélite?!

Realmente,nestes últimos dias, a internet tem sido muito fraquinha, por estas bandas de baixo do Equador, mas não me levar os meus “escritos”, que nem são muito “pesados”?!

Espero que recebam este meu “escrito”, sem dificuldades, pois para “pesar” menos, apenas envio uma dúzia de fotografias.

Continuamos todos bem, os 800 tripulantes e os cerca de 2.000 passageiros. Mas o nosso desejo é chegarmos todos bem, ao “Mare Nostrum”...Que é o Mediterrâneo !
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P20807: In Memoriam (363): Coronel Luís Fernando de ANDRADE MOURA (6-5-1933 - 23-3-2020), notável soldado da Pátria e da Democracia (Manuel Luís Lomba)

1. Em mensagem do dia 2 de Abril de 2020, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66) traz-nos a notícia da morte do Coronel Luís Fernando de Andrade Moura, ex-Comandante da CCav 3404/BCav 3854:

In Memoriam

Coronel Luís Fernando de ANDRADE MOURA (6-5-1933 - 23-3-2020), notável soldado da Pátria e da Democracia, no Ultramar, no 25/ABR/74 e no 25/NOV/75.

Depois de alcançar a classe de Capitão miliciano, no comando de companhias operacionais em Angola e Moçambique, frequentou o curso de Cavalaria da Academia Militar de transição ao QP, foi mobilizado para a Guiné, onde como Cap Cav Grad foi Comandante da CCav 3404 do BCav 3854, aquartelado em Cabuca no sector Leste.

Desempenhando-se como aderente e dinamizador do MFA (Movimento das Forças Armadas) no RCav 3, em Estremoz, na madrugada de 25A arrancou ao comando operacional do Esquadrão de Reconhecimento e dos seus 120 aderentes, na missão de reserva de Intervenção às ordens do Posto de Comando, no REng na Fontinha, às 13H15, fez auto na Praça da Portagem, no encontro sul da então Ponte Salazar, recebeu ordens para ir ao Forte da Trafaria libertar os militares presos da revolta de 16 de Março e, já em marcha, recebeu a contra-ordem de derivar para o teatro de operações de Lisboa e de manobrar a neutralização de um Batalhão da GNR, de uma Companhia Móvel da PSP e de 2 carros de combate do RCav 7, que cercavam o cerco ao cerco que o Capitão Salgueiro e o seu Esquadrão de Reconhecimento da EPC, de Santarém, montara ao Quartel do Carmo da GNR, refúgio de Marcelo Caetano.

No Príncipe Real convenceu os sargentos da força da GNR a não abrir fogo, no Largo da Misericórdia convenceu os oficiais da GNR a retirar os morteiros em pontaria sobre o Largo do Carmo, enquanto posicionava as suas Panhard´s em prontidão de fogo de neutralização daqueles 2 poderosos carros de combate M44 Patton, do RCav 7, afectos à NATO.

Foi um dos decisores do sucesso do 25/ABR/74, porque era a única força blindada, da manobra do MFA, com armamento e munições anti-carro!

Foi essa sua manobra que possibilitou ao Capitão Salgueiro Maia o ultimato à rendição de Marcelo Caetano, que reforçou com o “argumento” das rajadas da metralhadora duma Chaimite, o alvo foi a bandeira da janela da sala da biblioteca daquele quartel, para não fazer vítimas.

Com Marcelo Caetano rendido e feito prisioneiro do MFA, passou a responsável da segurança desse aquartelamento, mas, pelas 18H30, a PIDE-DGS, sediada na rua António Maria Cardoso, começou a disparar sobre a concentração de populares que lhe aprontava um cerco. Foi convencê-los a cessar o fogo, apontando-lhes o canhão da sua Panhard, neutralizou musculosamente os agitadores que incitavam os populares a tirar as armas aos seus militares e a passar ao assalto às instalações e montou-lhe um cerco de protecção.

