sábado, 11 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22533: Notas de leitura (1380): "Um caminho de quatro passos": temos um novo escritor, o António Carvalho passa o teste, e espero que seja com louvor por unanimidade e aclamação dos seus leitores (Luís Graça)


Guiné > Região de Tombali > Nhala > 1974 > Foto nº 1 > CART 6250/72. os "Unidos de Mampatá",  em final de comissão, foram despedir-se dos "periquitos" de Nhala, 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513, Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74).


Guiné > Região de Tombali > Nhala > 1974 > Foto nº 2 > Os "Unidos de Mampatá", CART 6250, em final de comissão, foram despedir-se dos "periquitos" de Nhala, 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513, Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74).


Comentário do António Carvalho (ex-fur mil enf da CART 6250) (poste P2694) (*)

"Primeiramente devo manifestar a minha gratidão ao Murta, por ter guardado e nos ter proporcionado esta vista do regresso da nossa companhia a Bissau, via Nhala e Buba. As fotografias são muito interessantes, sob o ponto de vista da história da guerra do ultramar porque mostram a alegria transbordante pelo fim da comissão e a anarquia reinante com ausência de armamento, agora já imprestável naquele irrepetível tempo, posterior ao 25 de Abril. 

Para trás ficava Mampatá e a memória dos nossos dois mortos - o Mata e o Albuquerque. Eu já não me lembrava daquela paragem em Nhala que não terá sido só para atazanar os periquitos mas para retemperar energias com mais umas cervejas. Aquela viajem foi gloriosa também porque estávamos a inaugurar a estrada nova Aldeia Formosa- Buba, agora percorrida em menos de uma hora." 

Fotos (e legendas): © António Murta (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Quem lê "Um Caminho de Quatro Passos", não precisa de chegar ao fim, ao posfácio nem à última página, a 218, a do "glossário", para poder concluir, sem margem para dúvidas, que... "temos escritor"!

O que é um escritor ? É quem sabe, em prosa (mas também em verso),  contar histórias, construir personagens, desenhar cenários, arquitetar contextos, criar emoções… Não importa o género, conto, novela, romance, biografia, diário, poesia…

O António Carvalho passa o teste, e espero que seja com louvor por unanimidade e aclamação dos seus leitores.  E ficamos todos a ganhar, com este novo escritor: fica a ganhar Medas, a sua comunidade de nascença e de pertença, a sua família, os seus amigos, mas também todos nós, a Tabanca Grande, a que  ele está  associado desde 13 de setembro de 2008

Obrigado, António,  pelo teu livro, pelo exemplar do livro que me mandaste pelo correio  com a dedicatória, singela mas sincera, que diz: "Ao meu prezado amigo e camarada, Luís Graça, que calcorreou, como eu, caminhos espinhosos, por terras da Guiné, a quem devo a benfazeja criação  da Tabanca Grande, ofereço este modesto presente - o meu livro. Medas, 2021 - agosto - 10". Assina: A. S. Carvalho.

Parabéns, pelo teu livro, pela coragem, pela determinação, pelo empenho, pela motivação, por tudo o que significa escrever e editar um livro... Não é um parto fácil. Exige disciplina, talento, resiliência.  Não esquecendo o apoio daqueles que nos estão mais próximos, no teu caso, a tua mulher, as tuas filhas, o teu neto.

Com este livro reafirmas o teu/nosso direito e dever de memória como antigos combatentes nós que nascemos no auge do Estado Novo, ou seja, em ditadura.  Com ele não escamoteias ou branqueias as nossas memórias doridas, as da Guiné, as dores que sofremos e as dores que infligimos aos outros.  Reafirmas, por fim, uma ideia que me é cara, a mim e a ti, e que perpassa pelo teu livro, e que a nossa geração tem de saber interiorizar e assumir: não somos os vencidos nem os vencedores de uma guerra, fizemos a guerra e a paz, com coragem e honra, na expetativa de o poder político de então encontrar uma solução política, ou seja negociada, para um conflito que nunca poderia ter uma solução militar. 

E obrigado, António,  pelo convite para estar aqui hoje, na Tabanca dos Melros, na tua festa, a festa a que tens direito Devo, porém, fazer uma prévia declaração de interesses: faço-o com algum sacrifício pessoal mas com todo o gosto. Acontece estar aqui, pelo Norte, esta semana. Segunda feira já volto para o pequeno calvário da minha fisioterapia, na Lourinhã. E faço-o com gosto porque é já o "enésimo" livro que sai da Tabanca Grande. Sem a chancela da Tabanca Grande (, não somos editora...) , mas sob a inspiração do magnífico, simbólico, protetor, mágico poilão da Tabanca Grande, onde nos sentamos, os vivos e os mortos. E já somos 840, dois batalhões.

Amigos e camaradas: o António Carvalho é um grande contador de histórias, e mais do que uma autobiografia faz aqui o retrato socioantropológico de sucessivas gerações de medenses, onde se cruza e entrecruza a sua família. Teve o privilégio raro de conviver com avós, pais, tia, irmãos e "moços de lavoura" (criados), numa família extensa, numa grande casa de lavoura, duas juntas de bois, trinta ou mais pipas de vinho, os campeões da batata... E que ele evoca com ternura e humor, quando descreve a sua primeira noite, de insónias e saudade, à chegada à sua nova casa, a do prior do Casal Comba e novo diretor do Colégio da Mealhada, e ainda seu parente. Estávamos em outubro de 1962:

"Verdadeiramente o que me impedia de dormir eram as recordações daquele bulício de uma família numerosa onde pontificava uma avó que julgava santa, uam mãe que providenciava tudo, um pai cuja primeira prioridade era o trabalho, um avô vaidoso, uma tia materna sempe disponível para atender às solicitações da família e os irmãos de dias sim dias não" (p. 158). 

Uma família de lavradores que se enquadrava, sociologicamente falando, no grupo do médio campesinato, em que a família é uma unidade económico e o chefe e pai e patrão. E em que saída da casa paterna, o "home leaving", era retardado ao máximo por razões económicas. Um homem a menos não era uma boca a menos, eram dois braços a menos...

Da terceira parte ("Contra os canhões marchar marchar", pp. 175-204) já publicámos 8 excertos, sob a forma de outros tantos postes (**). Mas o livro vale como um todo, é uma história de vida contada na primeira pessoa... E que tem esta coisa original: não ques e ler de fio a pavio, do princípio ao fim, pode ler-se um pouco ao acaso, folheando esta ou aquela página, de frente para trás, de trás para a frente.

Por modéstia, o autor recusa-se a chamar, ao seu livro, "obra literária"  e mesmo em relação ao género tem relutância em usar o termo "autobiografia". Justifica-se:

(...) Não pretendi relatar a minha vida integralmente, apenas tentei narrar casos e episódios enquadrados por determinadas circunstâncias, ao longo do meu trajeto, que me marcaram imperecivelmente" (pág. 8).

O autor podia ter escrito uma biografia ficcionada, ou ter arranjado um "alter ego". Preferiu mesmo assim dar a cara, e falar na primeira pessoa do singular: o livro vai ser lido por familiares, vizinhos, conterrâneos, amigos, antigos condiscípulos do Colégio da Mealhada, antigos camaradas de armas, etc. 

E, como tal, fica sujeito também ao escrutínio público. Para mais, foi um dedicado autarca na sua terra natal, durante quase três décadas, experiência de intervenção política e cívica que lhe trouxe alegrias (como a criação da escola secundária de Medas em 1988) mas também alguns dissabores, inevitáveis quando há conflitos, ou seja, quando há direitos e valores a defender acima dos interesses particulares ou grupais. 

É um livro, também, de "geografias emocionais", que, irradiando de Medas, na margem direita do rio Douro. justamente no ponto mais a sul do seu percurso (e a escassos 20 km de distância, em linha recta, da foz), passam pelo Porto, o porto de Leixões, o Brasil, a Mealhada, a Guiné (Bolama, Buba, Mampatá, Nhala, Nhacobá...), com regresso de novo às origens. 

"Nasci aqui, neste pedaço de terra, circunscrito por uma curva muito apertada do rio Douro, e pela serra dos Açores" (, hoje, serra das Flores) (...), como aqui nasceram também, pelo menos alguns dos meus octvós e muitos dos seus descendentes dos quais eu provenho" (p. 212).

Se consideramos um intervalo de 25 anos entre cada geração, oito gerações de avós, são dois séculos, o que faz remontar a sua narrativa, ou algumas das histórias,  a meados do Séc. XVIII, ainda no reinado do Dom João V, quando regressa a Portugal um padre, nascido em Penafiel, em 1699, que se irá instala na Quinta do Paço,  em Medas. Vindo do Brasil, trazia no porão do veleiro, não apenas um farto baú  mas também três jovens escravos, negros, um rapaz e duas raparigas,  Beneficiariam, entretanto, das primeiras medidas pombalinas (a partir de 1761), em prol da abolição da escravatura no Portugal Continental. Agora livres, são criados de servir, mas dois deles (ou elas) irão casar e gerar descendência.  

Conclui o António Carvalho, no seu posfácio:

(...) "Um neto da Ana, chamado José Ferreira, é, segundo afirmação de Albino dos Santos, na sua obra “Monografia da Freguesia das Medas”, um antepassado dos Ferreiras de Pombal. Ora, o meu avô paterno, José Ferreira de Carvalho, nasceu nessa casa dos Ferreiras de Pombal." 

(...) No meu caso, a crer na qualidade daquela obra monográfica sobre a minha freguesia, eu tenho, na minha ascendência, uma costela de um ser humano aprisionado na costa ocidental africana e vendido, como escravo, no Brasil, de quem provieram aqueles três criados que o padre do Paço trouxe das terras de Santa Cruz, e o meu fenótipo traduzirá exatamente um produto compósito." (p. 215).

Muito antes desta recente revelação do seu possível passado genealógico, já o António Carvalho  tinha dado provas da recusa do etnocentrismo, atitude a que não será alheia a sua experiência como homem e militar no território da Guiné, durante a guerra colonial (1972/74). Veja-se por exemplo episódios como "A vaca" (pp. 191/193) ou "Dormir com o inimigo" (pp. 193/195). E esse enternecedor conto "A cor das lágrimas e a laranjeira azeda" (pp. 125/132), um verdadeiro libelo conta o racismo e a xenofobia.

As geografias emocionais também passam por Lisboa, ainda na infância, em 1959. A Lisboa ia-se poucas vezes na vida, os "magníficos" da terra para mendigar pequenos favores aos senhores do poder, ou a canalha da escola, a mais afortunada, embarcada na camioneta de excursão (4 dias, um ó para lá e outro ó para cá, com dois dias úteis para arregalar aos olhos às coisas e gentes que só existiam na "cidade grande", dormindo o pessoal no carro)...

As páginas (cerca de 140), mais portentosas, escritas em estilo oral, com parágrafos extensos, são, no meu entender as da primeira parte, a do primeiro passo, a do capítulo I, a Meda da infância do autor, nascido em 1950, antes da ida, aos doze anos para o Colégio da Mealhada (2º passo) (16 pp.) e, depois, no início de 1971, a chamada para a tropa e a mobilização para a Guiné (3º passo, "Contra os canhões. marchar, marchar) (c. 30 pp.). 

O último, o 4º passo, com uma escassa dúzia de páginas, tem por título "A revolução e o reencontro", o 25 de Abril (vivido na Guiné) e o regresso a casa.  Dois valores que marcam o percurso do vida do António são afinal a justiça e a liberdade, sem as quais não pode haver verdadeira democracia nem um país com futuro ou povo com feliz e com esperança.

É pena que o livro não tenha um índice, já que é constituído por cerca de 8 dezenas de histórias, episódios ou microcontos, alguns dos quais são verdadeiros "contos morais". Alguns deles têm, explicitamente,  duas linhas com um conclusão ou consideração de natureza ética ou filosófica. Como por exemplo, o excerto que publicamos abaixo, "Topadas", ou o já citado conto,  "A cor das lágrimas... ", uma pequena obra-prima.

Muitos de nós, antigos combatentes, que nasceram em aldeias ou pequenas vilas, do interior do país, vão-se reconhecer neste retrato da infância e adolescência do autor. Em boa verdade, é  retrato da nossa geração...

Muitos de nós, para não dizer a grande maioria, 

(i) nascemos de parto com dor, em casa, sem assistência médica;

(ii) fomos batizados segundo os cânones da Santa Madre Igreja Católica, Apostólica, Romana;

(iii)  fomos  alimentados a caldo e broa, e alguns provaram pela primeira vez o leite, ainda não pasteurizado, da vaquinha;

(iv) assistimos ao espetáculo, hoje cruel, da matança do porco (, fabulosa a sua reconstituição, em "O festim", pp. 20/22):

(v) aprendemos as primeiras letras à luz do candeeiro a petróleo e, muitas vezes, íamos descalços até à escola da vila, com os sapatos de ir à missa atados ao ombro;

(vi) viviamos em casas sem saneamento básico, sem eletricidade, muito menos rádio, telefone e televisão;

(vii) fomos a 1ª geração de portugueses a ser vacinada contra algumas das mais temíveis doenças infetocontagiosas que no passado causaram elevada morbimortalidade;

(viii) passou a dispor, a partir de 1945, da bala mágica, a penicilina;

(ix)  só conhecemos a capital do país, quando embarcámos para a guerra da Guiné, que a mobilidade espacial (ainda era um luxo)...

(x) mas começámos também a perceber a importância da educação como forma de mobilidade social, ou seja, para se poder  sair do círculo vicioso da pobreza;

(xi) num tempo em que a democratização do ensino (e a universalização da proteção social) só começaria a chegar no final do consulado de Marcelo Caetano;

(xii) é também a geração que sai, das suas casas da aldeia e das vilas, para fazer a última guerra do Império, ou para emigrar, a salto, para o Eldorado transpirenaico.

No meu caso, no caso do António, e de tantos de nós, foi uma guerra que começámos a viver por antecipação, aos 12, aos 13, aos 14 anos... Portanto, não foram apenas dois anos de vivência num teatro de operações, tramado como o da Guiné, mais um ano de tropa... Foram anos e anos pouco verdes, amargos, marcados de incerteza e angústia, entrecortados por algumas veleidades próprias da idade, a infundada esperança do fim da guerra, antes de chegar a nossa vez, e a tentação do "salto" para a redenção e  a liberdade, que tinha, na maior dos casos, um preço demasiado alto... A liberdade, individual e coletiva,  que, afinal, só chegaria com o 25 de Abril.  Mas na guerra, e nomeadamente, na Guiné aprendemos a dar o devido valor à camaradagem e à amizade. 

Termino esta nota de leitura (***), com um poema do nosso Josema, o Zé Manel Lopes, que eu, ainda sem o conhecer pessoalmente,  saudei em março de 2008 como "uma voz muito original, pessoal, uma surpreendente revelação da escrita poética sobre a guerra colonial na Guiné... Até agora guardada o baú do sótão"... É um dos poemas que mais gosto e nele está o António Carvalho, de corpo inteiro.


Calor, cansaço, suor
saudades de tudo
e de um rio...
mas podia ser pior
pois há ali o Corubal
com sombras e água boa
nem tudo é mau afinal
não é o Douro, eu sei
nem o Tejo de Lisboa
são outros os horizontes
falta o xisto e o granito
as encostas e os montes
mas diga-se na verdade
há o Carvalho, há o Rosa
há um hino à amizade
há o Gomes e o Vieira
a sonhar com a Madeira
há o Farinha e o Polónia
gestos e solidariedade
há o Esteves e o Pinheiro
amigos e sinceridade
há o Nina e até amor
também sofrimento e dor
há o desejo de voltar
e um apelo à liberdade.

Josema
Mampatá 1974


Como "apetite" para a leitura do livro do António Carvalho, aqui ficam dois trechos. Para efeitos de publicação no blogue, tomei a liberdade de "encurtar" os parágrafos, de modo a tornar a leitura mais fácil. O formato bloguístco é "inimigo" de parágrafos muito extensos. Perde-se algum "fôlego" e "oralidade", ganha-se em "legibilidade"... O autor, por certo, que nos perdoará esta "tropelia"... LG

AS TOPADAS (pp. 143-144)

Sapatos ou botas só ao domingo e tirados logo depois da Missa, para se não estragarem. Tínhamos ainda umas chancas, no inverno, calçado apropriado para os dias de chuva ou de geada. Mas para a maioria, socos ou tamancos eram, durante a semana, o calçado mais usado, no trabalho do campo e até, na falta de melhor, o que muitos usavam para ir à escola, fosse de verão ou de inverno, quase sempre sem meias. Mas à versão mais pobre de calçado chamávamos nós socas. A soca era constituída simplesmente por uma tábua serrada pelo formato do pé a que se pregava uma tira de cabedal aproveitada de qualquer ponta de uma apeaça ou de um cinto velho.

Também cheguei a usar este calçado muito rudimentar, o verdadeiro calçado dos mais pobres, mais propriamente para me identificar com a maioria dos meus companheiros de escola do que por necessidade. Quando crianças, mais do que em adultos, tendemos a adotar os comportamentos, a indumentária e adereços dos que nos rodeiam. Por isso eu andava algumas vezes de socas, nos dias de calor, confecionadas por mim, com a ajuda de algum amigo mais velho. Mas depressa as atirava para um canto, porque, no verão e no outono, o que eu queria mesmo era andar descalço, correr pelos caminhos de terra traçados pelo meio dos campos, na companhia dos da minha idade. E a única forma de não ficar para trás era libertar-me daqueles espartilhos que me empecilhavam os movimentos.

Algumas vezes espetava-me num pico de alguma silva seca, mas não podia dar parte de fraco, tinha que ser como o Neca Pinto, que conseguia andar descalço sobre chão áspero de estrepes, como eram aqueles onde se tinha acabado de cortar o mato. Ele, de tanto calcorrear, nesses inamistosos pisos, com feixes de carqueja às costas, que sua mãe talhava a golpes esforçados de fouce, tinha uma camada calosa na planta dos pés que nem um arame se lhe espetava. Calos era coisa que lhe não faltava, nos pés como nas mãos, talvez até os tivesse na alma, impedido de ser menino, para compensar com o seu labor forçado a incapacidade precoce de seu pai, sobrevinda por uma topada da vida. Mais tarde a vida ensinou-me que os pobres levam sempre mais topadas dos que os ricos e têm sempre muito mais dificuldade em fazê-las sarar.

A topada, no sentido literal do termo, era um acidente muito frequente para quem estivesse pouco afeito a andar descalço pelos caminhos. Acontecia sempre que não levantássemos bem os pés e batíamos então com as pontas dos dedos numa pedra mais saliente, normalmente era a falangeta do polegar que ficava coberta de sangue e com a unha levantada, o mais afetado por ser o da frente. Eu não gostava nada de topadas, não só por serem dolorosas , mas por ter ainda de as esconder do meu pai, que nunca me queria ver descalço.


UM LAVRADOR DE SAPATOS (pp. 79-83)

Irritava-se por o sobrinho não lha querer mostrar, como se tivesse algo a esconder-lhe. Ambos sabiam que ela estava magra, mas o Miguel, que vinha ali todos os domingos à tarde, à casa onde nascera, visitar a mãe, aproveitava para mandar o Manuel abrir a porta da vaca para a ver cá fora. Nas tardes soalheiras, ao domingo, era costume os lavradores soltarem os bois no quinteiro onde sempre havia uma pia de xisto ou granito com água para o gado beber. O Manuel aborrecia-se por o tio o culpar reiteradamente da magreza da vaca e foi por isso que, naquele domingo, se recusou, nos seus dezoito anos, a abrir a porta à leiteira, limitando-se a mostrar-lhe, orgulhosamente, as duas bem tratadas juntas de bois.

O Manuel habituara-se, desde muito cedo, com a perda do pai, quando tinha apenas oito anos e do avô aos quinze, a ser o único varão naquela casa onde vivia com a avó, a mãe, uma tia e duas irmãs. Desde os quinze anos já lhe vinham a desagradar os conselhos do outro tio, do António, que se imiscuía nas tarefas mais comezinhas do quotidiano, da casa até ao negócio das madeiras das sortes ou à compra de uns bois. O Manuel queria desenvencilhar-se da tutela do tio António e da de qualquer outro tio. Então não viam eles como crescera e sabia organizar o seu serviço?