Recusou declinar o seu nome e qualquer comentário à Comunicação social, durante toda essa manobra, obrigou o distanciamento ao barbudo Álvaro Guerra, camarada ferido na Guerra da Guiné, jornalista democrata, ao serviço de “A República”, e, cumpridas 48 horas sem dormir, foi rendido pelo Capitão Campos Andrada.

Apoiado pelos seus oficiais, nomeadamente do então Major Fernando Ataíde, nosso camarada da Guiné, comandante da CCav 702, na quadrícula de Madina do Boé e Beli, irmã da minha CCav 703, em Buruntuma e Camajabá, conteve vigorosamente, na área de acção do RCav 3, de Estremoz, as dinâmicas dos mitologias revolucionárias, decorrentes do evento golpista do 11 de Março, a prevenir as ocupações selvagens acontecidas em Évora, Beja, Coruche, etc.

Ante o “PREC – Processo Revolucionário em Curso” aderiu ao “Documento dos Nove” e seu Movimento e, no 25/NOV/75, o Posto de Comando do “Grupo Militar”, instalado no RCOM, na Amadora, atribuiu-lhe a missão de Intervenção e, com o seu Esquadrão de Reconhecimento, cumpriu-a em Setúbal e sua península, território socialmente muito crítico, fazendo prisões de infractores do “estado de sítio”, em sobreposição às forças militarizadas de segurança, minada que estava a sua autoridade. Não foi chamado à acção em Lisboa, pela sua capacidade de tiro anti-carro, dado que o parque de carros de combate Panhard, Sherman e M44 Patton do RCav 7, o mais poderoso daquele território, era comandado pelo seu camarada Capitão Alberto Ferreira, que havia sido o seu adjunto do anterior, em toda a manobra vitoriosa do 25/ABR/74.

Sentidos pêsames à Família.
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20547: In Memoriam (362): Padre Libório Jacinto Cunha Tavares (1933-2020), ex-Capelão do BCAÇ 2835 (Nova Lamego, 1968/69)

Guiné 61/74 - P20806: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (1)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos, 
Reencontrar uma fotografia que tem mais de cinquenta anos, associada ao pré-anúncio de que a Guiné está à espreita e me vai receber de braços abertos, suscitou um conjunto de recordações em torno de perto de meio ano que vivi em S. Miguel, e que teve uma importância excecional na minha vida. 
Como os mais jovens não acreditam que aquele mundo existiu, tal qual aqui se recorda, permito-me trazer à vossa presença este cadinho de recordações. De associação com essa vida militar, novinho em folha, abria-se um capítulo de amizades inquebrantáveis e de uma adoração por aquela terra que seguramente irá até ao final dos meus tempos. Dessas amizades aqui farei um bosquejo, gente afetuosíssima que me preparou moralmente para a experiência guineense. Vão partindo, como ainda recentemente partiu uma distintíssima figura micaelense, Cremilde Tapia, senhora dadivosa, voluntária da generosidade e da dedicação à causa dos mais necessitados. Todo este rasurado lhe será dedicado, pelo bem que me fez e aos meus familiares, incluindo minha mãe, que se despediu de mim nessas duas partidas, para Ponta Delgada e para a Guiné, com o mesmo apelo: "Peço a Deus que tu regresses são e salvo"

Um abraço do 
Mário


Peço a Deus que tu regresses são e salvo (1)

Mário Beja Santos

“Olha, pai, andei a remexer nas gavetas do meu quarto, encontrei esta tua fotografia, tenho a impressão que tu tinhas ido para a tropa, tens um ar resignado mas não pareces triste. Como foi?”.