Na década de vinte do século passado havia, em toda a minha freguesia, duzentas e vinte e cinco cabeças de gado bovino, nas quais se incluíam apenas quatro vacas leiteiras. Por esse tempo os lavradores interessavam-se só por bois para trabalho que eram vendidos, após alguns anos de jugo, depois de engordados. Curiosamente as quatro vacas leiteiras eram pertença de bem minguados lavradores, proprietários, apenas, de um ou dois pequenos campos, que vendiam o leite para alimentar pessoas idosas e doentes ou até uma ou outra criança que se agarrava mal ao caldo com broa.

O leite espremido do úbere da vaca da casa da Estivada de Cima que tinha sido comprada pelo Miguel, por ordem dos dois irmãos do Brasil, e ali propositadamente aquartelada, a cargo do novo homem da casa, destinava-se ao consumo da mãe dos “brasileiros”, embora todo o remanescente ficasse à disposição de quem dele quisesse fazer uso. Na verdade os dois irmãos “brasileiros” do Miguel eram já, por esta altura, dois emigrantes de sucesso no Rio de Janeiro. O primeiro, o Manuel, que tinha saído de casa, com catorze anos, em agosto de 1889, tinha o tio Francisco, no Rio de Janeiro, à sua espera, quando lá chegou, no dia 4 de setembro desse ano. Seguiram-se-lhe, na aventura, o Vicente, em 1892 e o malogrado Joaquim, dois ou três anos depois, tendo perecido de doença quando acabara de fazer dezanove anos.

O Miguel era o irmão predileto que os “brasileiros” tinham deixado em Portugal, quase um delegado ou procurador, sobretudo depois do falecimento do José, com trinta e nove anos, o irmão primogénito, pai do Manuel da Estivada..

A prosperidade daqueles dois irmãos no Rio de Janeiro tornou-se notória, sobretudo quando ambos resolveram construir um palacete de férias, luxuoso para a época, mesmo ao lado da casa onde tinham nascido e crescido, concluído em 1914, meses antes do falecimento do pai. As viagens, em navios a vapor, com escala em Leixões, eram cada vez mais confortáveis e, com a nova casa, era agora raro o ano em que não passavam férias nas Medas, em anos alternados, o Manuel só com a esposa e o Vicente com toda a sua prole. Sempre que chegavam eram visitados pelas pessoas do poder da freguesia, do Padre ao Presidente da Junta, não faltando pelo meio o Regedor. E não iam sem resposta animadora, prometendo e cumprindo, com donativos de vulto, para a aquisição de instrumentos em falta na orquestra da terra, para a construção da primeira estrada da freguesia, para a ereção da torre sineira, para além de muitos outros pequenos benefícios.

Mas sem o aval do irmão Miguel, nenhuma obra era comparticipada pelos “brasileiros” que tinham nele os seus olhos e os seus ouvidos.

A freguesia, muito montanhosa, exígua de solo arável, obrigou a um forte fluxo migratório para o Brasil, sobretudo depois da libertação das populações escravizadas e da implantação da República neste país irmão, em 1888 e 1889, respetivamente. Ao incremento desta onda migratória, neste período, não será estranha a imposição definitiva da navegação a vapor, cada vez com maior capacidade, mais segurança, conforto e previsibilidade no tempo de viagem. Já não se ia de barco à vela, em penosas viagens que podiam demorar dois meses, sujeitas a naufrágios. Num barco destes tinha emigrado para o Brasil o pai do Miguel e dos outros oito irmãos, João Gonçalves Viana, na década de cinquenta, tendo-se demorado por lá o tempo suficiente para se elevar ao patamar que lhe permitiu casar na casa da Estivada, falida mas com estatuto.

Mesmo os maiores lavradores das Medas, trabalhando de sol a sol, só se davam ao luxo de calçar uns sapatos, para entrarem na Igreja, em dias festivos ou numa ida ao Porto. O Miguel Viana era o único lavrador das Medas que calçava sapatos à semana, e não precisava de se sujar no trabalho, porque tinha entregado toda a lavoura a três caseiros. Aceitou até a nomeação para Presidente da Junta no mandato de 1919 a 1922, na crença de que poderia assim acelerar a promoção da terra.

Aquilo só lhe trouxe chatices e depressa se apercebeu que lhe era mais de feição trabalhar por fora, instando os irmãos do Brasil a ajudarem a freguesia. Eles, depois que construíram o palacete de férias, vinham mais vezes a Portugal , mas viriam ainda com mais frequência se não tivessem que suportar aquele incómodo trajeto, pelo rio acima, num frágil valboeiro, desde a Ribeira do Porto até ao embarcadoiro do Carreiro. Depois era preciso ainda um carro de bois para os trazer, ao longo de um caminho pedregoso, do Carreiro até ao palacete.

Mas não era só para sua comodidade que os “brasileiros” da Estivada estavam dispostos a contribuir para a chegada da estrada às Medas, era também por quererem bem à terra que lhes tinha sido berço. Nas cartas que, do Brasil, escreviam ao seu irmão Miguel, não deixavam de lhe lembrar que não fazia sentido avançarem com o seu contributo enquanto os poderes públicos não dessem o primeiro passo, definindo o seu traçado e elaborando o respetivo projeto.

Por isso, aproveitando a ocorrência da festa do Senhor, na freguesia, no dia 21 de setembro de 1924, o Miguel da Mota deu, em sua casa, um grande jantar, em honra do deputado Correia Gomes, a quem empenhou em favor da estrada, junto do governo. O deputado, inebriado pelo lauto jantar, a que não faltaram as melhores carnes e os melhores vinhos, havia de lhe prometer que tudo faria, em Lisboa, para trazer tão útil e desejada obra a Medas. E foi isso que o Miguel da Mota transmitiu a seus irmãos, numa missiva que lhes mandou para o Rio de Janeiro, logo na semana seguinte.

Em 1925, o Miguel, amuado por o sobrinho não lhe ter mostrado a vaca, naquele domingo soalheiro, dele fez queixa ao irmão Vicente, enquanto seguiam naquele ronceiro e incómodo carro de bois, a caminho do barco que os esperava no Carreiro para os conduzir até ao Porto, de onde seguiriam para o vapor, de regresso ao Rio de Janeiro, depois de mais umas férias de três meses por cá. Não se sabe como decorreu a conversa, certo é que, no dia seguinte, o Miguel mudou a vaca, da Estivada para a sua casa, na Mota, incumbindo-se a partir dessa data, de mandar o leite à sua mãe, minha bisavó paterna. Mas a vaca, se mal comia na Estivada, mal continuou a comer, mesmo vendo-se num aido novo, e morreu passados poucos meses, de mal desconhecido.

Não era só a falta de uma estrada que aborrecia os irmãos do Miguel, quando por cá passavam férias, era o telefone que teimava em não chegar e a luz elétrica que se sabia estar ainda mais distante. Para eles , habituados a todas as comodidades, na Rua do Uruguai, no Rio de Janeiro, que estavam dispostos a despender significativas comparticipações para estas obras, este atraso era inaceitável. A estrada, impulsionada por um grande subsídio destes brasileiros da Estivada, chegou, em 1930, à Igreja das Medas, finalmente. Ao mesmo tempo eles mesmos, assumiram integralmente o custo total da construção da torre da Igreja.

Não admira que, em 1933, a freguesia lhes tivesse dispensado, na sua primeira viagem de automóvel, do Porto de Leixões às Medas, uma receção festiva, com a estrada engalanada no lugar de Canas, foguetório e a atuação da Banda de Música de Lever.

No centro daqueles festejos estava o tio materno do meu pai, o Miguel, eufórico e orgulhoso da prosperidade dos irmãos. Tinha razões para isso, ele que, no decurso da obra da estrada, não se cansava de trazer de casa um gigo com broa e garrafões de vinho que dava de merenda aos trabalhadores.

O telefone só havia de chegar em 1936, quanto à rede de energia elétrica, empancada pelos constrangimentos da 2ªGuerra Mundial só em 1947 se viram as primeiras lâmpadas acesas nos lugares principais da freguesia. Do Brasil, apagado o meu tio avô, o Vicente, por morte repentina, em 1937, foi-se extinguindo a chama que deu alento à freguesia, durante quase três dezenas de anos, embora o irmão Manuel, que faleceu em 1964, continuasse a ajudar a terra natal, mas com contributos bem mais modestos, porque tinha menos riqueza que seu falecido irmão. As obras da residência paroquial e a instalação da rede elétrica beneficiaram dos seus contributos. Era costume, sobretudo no período da Guerra Civil de Espanha e da 2.ª Guerra Mundial, todos os anos, ser distribuída, pelos mais pobres da freguesia, uma verba de um conto de reis ou mais, fruto da sua generosidade.

O Miguel Viana, o lavrador de sapatos, que morreu na sua casa do lugar da Mota, em 1953, depois de passar pela indizível desdita de assistir à morte dos seus dois filhos e de três netos, ainda encontrou energia para dirigir as obras da reabilitação da residência paroquial, em 1948.
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24 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21942: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (8): O valor da seringa

22 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21935: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (7): O milagre de Nhacobá

19 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21920: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (6): O soldado dos pés inchados

17 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21912: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (5): Dormir com o inimigo

15 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21905: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (4): A vaca

12 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21891: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (3): O canhangulo

10 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21880: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (2): Despejado na Guiné

12 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21762: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Manpatá, 1972/74) (1): Contra os canhões marchar, marchar...

(***) Último poste da série > 7 de setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22519: Notas de leitura (1379): Índice e contracapa da obra "Os Números da Guerra de África", de Pedro Marquês de Sousa (Guerra e Paz Editores, 2021, 384 pp.): "Vale a pena ler"! (A. Marques Lopes, cor art ref, DFA)

Guiné 61/74 - P22532: O nosso livro de visitas (213): Nuno Inácio, filho do nosso camarada Gil da Silva Inácio - "O Gringo" - que foi CMDT do Pel Caç Nat 67 em 1973

Guiné > Região de Tombali > Cufar > 1973 > A despedida do Pel Caç Nat 67 > Em primeiro plano, o comandante do Pelotão, Alf Mil Gil da Silva Inácio, o "Gringo".

Foto (editada): © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem enviada ao Blogue por Nuno Inácio, filho do nosso camarada Gil da Silva Inácio, CMDT do Pel Caç Nat 67, através do Formulário de Contacto do Blogger, em 9 de Setembro de 2021:

Exmos. Srs.

Chamo-me Nuno Inácio e sou filho de um Comandante do Pelotão de Caçadores Nativos 67, Alf. Mil. Gil da Silva Inácio, conhecido como "O GRINGO" - Cufar - Guiné 1973.[*]

Tomei conhecimento deste website através de um grande amigo que viu um artigo onde mencionava um Alf. Mil. na Guiné conhecido como "o gringo" e como outrora lhe tinha referido essa alcunha do meu pai fui verificar e de facto é o meu pai.

Estimo informar que o meu pai é vivo, cheio de saúde e ainda pronto para as curvas.
Neste sentido gostaria de saber se alguns dos inúmeros heróis aqui presentes e representados conheceu o meu pai, gostaria de saber mais histórias desses tempos, porque o meu pai tem algumas reservas em partilhar essas histórias e se ainda existem encontros de ex-combatentes desses GE e, em caso afirmativo, pedia o favor a V. Exas. ser notificado para o efeito.

Grato pela atenção dispensada.
Atentamente,
Nuno Inácio
Cumprimentos,
Nuno Inácio | info@streetcustoms.pt


********************


2. Comentário de CV:

Caro Nuno Inácio
Permita-nos que o trate assim, já que entre a tertúlia, filho de um camarada, nosso "filho" é.

Muito obrigado pelo seu contacto e pelas notícias do estado de saúde de seu pai, o nosso camarada Gil Inácio, ainda um jovem como qualquer um de nós.
Infelizmente temos poucas referências no nosso Blogue sobre o Pel Caç Nat 67. Pelo que pude pesquisar, foi formado em 1968, permanecendo em Mejo até Janeiro de 1969, altura em que foi deslocado para Guileje. Em Dezembro do mesmo ano foi dali deslocado para Cufar, onde esteve até Junho de 1973, data em que foi deslocado para Farim, onde esteve até ao fim da guerra.

O seu pai deve ter feito estes últimos anos do Pel Caç Nat 67, rendendo o Alf Mil Cav Joaquim Esteves, depois confirmará com ele.

Se entretanto for conversando sobre a sua estadia na Guiné, pergunte-lhe se ele se lembra da data de ida e regresso. Normalmente não esquecemos, para o bem e para o mal, estas datas, assim como outras que lembram os momentos menos bons por lá vividos.

Se ele quiser, poderá partilhar connosco algumas fotos que tenha aí por casa. Se para tal não tiver arte ou engenho, contamos com o Nuno Inácio para o ajudar.

Pode ser que apareça alguém do seu tempo, furriéis, por exemplo. Ele lembra-se de algum deles? Saberá onde vivem actualmente?

Como sabé, os convívios dos antigos combatentes foram suspensos devido ao COVID mas retomados que sejam, e se soubermos algo que interesse ao pai, daremos conta.

Ficamos ao dispor do camarada Gil Inácio, desejando-lhe a melhor saúde.

Para pai e filho, um abraço em nome da tertúlia
Carlos Vinhal

____________

Notas do editor:

[*] - Vd. poste de 27 DE ABRIL DE 2017 > Guiné 61/74 - P17291: Álbum fotográfico de Luís Mourato Oliveira, ex-alf mil, CCAÇ 4740 (Cufar, dez 72 / jul 73) e Pel Caç Nat 52 (Mato Cão e Missirá, jul 73 /ago 74) (16): o Pel Caç Nat 67,em Cufar, 1973

Último poste da série de 13 DE JULHO DE 2021 >
Guiné 61/74 - P22370: O nosso livro de visitas (212): Ildeberto Medeiros, ex-1º cabo condutor auto, CCAÇ 2753, "Os Barões" (Brá, Bironque, Madina Fula, Saliquinhedim/K3 e Mansabá, 1970/72)... Açoriano, vive nos EUA e quer integrar a Tabanca Grande

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22531: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (88): O Regimento de Cavalaria n.º 6 de Braga, juntamente com a Universidade do Minho, está a organizar um colóquio e uma exposição (a acontecer em 18NOV21) sobre o esforço de mobilização do RC6 em PelRec Daimler para os três Teatros de Operações. Procura-se antigos CMDTs Pel Rec Daimler para possível colaboração no evento

1. No passado dia 1 de Setembro de 2021, recebemos do Exmo. Senhor Comandante do Regimento de Cavalaria nº 6 a seguinte mensagem:

Exmos Senhores Luís Graça e Carlos Vinhal,

Chamo-me Miguel Freire e presentemente sou o Coronel Comandante do Regimento de Cavalaria Nº 6 (RC6), em Braga. O RC6, juntamente com a Universidade do Minho, está a organizar um colóquio e uma exposição (a acontecer em 18NOV21) sobre o esforço de mobilização do RC6 em PelRec Daimler para os três Teatros de Operações. Temos vindo a fazer um trabalho de pesquisa quer no Arquivo Geral do Exército, quer no Arquivo Histórico-militar. Mas temos tido alguma dificuldade a chegar ao contacto de antigos combatentes pertencentes a estes pelotões. O blog que têm é uma ferramenta extraordinária. Tomei a liberdade de vos contactar por mail e não pelo blog para saber se seria possível contar com o vosso apoio para divulgar este evento fazendo um convite para os antigos combatentes que tenham servido nestes pelotões para nos contactarem. Gostaríamos de poder contar com os seus testemunhos não só na preparação da exposição como na preparação e participação de comunicações. Se aceitarem dar-nos este apoio eu envio um pequeno texto para ser difundido no blog a convidar antigos combatentes dos Pel Rec Daimler a quem possamos entrevistar/conversar sobre o emprego destes pelotões. Assim que tivermos o cartaz oficial do evento também usaríamos o vosso blog para difundir o evento, para que o maior numero de antigos combatentes ou os seus familiares pudessem estar presentes ou assistir pela internet. Claro que isto é extensível a militares de outras unidades (BCav, BArt ou BCaç) nas quais os Pel Rec tenham sido integrados.

Disponibilizo o meu contacto pessoal caso queiram falar sobre este projeto. Tinha muito gosto em fazê-lo.

Obrigado pela atenção e fico a aguardar uma resposta.
Um abraço


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2. No dia 3 enviámos ao Comandante do RC6 a seguinte mensagem:

Exmo. Senhor Comandante do RC 6

Estamos a acusar a mensagem de V. Ex.ª e a disponibilizar o nosso Blogue para divulgação desta e de outras iniciativas que ache convenientes.

Numa primeira pesquisa no Blogue achámos 4 ex-Alferes Milicianos que comandaram os Pel Rec Daimler: 2046; 2206; 2208 e 3089. Tenho ainda um amigo/camarada que não fazendo parte da nossa tertúlia também comandou um Pel Rec Daimler na Guiné (2209).
Se o senhor Comandante nos disponibilizar um texto para conhecimento e sensibilização para participação destes nossos camaradas no referido evento, endereçá-lo-emos com todo o gosto aos 5 camaradas, assim como daremos o devido destaque no Blogue.
Numa primeira fase, ficámos na dúvida se a mensagem que nos enviou é publicável ou até passível de envio para conhecimento aos nossos 5 camaradas comandantes dos Pel Rec Daimler.

Ficamos ao inteiro dispor do senhor Comandante
Cordiais saudações
Carlos Vinhal
Coeditor


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3. Neste mesmo dia endereçámos aos nossos camaradas:
Jaime Machado, CMDT do Pel Rec Daimler 2046; J. L. Vacas de Carvalho, CMDT do Pel Rec Daimler 2206; Ernestino Caniço, CMDT do Pel Rec Daimler 2208 e Francisco Cardia Taveira, CMDT do Pel Rec Daimler 2209, a mensagem que se segue:


Estimados camaradas de armas, nobres Cavaleiros

Atendendo à vossa qualidade de ex-Comandantes de Pelotão de Reconhecimento Daimler, estou a encaminhar uma mensagem enviada ao nosso Blogue pelo senhor Comandante do actual RC6, agora sediado em Braga.
Peço a vossa melhor atenção e, se para tal tiverem disponibilidade, prestem a colaboração que o senhor Coronel Miguel Freire solicita.
Somos, neste caso sois, a memória viva de um passado que querem estudar. Falemos agora antes que outros comecem a falar por nós.
Têm os contactos do senhor Coronel para o caso de quererem comunicar com ele. O vosso camarada Francisco Gamelas já está em contacto com o senhor CMDT do RC6.
Digam-me qualquer coisa.

Aquele abraço enorme, especialmente para o Jaime Machado e Vacas de Carvalho que há muito não dão "sinal de vida".
Sempre ao vosso dispor
Carlos


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4. Sabemos já que o Camarada Jaime Machado contactou o senhor Coronel Miguel Freire por esta mensagem que ele nos enviou para conhecimento:

Caro Senhor Coronel Miguel Freire
Fui comandante do Pel. de Reconhecimento Daimler 2046.
Prestei serviço militar na Guiné-Bissau entre maio de 1968 e abril de 1970.
Resido em Matosinhos.
Estou ao seu dispor para o que achar útil.

Os meus melhores cumprimentos
Jaime Machado


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5. Nota de CV:

Se entre os nossos leitores houver alguém que tenha comandado um Pel Rec Daimler  em qualquer dos três TO ou conheça algum antigo Comandante dessas Unidades de Cavalaria, por favor entrem em contacto com o senhor Comandante do RC6 de Braga através dos endereços e telefones fornecidos.

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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22269: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (87): senhoras de Bolama mandam celebrar missa do 7º dia por alma dos aviadores italianos, mortos no acidente aéreo de 6/1/1931

Guiné 61/74 - P22530: (Ex)citações (390): o ouri (ou uril) de Madina Xaquili, um jogo de estratégia (Fernando Gouveia / António J. Pereira da Costa / Cherno Baldé)

O ouri de Madina Xaquili, em forma de canoa, feito em pau sangue, e trazido pelo Fernando Gouveia para a sua coleção de arte guineense. As pedras são sementes de coconote. O tabuleiro tem seis buracos de cada lado.