Peguei na imagem, há quem diga que não nos conseguimos rever naquilo que éramos, há mais de cinquenta anos atrás, mas não houve hesitação no reconhecimento, aquela boina que eu compunha como se fosse uma boina basca, a boa disposição de ter aprendido como dava jeito ter o corpo moldado para a guerra no horizonte, sem remissão. Expliquei à Joana que acabara de ser promovido a Aspirante Oficial Miliciano, com classificação baixíssima, tudo devido a uma incompetência medular para mexer no armamento, não que me custasse limpar a Mauser ou a G3, aprendi as limpezas domésticas muito novo, não era essa a dificuldade, ao montar qualquer arma sobravam-me sempre peças. Atingira o objetivo maior, certificar-me que o corpo estava apto para as grandes fadigas, como se comprovou no exame rigoroso de mais de dois anos na Guiné, a calcar laterite por tudo quanto era sítio. Promovido a Aspirante e lançado a caminho de Ponta Delgada, com colocação no Batalhão Independente de Infantaria n.º 18, Arrifes.

E a seguir, outras fotografias se encadearam. A minha mãe entendeu que devia convidar dois grandes amigos meus, no jantar de despedida, em 6 de outubro de 1967. Veio a Helena Vidal, minha professora de inglês e alemão, foi ela que me levou ao British Institute ver aqueles espantosos ciclos de cinema dos anos 1950 e 1960, com Sir Laurence Olivier e Alec Guinness à cabeça; e o Eduardo Canto e Castro, amizade firmada a partir do primeiro ano no Colégio Moderno. Para meu infortúnio, estes amigos diletos já desapareceram. Na outra fotografia, já estou no cais, a seguir embarco no Carvalho Araújo. A Amélia Lança e a Margarida Silveira, duas amigas de peito, talvez convencidas que eu partia para a Polinésia e sem regresso, acenaram até ao barco desaparecer no horizonte. A minha mãe não foi, temia comover-se. Despedimo-nos à porta de casa. E retive o que ela me disse, e que irá repetir quando a beijei pela última vez no cais da Rocha do Conde de Óbidos: “Peço a Deus que tu regresses são e salvo”. Terá pedido insistentemente, a roda da fortuna acobertou-nos.




Estou absolutamente convicto que um jovem açoriano tem a maior das dificuldades em acreditar no que eu já escrevi sobre Ponta Delgada e a vida em S. Miguel. Toda a zona da baía à volta do porto, a ida pela Calheta até à Lagoa, são paisagens de algum modo irreconhecíveis. Chegámos à noite, despedi-me do José Medeiros Ferreira, que partiu para a Fajã de Baixo, e um amigo do meu cunhado, Dragomir Knapic, levou-me até aos Arrifes, dormi no quartel, no dia seguinte começou a pesquisa de quarto, fiquei a viver num quarto alugado na Rua de Lisboa, n.º 31, muito perto do Coliseu Micaelense e da Cervejaria Melo Abreu, apanhava o Largo 2 de Março e antes de chegar às portas da cidade virava à direita para o Café Nacional, mesmo em frente da Câmara Municipal, fiz contrato de comensal, jantava ali todos os dias, sem exceção. Quando regresso a Ponta Delgada, e tem sido com muita regularidade, procura permanências e as grandes mudanças. Não sei se há outro ponto do país que beneficiou tanto com o regime democrático. Os recrutas que tive adoravam a tropa, por razões elementares: nunca tinham comido pequeno-almoço, almoço e jantar, carne e peixe todos os dias; muitos não sabiam o que era o chuveiro, o champô, o fazer diariamente a barba. Jovens dóceis e conviventes, não sei se jamais voltarei a encontrar gente que fala com tanta sinceridade, sem esconder como vive lá na terra, como trabalha, os sonhos que tem, alguns passam por viajar até ao Canadá ou Massachusetts ou San Diego, quando vierem da guerra, ali não há ilusões que o nosso destino é África.