Foto (e legenda): © Fernando Gouveia (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Comentários dos nossos leitores ao poste P22526 (*):

(i) Fernando Gouveia:

(...) Em Bafatá joguei várias vezes uril (em francês, "iuri", como então lhe chamávamos), com o ator Carlos Miguel, o "Fininho". De Madina Xaquili, onde cheguei a estar,  trouxe de lá um uril (ou ouri)  em forma de canoa. (...) Ver foto no poste P4585 e toda a história à volta dele. (**)


(ii) António J. Pereira da Costa:

(...) Tenho um jogo do ouri, mas faltam-me algumas peças. São sementes pretas de uma planta que não conheço. Deviam ser 48, mas não tenho tantas, Haverá alguém que me arranje as que me faltam? Pelas minhas contas faltam-me 7 sementes. No meu livro "A Minha Guerra a Petróleo" conto a história das derrotas que o "Balantazinho" me aplicava. O pagamento era feito em Sumol de Laranja ou Ananás... Uma garrafa por cada vitória. 

(...) O meu ouri é em forma de canoa e tem duas "caixas" nas proas para guardar as sementes, antes de começar o jogo. Ja´enviei para o blog fotos das minhas peças de arte guineense. Para esclarecimento é só lá ir(...) (*)

 (iii) Cherno Baldé:

Na minha explanação, disse erradamente que eram 5 buracos de cada lado, na verdade são 6 buracos ou casas de cada lado, onde no início da partida se colocam 4 pedras/sementes em cada uma das casas. O sentido do jogo é sempre de esquerda para a direita, no sentido contrário aos ponteiros do relógio. O jogo faz-se distribuindo a totalidade das pedras/sementes de uma das casas de cada vez.  seguido do adversário que também procede da mesma forma, tentando capturar ou comer (como se diz nas línguas africanas). 

Para a captura usa-se a estratégia do lobo, ou seja,  de atacar o lado mais fraco do adversário. Quando a distribuição das pedras/sementes termina numa casa ou numa série de casas com menos de 4 sementes (2 ou 3),  estas encontradas em situaçao de fragilidade, consideram-se capturadas/comidas e são retiradas e guardadas na ponta do lado direito de cada um dos jogadores. E quando não houver mais sementes, ganha o jogo aquele que tiver mais pedras ou sementes capturadas.

(iv) Fernando Gouveia:

(...) Ainda bem que o Cherno fez a correção dos seis buracos,  e não cinco. Porém no meu tempo, em Madina Xaquili aprendi que só se comia quando nas últimas casas se encontravam ou uma ou duas pedras e só no lado do adversário. (...)
 
(v) Cherno Baldé:

Caro Fernando Gouveia, está certo o que dizes, todavia, para capturar (comer) tens que juntar (distribuindo) mais uma pedra a outra (quando é 1) ou as outras (quando são 2). 

Quando a distribuição das pedras de uma casa termina numa casa vazia (sem pedras) ou numa casa totalizando 4 ou mais pedras, não se pode capturar porque 4 é um número neutro (de segurança mínima), razão porque designo este jogo por estratégia do Lobo que só ataca o lado mais fraco das suas vítimas. 

Neste jogo as casas em risco de ser capturadas são as que tem 1 ou 2 pedras pois que quando se junta mais uma pedra do adversário são capturadas. Cada um dos adversários vai tentar atrair para o seu lado o máximo de pedras e construir casas fortes de ataque ao adversário, acumulando um número significativo de pedras (artilharia) as quais serão redistribuidas no momento oportuno, de modo a poder capturar/matar (comer) o maior número de inimigos/pedras do seu adversário. (...) )***)

____________

(**) 26 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4585: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (7): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro (VI Parte)

(...) Relato do 12.º dia – 23JUN69

Essa pureza que referi iria ser quebrada. Em determinada altura ouço, perfeitamente fora do contexto, um gargalhar de dois milícias. O que se passava? À porta de uma palhota um militar metropolitano mostrava a esses dois camaradas africanos um baralho de cartas, daqueles com cenas pornográficas. Interrompi a sessão, chamei o metropolitano e expliquei-lhe, em pormenor, a poluição do seu acto, etc., etc.

À tarde aproveitei para tirar algumas fotos e ir falar com o Braima para saber se ele me vendia a guitarrinha, daquelas típicas, feitas com meia cabacinha, pele de macaco e cordas de fio de pesca. Não o consegui mas falando-se também do seu iuri que ele próprio escavou em pau sangue, com forma de canoa, aqui sim, consegui convencê-lo, considerando essa a peça mais significativa que trouxe da Guiné. (...) 

(***) Último poste de 19 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22386: (Ex)citações (389): Caminheiro, peregrino, pagador de promessas...(Jaime Bonifácio Marques da Silva, ex-alf mil prqd, BCP 21, Angola, 1970/72)

Guiné 61/74 - P22529: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (69): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
É com a maior satisfação que me socorro do livro Postais Antigos da Guiné, escolhidos por João Loureiro. Conheci este distinto advogado no Conselho de Publicidade, ele representava as agências e eu os interesses do consumidor. Sobrou uma consideração mútua e um dia pude escrever que o levantamento de património coligido pelo Dr. João Loureiro era inultrapassável, ele sistematizou uma invulgar coleção de quase dez mil postais fotográficos, sem dúvida uma imprescindível fonte iconográfica não só da presença portuguesa em África e no Oriente como também de um período que marcou os sinais da colonização portuguesa e a alvorada das nações lusófonas. A ele dedico hoje este despretensioso texto.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (69): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette mon adorée, presque à arriver à Lisbonne, não sei se é só o meu coração que te aguarda com a maior expetativa, em breve virás tomar conta da nossa casa, és tu que lhe dás vida e que me embalas o destino. Já que te estás a divertir com as peripécias da minha passagem pela Neuropsiquiatria do Hospital Militar nº 241, e que me pedes ainda mais aspetos caricaturais, episódios de pequeníssima história, sobre tudo o que tem sido a minha comissão, aqui vai um punhado avulso de rememorações. Na noite em que desembarcámos do Uíge para uma lancha que nos levou ao cais do Pidjiquiti, já era 29 de julho de 1968, alguns soldados com o olhar furibundo pela estafa que lhes estava a dar, foram arrastando os meus malões de madeira para um estranho portaló, sempre a imprecar, eis senão solta-se uma pega e aquele malão em forma de urna foi disparado para a barcaça, podia ter havido acidentes graves, alguém deu um grito estridente, quem ia dentro da barcaça afastou-se rapidamente, o malão acabou por assentar em cima de uma superfície mole, não tugiu nem mugiu, eu bem corria o risco de ver umas centenas de livros e discos a afundarem-se no Geba. Se achares interessante, adicionas ao tempo a que cheguei a Bissau. Como parti a 2 de agosto para Bambadinca, tive praticamente o último dia de julho e primeiro de agosto por minha conta, e andei a vaguear exatamente pelos mesmos pontos que agora referencio, em abril de 1970.

Penso nas pessoas que conheci e que já partiram, caso do Pedro e da Luísa Abranches, casal muito amigo da minha irmã Manuela, do Cruz Filipe, médico como o Pedro, e que sempre me acolheu tão calorosamente em casa, do Botelho de Melo, passo junto ao edifício do Comando da Defesa Marítima e logo sinto saudades do comandante Teixeira da Mota. Quando trabalhei uns fartos meses em 1991 na Guiné procurei saber o que era feito daquele tão delicado e dedicado funcionário do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, o que me facilitava a descoberta de literatura que me permitiu ir conhecendo um pouco a Guiné. E automaticamente lembro-me dos sargentos e das praças que me deram tão profícua colaboração e que desapareceram da minha vida, caso do Zacarias Saiegh, do Luís Casanova, do Jolá Indjai, soldado que tuberculizou mal cheguei ao Cuor, tratou-se dois anos em Lisboa, e no exato momento em que embarco no Carvalho Araújo em Bissau, ele me apareceu curado e lembrando-me o carinho com que tinha sido tratado pelos meus familiares. Lembro o Paulo Semedo e o Fodé Dahaba. Sentado na esplanada da 5ª REP remexo nas guias que tenho para os médicos: ortopedia, para ver como tenho o joelho direito, fui operado a uma exostose em abril do ano passado; arrepio-me quando vejo a guia para o estomatologista, já visitei o carniceiro, no banco cá fora eu e muitos mais estremecemos a ouvir a gritaria ou os gemidos de quem está sentado na cadeira, só penso naquela broca que está sempre a zunir; e tenho o otorrino e o oftalmologista e depois a neuropsiquiatria, dou comigo a falar em voz alta e quando remexo nesta papelada, fui impedido de passar férias com os meus entes queridos, tenho agora férias de saúde a vários níveis de recauchutagem. Nisto olho em frente, sou tentado pela Casa Gouveia, entro aqui sempre e fico embasbacado com o estanco monumental, conheço o Rendeiro e o Zé Maria em Bambadinca, ali pode-se comprar deste o nastro ao petromax, aqui o festival fia mais fino, há pratas e porcelanas dispendiosas, estes importadores aproveitam uma alforria da pauta aduaneira e põem à disposição do público artigos de luxo de pouca probabilidade em Lisboa.

Adorada Annette, tomo as refeições na messe de oficiais e descobri um passatempo formidável, sentar-me num cadeirão e ouvir as conversas de militares e famílias, vale um dinheirão, os oficiais indignadíssimos com esta ou aquela postura deste ao daquele superior, as senhoras avaliando o trabalho das empregadas, comentando quem chega e quem parte, observo as gesticulações de uns e outros naquele aquário muito especial em que os militares andam enfurecidos com aspetos burocráticos e as senhoras com as ninharias do quotidiano, para eles o teatro de guerra é inexistente.

Alguém me recomendou que fosse conhecer uma instituição muito especial, a Pensão Central, gerida por uma figura lendária da cidade, Dona Berta. Subi umas escadas em ferro, entrei numa sala cheia de mesas, um empregado veio solícito perguntar se eu queria almoçar, pedi para conversar com a Dona Berta, a senhora apareceu, trazia a candura no sorriso, perguntou-me se fora colocado em Bissau e se queria ser comensal, ainda não tivera tempo para responder e já me dera o teor dos menus diários e o respetivo preço, quando lhe respondi que viera conhecer a distinta senhora ela logo me disse que almoçaria na sua mesa. Perguntou-me qual o prato que eu mais apreciava, não havia que enganar, a canja de ostra, Pitche-Patche. “Hoje não há, amanhã sim, é novamente meu convidado”. Será na Pensão Central que almoçarei e jantarei em 1991, naquele tempo não havia problemas de segurança, metia-me ao caminho para o meu dormitório, a CICER, o pior eram as noites escuras, tinha que andar cauteloso para não me espalhar, felizmente recebia muitas vezes a boleia do Delfim da Silva, colaborador do presidente Nino, que não morava longe.

Tive sorte em encontrar colegas de curso de Mafra, agora colocados em Bissau. Recordo algum turismo de fim de tarde, passeios até Quinhamel e Nhacra. Todas as consultas correram bem, chegou a hora de ir ao neuropsiquiatra, o David Payne disse-me que eu não podia demorar mais. Entrei na consulta, leu o diagnóstico do Payne, comentou em voz alta os sinais de desgaste, as insónias, os comportamentos agressivos, que eu não me apoquentasse, a viver com aquela enorme pressão era imprescindível repousar muito, ia preparar o esquema da terapêutica, amanhã de manhã ele dava entrada na enfermaria, conversaríamos uma semana depois.

Minha adorada, já vesti o pijama e sou conduzido pelo 1º cabo Morais para um quarto de três camas. Este 1º cabo é um homem de conversa económica mas disse-me um dia à queima-roupa: “Sou maqueiro por acidente, no que gosto de fazer é proteger algumas meninas coristas do Parque Mayer”. Mudei de universo, onde me encontro a hierarquia tem outro significado, quem aqui comanda é o 1º cabo Morais, ele pede para não ter que se irritar, quer ver tudo cumprido dentro desta rotina com horas para levantar e deitar, tomar a pica no rabo, engolir comprimidos, tomar banho, almoçar, voltar aos comprimidos, ter uma hora livre para visitar os outros doentes ou receber visitas, se houver condições ler ou escrever, jantar, engorgitar mais comprimidos e depois tudo muito pianinho, a noite e o sono são integralmente para respeitar com aquela luz de azul fosco que nos vigia sem cessar. Cabe-te agora pedires os esclarecimentos que precisas sobre a tragicomédia que vivi durante os nove dias que ali passei. Não achas melhor conversarmos sobre este assunto, dentro de dias, quando chegares a Lisboa? Estou impaciente por te ver, prometo tudo fazer para que o Jules passe uma semana muito agradável na nossa companhia. Bisous et à tantôt, Paulo.


Barbearia no Bissau Velho
Estamos no tempo da divulgação do exotismo. O editor foi a Neogravura de Lisboa, cerca de 1945. Os ocidentais, apanhados de surpresa, são confrontados com danças tribais, tatuagens, um mundo arabizante, um pedaço do continente perdido sob a nossa custódia. A imagem é poderosa, destaca o vigor físico de alguém que nos encara, orgulhoso de quem é.
Pescadora Papel do Biombo. O editor foi a Foto Serra, cerca de 1966. Quantos de nós não enviaram esta imagem para a terra? Mesmo com prudência, não era coisa que se mandasse à namorada (insinuações à parte)...
Mercado, edição da Casa Gouveia, cerca de 1970. Senti-me transportado para Bambadinca ou Bafatá, mercados mais pequenos do que os de Bissau. Não acredito que as cores tenham perdido vivacidade. Como eu gostava de deambular, comprar especiarias, sentir-me penetrado por esta atmosfera de vozes, movimentos, odores.
Morros de baga-baga, edição da Foto Iris, cerca de 1969. Que idades terão estes meninos hoje, que sonhos, que venturas? Despeço-me do álbum de João Loureiro com a nostalgia do futuro. Os meninos merecem sempre mais, em sonho e em esperança. O postal pode não ser muito bom mas gosto muito da linha do horizonte e da pureza das nuvens. E os meninos são sempre os meninos.
Pensão Central ou da Dona Berta, muito próxima da Catedral de Bissau
Avenida Marginal, Bissau
Monumento ao Esforço da Raça, com a Associação Industrial e Comercial ao fundo
Grande Hotel, Bissau, já conhecera dias melhores, galeria de fotos do Didinho, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22508: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (68): A funda que arremessa para o fundo da memória

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22528: Lembrete (35): Apresentação, no sábado, dia 11, na Tabanca dos Melros, do livro autobiográfico do António Carvalho, "Um caminho de quatro passos". Intervenientes: além do autor, José Manuel Lopes, Ana Carvalho e Luís Graça. (Inscrição prévia, para o almoço de convívio, "vinte morteiradas", na "messe de Mampatá": 'vagomestre' Gil Moutinho, telef / telem 224890622 / 919677859)

1. Recorde-se (*) que será apresentado sábado, dia 11 de setembro de 2021, às 11h00, na Tabanca dos Melros, Fânzeres Gondomar, o livro "Uma caminhada de quatro passos" do nosso querido amigo, camarada e grã-tabanqueiro António Carvalho, o "Carvalho de Mampatá". (**)


Haverá um momento musical, e intervenções de: autor, José Manuel Lopes, Ana Carvalho e Luís Graça (editor do blogue). Segue-se uma sessão de autógrafos. 

E, depois, para quem quiser e puder, e mediante inscrição prévia, almoço de convívio no restaurante Quinta dos Choupos - Choupal dos Melros (Rua de Cabanas, 177, 4510-506 Fânzeres, Gondomar), transformado nesse dia na "messe de Mampatá". (Aplicáveis as normas sanitárias em vigor.)

Preço da refeição (tudo incluído): 20 morteiradas. 

Contactos: 'vagomestre' Gil Moutinho, telef / telem   224 890 622 / 919 677 859.


2. Sobre o autor, António dos Santos Carvalho:

(i) nasceu em 17 de fevereiro de 1950, no lugar de Carvalhos, freguesia de Medas (hoje, "desgraçadamente", União das Freguesias de Melres e Medas), concelho de Gondomar;

(ii) no seio de uma família extensa, de grandes lavradores (à escala local: eram os maiores produtores de bata, tinham duas juntas de bois, faziam mais de 30 pipas de vinho, tinham "moços de lavoura", etc.);

(iii) "moldado num ambiente rural", aprendeu, "desde muito cedo, a viver na ambivalência entre o trabalho e a oração";

(iv) furando-se, porém, "sempre que podia, a este ambiente espartano, em correrias transgressivas por caminhos e carreiros, espreitando ninhos, indagando sobre as mais saborosas primícias, arriscando-me nas águas do Douro e regalando-me em tudo o que fosse fresta ou festrola";

(v) em 1962, vai para o Colégio da Mealhada, que frequentou até ao 7º ano do liceu (, fundado pelo padre dr. António Antunes Breda, como Instituto Liceal e Técnico  Sant'Ana da Mealhada, e inaugurado em 1962, funcionava como externato e internato; passou em 1972 a ser a Escola Secundária da Mealhada):

(vi) "plantado na Mealhada durante sete anos (,,,), descobri outras páginas da vida, quer no convívio com os meus condiscípulos, quer nas aulas dos meus professores, alguns deles distintos, como o dr. Urbano Duarte" (, professor de filosofia);

(vii) "Da Mealhada até ao ingresso compulsivo na vida militar, em 11 de janeiro de 1971, foi um salto de pardal, seguindo-se a mobilização  para a guerra do Ultramar" (...),  no decurso de um 'longo«' período de 26 meses, entre 27 de junho de 1972 e  24 de agosto de 1974;

(viii) foi fur mil enf, BART 6520/72, Mampatá, "Os Unidos de Mampatá", 1972/74, e é membro da Tabanca Grande desde 13/9/2008;

(ix) dos seus irmãos do sexo masculino, houve mais dois mobilizados para o Ultramar, o "Necas" (Manuel Carvalho), para a Guiné (ex-Fur Mil Armas Pesadas Inf, CCAÇ 2366 / BCAÇ 2845, Jolmete, 1968/70) (foto à direita); e o Fernando, para Angola;

(x) trabalhou, em funções administrativas, na Segurança Social, no Serviço Nacional de Saúde, no Porto, mas também na Câmara Municipal de Gondomar e na Câmara Municipal de Gaia, estando aposentado da função pública desde 2013;

(xi) foi autarca durante quase três décadas:  presidente da junta de freguesia de Medas (1986/1993 e 2002/2013); de permeio desempenhou as funções de secretário e de tesoureiro na mesma junta, entre 1994/97 e 1998/2001, respetivamente;

(xii) faz parte, entre outras tertúlias de antigos combatentes, da Tabanca Grande, da Tabanca de Matosinhos, da Tabanca dos Melros  e de O Bando do Café Progresso;

(xiii) publicou em julho de 2021 o seu primeiro livro, "Um Caminho de Quatro Passos" (Rio Tinto, Lugar da Palavra Editora, 218 pp., ISBN: 978-989-731-187-1);

(xiv) é casado (com a Fátima Carneiro Carvalho, professora do ensino básico, reformada); o casal tem duas filhas;

(xv) mora em Medas, Gondomar.

O livro pode ser adquirido, ao preço de 15,00 Euros (portes incluídos, no território nacional ou estrangeiro)

Contactos do autor:
António Carvalho, Medas, Gondomar

Email: ascarvalho7274@gmail.com  | Telemóvel: 919 401 036
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Guiné 61/74 - P22527: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XIV: Alfredo Guimarães (Guimarães, 1884 - França, CEP, 1918), cap cav

 

Alfredo Guimarães (1884-1918)


Nome: Alfredo Guimarães

Posto: Tenente de Cavalaria

Naturalidade: Guimarães

Data de nascimento: 22 de Abril de 1884

Incorporação: 1906 na Escola do Exército (nº 166 do Corpo de Alunos)

Unidade:  Serviço de Aviação, Regimento de Cavalaria n.º 2

Condecorações: Oficial da Ordem Militar da Torre e Espada (a título póstumo) | Cruz de Guerra de 2ª classe | Promoção a Capitão, por distinção

TO da morte em combate;  França (CEP)

Data de Embarque: 4 de Agosto de 1917

Data da morte: 9 de Abril de 1918

Sepultura:  França, Cemitério de Richebourg l`Avoué

Circunstâncias da morte:  Comandando um pelotão da 3ª companhia do BI 29, combateu na 1ª linha dela retirando quando já não tendo homens para comandar e apresentou-se no comando do batalhão onde organizou, por duas vezes, uma força para contra-atacar e por último defender a Red House (posto de comando do batalhão) onde foi ferido. Ainda assim retirou para as linhas de resistência à retaguarda de Laventie, ocupadas por ingleses, onde combateu e foi atingido mortalmente por fogos alemães.