A minha filha traz-me uma bandejinha em prata, está lá gravado “Lembrança do 5.º Pelotão” por trás vem o nome da ourivesaria em Ponta Delgada. Esta imagem já a publiquei no blogue, não ilude a boa disposição reinante. Eu estou a ajaezar o Botas, era um moço, pasme-se, que nunca tinha vindo até Ponta Delgada, quando no fim da recruta, com autorização superior, meti esta malta toda numa camioneta e viemos ver ao cinema Lord Jim, de Richard Brooks, com Peter O’Toole, James Mason e Curd Jürgens, o Botas estava siderado, tinha lágrima no olho, quis voltar. Não sei se voltou, sei que estávamos todos a crescer e a mudar, foi uma alegria esta experiência de duas recrutas, se já trazia o corpinho preparado para as grandes andanças aqui se revelou o que se guardava como enigma: a capacidade de liderança, uma forma de autoridade natural, sempre a dar o exemplo, dispensando a gritaria e o palavreado brutal. Liderar é um dom que se burila, com a vantagem de se poder dispensar, quando se pretende passar para o anonimato, viver sem chefiar.


A disposição do quartel terá que surpreender muita gente, se não lhe conhecer os antecedentes. Na presunção de que os Açores podiam vir a ser invadidos, na II Guerra Mundial, criou-se aqui um quartel-hospital, se se reparar bem organizaram-se enfermarias que, quando chegou ao tempo da guerra de África, rapidamente se adaptaram a casernas. Naquele longínquo dia de outubro de 1967, quando acordei com os toques do corneteiro, saindo de uma cama com as mantas todas molhadas, e vim à porta, não eram estas as nuvens, era a bruma, que desapareceu a meio da manhã, e todo o esplendor daquela terra fértil, verdejante, pejada de vacas, encheu o meu olhar. À volta, estradas em paralelepípedos basálticos, por aí se farão marchas e corridas, passando por sítios belíssimos, como S. Vicente Ferreira, ainda no concelho de Ponta Delgada, e Fenais da Ajuda, já no concelho de Ribeira Grande.


Os jovens micaelenses duvidarão desta história, de pungente miséria. Os Arrifes, acima de Ponta Delgada, eram uma freguesia muito populosa, casais com muitos filhos, vivendo em condições da máxima indigência. Apanhávamos um transporte no Largo 2 de Março, perto do Palácio da Conceição, e vínhamos por aí acima, até aos Arrifes, a vida militar começava pelas 8:30 da manhã. O período de almoço era curto, de modo a concluir-se o dia de faina pelas cinco da tarde, voltava-se a tomar transporte de regresso a Ponta Delgada, não dava para conhecer o que era a vida do povoado. Mas havia as funções de oficial de dia, e então, inopinadamente, surgiu a realidade das grandes carências. Findo o jantar, surpreendeu-me um conjunto de crianças junto à porta de armas, traziam umas latas na mão. Perguntei na cozinha o que era aquilo: vinham à espera de sobras, sopa, restos de batatas e de pão. Dirigi-me ao responsável, mandei abrir uma lata de atum e tirar peças de fruta da dispensa. O homem olhou-me boquiaberto, como é que o meu aspirante vai descalçar a bota com o vagomestre. Não te preocupes, hei de encontrar uma justificação. Que se conseguiu, havia felizmente no dia seguinte instrução noturna, justificou-se como comida suplementar. Iremos ver mais imagens destas crianças, virão regularmente pedir-me para eu ser oficial de dia, queriam jantar reforçado. Ninguém suspeita nos dias de hoje a miséria que havia na região.


Também este postal já apareceu no blogue, enviei-o à minha mãe, para lhe mostrar a vida dos Arrifes, aqueles moinhos que porventura foram trazidos por bretões ou flamengos. Fiz amizades para toda a vida. Com as inevitáveis perdas. O Capelão dos Arrifes era o Padre Agostinho do Couto Tavares, quis saber como é que eu passava os fins de semana, achou que havia para ali isolamento a mais, e tudo fez para me apresentar a uma família que, como veremos, teve um papel relevantíssimo naquele meu tempo micaelense.


Monsenhor Agostinho do Couto Tavares, o guardião do Senhor Santo Cristo

(Continua)
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