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António Carlos Morais da Silva, hoje e ontem


1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um oficiais oriundos da Escola do Exército e da Escola de Guerra que morreram em combate, na I Guerra Mundial, nos teatros de operações de Angola, Moçambique e França (*).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva, cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor da AM, durante cerca de 3 décadas; é membro da nossa

Tabanca Grande, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.

Para saber mais sobre o "herói vimarense de La Lys", vd, aqui, no Blogue do Minho.

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22526: Histórias... com abracelos do Carlos Arnaut (ex-alf mil, 16º Pel Art, Binar, Cabuca, Dara, 1970/72)(5): O jogo do ouri (ou mancala)


1. Mensagem de Carlos Arnaut, ex-alf mil, 16º Pel Art, Binar, Cabuca, Dara, 1970/72)

Data - segunda, 16/08/2021, 13:12



Assunto - Jogos ancestrais (*)


Bom dia, Caro Luís,

Em primeiro lugar o meu desejo de óptimas férias a todos os camaradas, num tempo em que a ameaça que sobre nós pairou parece estar finalmente a desvanecer-se (com ajuda da Marinha).

Deparei num Blog de que sou leitor assíduo, e no seguimento de comentários avulsos sobre o xadrez, jogo de que sou fã, uma referência a um jogo "mancala", que em tempos idos seria jogado pelos árabes e de que existem vestígios no Alentejo.

Este jogo, também ele um jogo de estratégia para dois jogadores, consistiria na transferência de punhados de pedrinhas de cova para cova até se atingir o lado oposto.

A descrição não vai mais além, mas desde logo me recordou aquilo que observei vezes sem conta ser jogado nas zonas por onde andei, na Guiné.

Utilizando-se um madeiro com duas fiadas de covas, os jogadores iam tirando o que me parecia serem umas sementes grandes e arredondadas, de uma cova e vertendo-as noutra ou noutras covas, não tendo eu nunca entendido nem as regras nem quem seria o vencedor.

Recordo-me no entanto que os jogadores estavam sempre altamente concentrados, às vezes com assistência, e tanto quanto me recordo os jogadores eram sempre homens feitos, nunca vi garotos entretidos com tal jogo.

Lembras-te de ter presenciado este jogo? Consegues adiantar mais alguma coisa?

Talvez o nosso amigo Cherno Baldé me consiga matar esta curiosidade, pois acredito que este jogo merece ser divulgado.

Se entenderes que este assunto vale a pena ser debatido, vai em frente.

Grande abraço (agora sim, já vacinado). 

Carlos Arnaut



O jogo de toda a Africa (Ouri, Wari, Solo, Mancala, Awélé, etc.) - Revista Jeux & Strategie, nº 7, Fev / Mar 1981. (Cortesia de Carlos Geraldes) (*)


2. Comentário do editor LG:


Carlos, para já vê aqui uma referência a "jogos tradicionias felupes"... 

Tu referes-te a um jogo de "tabuleiro" fula, de que tenho ideia de ver jogar em tabancas fulas, no meu tempo...  O único poste em que temos referência a esse jogo (um tipo de jogos de tabuleiro) é do falecido Carlos Geraldes (*) (ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66).  Ele chamava-lhe ôri, mas a grafia correta, em português, é ouri ou uril.

Ab, boa saúde. Luís (, estou pelo Norte).

PS1- Vou reencaminhar a tua mensagem anterior para o Cherno Baldé, que nos vai ajudar.

PS2 - Grafia(s)

ouri
ouri | n. m.

ou·ri
(origem duvidosa)

nome masculino

[Jogos] Jogo de origem africana, disputado entre dois jogadores num tabuleiro com duas filas de cavidades ou casas, sob um conjunto de regras variáveis que permitem acumular e capturar peças, que geralmente são pedras ou sementes. = MANCALA, URIL

"ouri", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/ouri [consultado em 08-09-2021].

mancala
mancala | n. m.

man·ca·la
(inglês mancala, do árabe)

nome masculino

[Jogos] Designação dada a vários jogos africanos e asiáticos disputados entre dois jogadores num tabuleiro com várias cavidades, sob um conjunto de regras variáveis que permitem acumular e capturar peças, que geralmente são pedras ou sementes.
Palavras relacionadas: ouri, uril.

"mancala", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/mancala [consultado em 08-09-2021].

uril
uril | n. m.

u·ril
(origem duvidosa)

nome masculino

[Jogos] Jogo de origem africana, disputado entre dois jogadores num tabuleiro com duas filas de cavidades ou casas, sob um conjunto de regras variáveis que permitem acumular e capturar peças, que geralmente são pedras ou sementes.= MANCALA, OURIPlural: uris.
Palavras relacionadas: ouri.

"uril", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/uril [consultado em 08-09-2021].


4. Resposta do Cherno Baldé, com data de hoje, às 18h23:


Entre os povos muçulmanos e por influência destes também entre os outros grupos, há a prática do jogo de Xadrez designado na língua fula por "Txoqui" (ler Tchoqui) que deve ser a corruptela da palavra Xeque (do xeque-mate) de origem Arabe ou Oriental. 

Joga-se num tabuleiro improvisado no chão usando um certo número de paus de lado a lado e a técnica é a mesma da do Xadrez, mas aqui a lógica é bem mais simples pois os paus tem o mesmo estatuto e designação, não havendo hierarquia dos pioes ou paus usados no jogo e ganha o oponente que conseguir eliminar/comer o maior número dos paus do adversário mediante uma regra pré-estabelecida.

Por outro lado, pratica-se também o jogo designado na lingua fula por "Worri", este mais para adultos,  embora, como simples jogo de exercício mental em cálculos matemáticos, não existem fronteiras de idades na sua prática. 

Para o efeito utilizam-se pedrinhas ou carroços/sementes da palmeira dendém num instrumento talhado para o efeito com 5 buracos em cada lado ou simplesmente com buracos improvisados no chão. Ganha a partida o oponente que conseguir eliminar (sacar/comer) o maior número das pedrinhas/caroços do adversário mediante uma regra bem estabelecida. 

No geral são jogos/passatempos em períodos mortos quando não há muito que fazer no campo, durante a época seca e, ainda nas pastagens enquanto se espera pelo retorno do gado que está  pastar numa zona aberta de boa visibilidade e sem grandes riscos.

Com um abraço amigo,
Cherno Baldé
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Notas do editor:

(*) Último poste da série >8 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21867: Histórias... com abracelos do Carlos Arnaut (ex-alf mil, 16º Pel Art, Binar, Cabuca, Dara, 1970/72)(4): O meu saudoso Xico, um "macaco verde" que comprei a um garoto de Dara

Guiné 61/74 - P22525: Historiografia da presença portuguesa em África (279): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (16) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Devo aos técnicos da Sociedade de Geografia de Lisboa a atenção de me indicarem a bibliografia mais pertinente que pudesse de alguma forma trazer outros olhares sobre os conteúdos das atas das sessões do período referente desde a fundação da Sociedade até 1900. Obviamente que o leitor interessado tem ainda ao seu dispor o boletim da Sociedade, outro complemento útil para ir verificar os interesses científicos, as obras de engenharia, os rudimentos da Antropologia, o estudo das línguas étnicas, e muito mais. A questão central posta neste modesto levantamento foi o que pensavam, em termos de ideologia imperial, os fundadores da Sociedade de Geografia, e um conjunto de autores aqui indicados parece contextualizar bem as grandes pressões internacionais. Há, no entanto, uma lacuna que, em meu modesto entender, tem que ser preenchida por outra via historiográfica. Com efeito, não existia somente a via migratória para o Brasil, sucediam-se as crises políticas, e se é facto que o fontismo gerara a Regeneração, o sistema de alternância, o rotativismo, revelou-se incapaz de fazer associar a generalidade do país a poder abraçar, com genuíno entusiasmo, a causa do III Império, foi necessário produzir heróis entre exploradores das travessias africanas e conquistadores, como Mouzinho de Albuquerque. Mas toda aquela África Portuguesa teve uma ocupação incipiente, com todas as consequências que iremos conhecer em meados do século XX e que desaguarão nas independências da década de 1970.

Um abraço do
Mário



O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (16)

Mário Beja Santos

"Viagens de Exploração Terrestre dos Portugueses em África", por Maria Emília Madeira Santos, conheceu duas edições, a que me foi dado ler na Biblioteca da Sociedade de Geografia é da Junta de Investigações Científicas do Ultramar, dada a ligação que a investigadora tinha com o Centro de Estudos de Cartografia Antiga, mas como o leitor pode ver na imagem há duas edições.

Classifico este trabalho como da maior importância, logo pelo seu sumário, tão atrativo para quem queira conhecer as ligações entre a Expansão Portuguesa e África ao longo dos séculos: fontes do conhecimento de África na Europa cristã antes da Expansão Portuguesa; primeiras viagens em terras do noroeste africano; caminhos para desvendar África no final do século XV, penetração na Guiné; o reino do Congo; o império do Preste João – mito e realidade; revelação do império de Monomotapa: missionários, soldados e mercadores neste império; o Cabo da Boa Esperança; Madagáscar e as naus da Índia; a Etiópia e o Nilo: dois enigmas; projetos de travessia – conquista da África Austral no século XVII; governantes, sertanejos, engenheiros, pilotos preparam a travessia de África; a expansão sertaneja no final do século XVIII a caminho da África Austral; a primeira tentativa de travessia científica da África Austral – o Dr. Lacerda e Almeida e a via Cazembe-Muatiânvua; a Lunda aceita o comércio português mas não a influência política; Portugal e o movimento geográfico europeu: expedição portuguesa ao interior da África Austral em 1877; Serpa Pinto atravessa África; a corrida a África: Capelo e Ivens executam a ligação das duas costas; Henrique de Carvalho explora a Lunda; expedição Pinheiro Chagas – a nova exploração africana.

A investigadora recorda-nos que entre 1876 e 1885 triunfara na Europa a ideologia colonial. Além da procura de matérias-primas e de novos mercados, os países europeus desejavam garantir-se pelo poder político e arvoraram-se em executivos predestinados de uma missão civilizadora. Em 1875, a Enciclopédia Britânica ao dar a explicação da palavra África insistia várias vezes no desconhecimento sobre aquele continente. As tentativas de penetração operaram-se através do Mediterrâneo, pela Tunísia e o Egito, foram pontos de partida para penetrações em direção à África Negra. A França utilizou a Argélia para atingir a foz do Níger e o oeste africano. A Inglaterra utilizou o vale do Nilo para penetrar na África Oriental. E, entretanto, apareceram novos competidores, a Bélgica e a Alemanha. Era exatamente na África Austral que o Império Colonial Português possuía as suas maiores colónias, era o polo de atração. Apercebendo-se desses apetites internacionais, gerou-se um entusiasmo em Portugal, era preciso conhecer a geografia e demarcar o nosso império africano. Teve entre nós forte repercussão a Conferência Geográfica de Bruxelas, convocada por Leopoldo II da Bélgica, em 1876 e em que tomaram parte a anfitriã, a Bélgica, a Inglaterra, a França, a Alemanha, a Áustria-Hungria e a Rússia, Portugal não foi convidado. Leopoldo II criou a Associação Internacional Africana destinada a servir os seus projetos colonialistas e surgiu um fenómeno novo, apareceram exploradores ao serviço das grandes potências, dispondo de muitas facilidades: Brazza, ao serviço da França, Stanley contratado por Leopoldo, disputam o domínio do Zaire, a grande via para o interior de África. A Inglaterra, pressionada pelas aspirações dos colonos do Cabo, segue o movimento dos Bóeres em direção ao Norte e lança as vistas para a Bechuanalândia, que se estendia do Zambeze até ao Orange. Progressivamente, entre 1876-1884, a África Central iria transformar-se no campo de rivalidades das potências europeias. Portugal ou era ignorado ou denegrido. Exploradores prestigiados, como Livingstone e Cameron, lançaram fortes críticas à administração portuguesa em África, acusavam o Governo Português de continuar a permitir o comércio de escravos. Portugal tinha uma questão de emigração que não era de fácil alteração: o polo de atração continuava a ser o Brasil, só a classe mercantil e um grupo de cientistas se interessava por África. Impunha-se uma nova via, veja-se os antecedentes do estudo da Geografia.

Estes estudos estavam muito prejudicados desde o encerramento da Sociedade Real Marítima, no princípio do século XIX. Em 1876 fundava-se a Comissão Central Permanente de Geografia, que surgiu pouco depois da Sociedade de Geografia de Lisboa. Nesse tempo o principal problema da geografia africana era ainda o estudo da sua complexa hidrografia. O curso do Zaire fora apenas contornado por Cameron, desconhecia-se a sua nascente. Na opinião de Luciano Cordeiro, a expedição portuguesa devia internar-se na bacia do Zaire, descobrindo-lhe as origens e quais as relações com o Zambeze e com os grandes lagos. Estes sócios-fundadores da Sociedade de Geografia acalentavam a esperança de ver os portugueses encontrarem melhores caminhos entre Angola e Moçambique. A opinião de Luciano Cordeiro era que se deveria fazer a travessia, opinião que contrastava com a de José Júlio Rodrigues, secretário da Comissão Central Permanente de Geografia, este considerava que o centro de África estava irremediavelmente perdido para Portugal, advogava que a expedição devia fazer somente o reconhecimento geográfico e económico das partes menos conhecidas.

O principal objetivo da expedição de 1877 acabou por ser o estudo do rio Cuango nas suas relações com o Zaire e com os territórios portugueses da costa ocidental. Nomearam-se três exploradores: Serpa Pinto, oficial do Exército, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens, oficiais da Marinha. Desconhecia-se por esta altura que Stanley já tinha iniciado a descida do Grande Rio, o que tornava assim extemporâneos os projetos dos portugueses. Encetada a viagem, encontraram Stanley em Cabinda, ele acabava de descer o curso do rio. Decidiram então os exploradores portugueses fazer a viagem pelo Sul, partindo de Benguela e daqui dirigiram-se ao Bié. Começaram aqui os desentendimentos entre Serpa Pinto, Capelo e Ivens. No Bié, em casa de Silva Porto, manifestas as divergências, Serpa Pinto optou pela travessia de África enquanto que Capelo e Ivens definiram como objetivo da viagem o estudo do Cuango. Já separados, Capelo e Ivens dirigem-se para as nascentes do Cuanza, seguem depois para os Quiocos, um vai estudar o curso superior do Cuango e o outro segue a linha divisória das águas do Cuanza e do Cuango. Passaram por inúmeras dificuldades, atingem Malange, encontram o rio local e chegam à Fortaleza do Duque de Bragança e daqui seguem para o Cuango. Concluíram que era impossível o levantamento do Cuango.

Quanto a Serpa Pinto, ele atravessou o rico país dos Ambuelas, desceu o rio Ninda e chegou ao Zambeze; daqui alcançou o reino de Barotze onde obteve pirogas e navegou pelo Zambeze abaixo. Próximo da confluência do Cuango com o Zambeze encontrou os primeiros ingleses. Depois de muito penar chegou ao Transval. Em Pretória envia um telegrama para Lisboa, sossegou quem andava inquieto, o seu paradeiro era desconhecido. A parte da viagem que apresenta maior interesse, como Serpa Pinto reconheceu, é o percurso entre o Bié e o Zambeze, região completamente desconhecida dos geógrafos. Estava feita a travessia de África, mas a ligação entre Angola e Moçambique mais uma vez falhara.

A Sociedade de Geografia de Lisboa pede ao governo em 1880 a continuação das explorações geográficas e a fundação de missões religiosas e estações civilizadoras. Foi durante o ministério de Manuel Pinheiro Chagas que se pôs em marcha o vasto plano mais tarde conhecido pelo Mapa Cor-de-Rosa. Neste tempo o objetivo era bem claro: tentava-se definir o domínio português em África. Em novembro de 1883, Pinheiro Chagas criava a Comissão de Cartografia junto do Ministério da Marinha e Ultramar. Iniciaram-se imediatamente os trabalhos para a elaboração de um atlas geral de todas as colónias. Em 1884 organizaram-se nada menos do que três grandes exposições: Capelo e Ivens cruzaram a África de Angola a Moçambique; Serpa Pinto e Augusto Cardoso exploraram o norte de Moçambique, tendo o segundo atingido o Niassa; Henrique de Carvalho percorria a Lunda até ao Muatiânvua. António Maria Cardoso viajava nas terras de Gaza e Inhambane, Paiva de Andrade avançava de Quelimane até Gaza, Artur de Paiva explorava o Cubango, e enquanto tudo isto se passa as missões católicas de S. Salvador do Congo e do Huíla entraram em intensa atividade.

Com a recensão desta obra de Maria Emília Madeira Santos dá-se por concluída a apresentação de uma bibliografia complementar que permite aos interessados encontrar fontes documentais que expliquem com mais desenvolvimento o pensamento imperial destes fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa, eles foram determinantes para a consolidação do III Império Português.

Mapa do continente africano do século XVII, elaborado por Guilherme Blaeu (1571-1638).
Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22503: Historiografia da presença portuguesa em África (278): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (15) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22524: Agenda cultural (782): Apresentação, pelo cor Vasco Lourenço, na Feira do Livro de Lisboa, sexta-feira, dia 10, às 15h00, do livro de Moisés Cayetano Rosado, "Salgueiro Maia: das Guerras em África à Revolução dos Cravos" (Edições Colibri, 2021, 210 pp.)

 

Convite das Edições Colibri, que nos chegou por intermédio do nosso camarada Mário Gaspar: apresentação do livro de Moisés Cayetano Rosado, "Salgueiro Maia: das Guerras em África à Revolução dos Cravos" (2021, 210 pp.).  Data e local: 10 de setembro de 2021, sexta-feira, às 15h00, na Feira do Livro de Lisboa, Auditório Nascente, Parque Eduardo VII, Lisboa


Trata-se da tradução portuguesa da edição original em espanhol, “Salgueiro Maia – de las Guerras en África a la Revolución de los Claveles y su Evolución Posterior”.

"Moisés Cayetano Rosado, o autor da obra Salgueiro Maia, tem a particularidade de poder olhar, de forma mais distanciada e desapaixonada, os acontecimentos que narra nesta obra diferentemente de autores portugueses que se têm dedicado aos temas da Descolonização, do 25 de Abril e da ação e personalidade do Capitão Salgueiro Maia.

"É um historiador, interventivo e corajoso, na busca da verdade histórica e da defesa e salvaguarda da cultura do seu país, mas também apaixonado pelo seu país vizinho – Portugal – participando na organização de inúmeros eventos literários e culturais.
Nasceu em La Roca de la Sierra (Badajoz, Espanha), em 1951. É licenciado em Filosofia e Ciências da Educação. Mestre em Instrução Primária e tem doutoramento em Geografia e História." (Fonte_ Wook)
.

Sinopse do livro (excerto do prefácio, do Presidente da República, Prof. Doutor Marcelo Rebelo de Sousa):

“Foi há quarenta e dois anos!

Um homem em cima de uma Chaimite. Que interpela o poder que está a cair, enquanto o novo poder tarda em chegar.

Simples. Sem ambições de mando ou de glória.

Que ali está porque sente dever cumprir aquela missão militar, que é também e acima de tudo cívica.

Que não pensa um segundo sequer no simbolismo daquela presença, nem no significado histórico daquele momento.

Que, terminada a missão, regressa ao quartel, para voltar a ser o que era. Com a naturalidade de quem não reclama louros, nem aspira a celebridade.

À sua maneira, Salgueiro Maia deu expressão a um povo e a uma maneira de ser e de viver ao longo dos séculos. (…)

Salgueiro Maia foi o retrato desse povo, que é o que Portugal tem de melhor. (…)

Foi esse povo que fez Portugal. E, nele, os soldados de Portugal. Sem ele e eles os chefes mais ilustres não teriam triunfado, os políticos mais brilhantes não teriam vencido, os empreendedores mais visionários não teriam criado.”


Fonte: Edições Colibri, página no Facebook