quarta-feira, 24 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19714: Memórias de Gabú (José Saúde) (82): Recordando (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


Memórias de Gabu
Recordando

O tempo passava por cuidados intensivos. Sair para o mato impunha precaução, quer a missão passasse por mais uma patrulha às tabancas onde a finalidade era efetuar a inevitável incumbência pela então chamada “psicó”, ou para a proteção de uma coluna, ou para mais uma noite passada no mato a contar as estrelinhas, sendo a guerra feita pelos zumbidos dos mosquitos que não davam tréguas ao sossego do militar prontinho a dormir mas… acordado. 

Usufrui de profícuos conhecimentos obtidos em Penude, Lamego, Curso de Operações Especiais/Ranger, aquando a minha mobilização para a guerra acontecesse certamente jamais abdicaria do que me fora ensinado em pleno sopé da Serra das Meadas, a "bíblia sagrada" de todos os ranger’s. 

O curso como instruendo fora, para todos, literalmente penoso, sendo que na condição de instrutor readquiri uma outra bagagem, esta acrescida como fundamental no momento áureo em que a guerra era uma verdade indesmentível. Estávamos, digamos, no auge de uma peleja que não dava descanso e as nossas mobilizações invariavelmente assumidas como certezas absolutas. 

Havia preceitos, ordens e princípios básicos que impunham regras de autodefesa. Em Gabu conheci a realidade da guerrilha e aos poucos consegui introduzir no grupo a noção da responsabilidade. Uma veracidade que passava, naturalmente, pela preparação da saída. Nada de “baldas” e nem de facilitismos.

Ao cimo da parada do quartel em Nova Lamego, era comum o pessoal juntar-se de fronte a um casario com destinos diversos. O armazém do material de guerra ficava mesmo em frente. Ali o pessoal formava, distribuíam-se munições de entre outro material que porventura pudesse ser utilizado, organizavam-se as incumbências de cada militar, dirigiam-se umas palavras aos camaradas e lá partíamos para a forjada “paz” de um IN que não descurava um pequeno descuido do pessoal.

Um belo dia preparei a rapaziada, nada de gozos e nem tão-pouco falta de respeito, para um momento de todo impensável. Estávamos de partida para mais uma ida para o mato e por perto passava o capitão Rijo, comandante a nossa companhia, que esboçou a sua admiração com a inesperada postura do furriel.

Com o grupo formado e com o capitão Rijo a olhar a malta de soslaio, eis que solto um grito à ranger que se propagou exaustivamente por todo o recinto: dois passos em frente, bem trabalhados, os calcanhares e as solas dos pés a emitirem um som enorme, corpo hirto uma magistral paulada e do interior das minhas cordas vocais lá entoei “Vossa Excelência meu capitão dá-me licença que mande avançar o grupo!”.

Reparei que a sua primeira atitude foi de espanto. Ele que era capitão oriundo da GNR jamais lhe terá passado pela cabeça uma atitude tão autoritária de um mero furriel que entretanto levou o oficial a lisonjear-se com a bem-aventurada situação.

Lembro que a sua resposta à minha solicitação não foi imediata. Meditou e num curto espaço de segundos a sua resposta ao devolver-me a continência foi com a singela palavra “pode”.

A malta, sempre traquina, divertiu-se depois à fartazana com a “peça” que o furriel tinha feito ao capitão. Mas a “marca” estava dada para, em situações futuras, o capitão responder atempadamente ao monograma colorido de um ranger que se via a comandar um pelotão de valentes soldados.

Ali não existiam distinções, todos bebiam pelo mesmo cálice e comiam do mesmo prato. Um por todos, todos por um. Era assim a mensagem que diariamente proponha a uma rapaziada que ainda recordo com um respeito imenso.

Histórias avulsas, e sobretudo alegres, empreendidas no interior do arame farpado, mas com o devastador palco de guerra ali por perto.


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

Guiné 61/74 - P19713: Fotos à procura de... uma legenda (115): os nossos aposentos "bunkerizados"... com "climatizadores de pesadelos"!


Foto nº 1 > Guiné > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O alf mil at art Torcato Mendonça, ao centro, num dos abrigos subterrâneos do aquartelamento, onde as fotos das estrelas de cinema (,, "mulheres fatais" como Catherine Deneuve, por exemplo) ajudavam os jovens, nos seus verdes anos, a alimentar e a sublimar o ardente desejo... de viver (e sobreviver)!... Com Lisboa e o Porto, tão longe... e Bissau pelo meio, mas só para alguns privilegiados. Ah|, e ainda ficava longe, Mansambo, a 80 km, das garotas do Bataclã de Bafatá!... (*)

Foto (e legenda): © Torcato Mendonça (2006).  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça  & Camaradas da Guiné]


Foto nº 2 > Guiné > Região de Gabu > Nova La,mego > CCS/BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) > O alf mil SAM Virgílio Teixeira escrevendo uma carta à namorada, a Manuela, sua futura esposa e mãe dos seus filhos (, vd. retrato em cima da mesa de cabeceira, à esquerda)  no seu quarto, cuja decoração era igual a tantas outras naquele tempo e lugar... A G3 ficava em cima, pendurada na parede, ou ao lado da cama. 

Foto (e legenda): ©  Virgílio Teixeira (2019).  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça  & Camaradas da Guiné]


Foto nº 3 > Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > A estante do quarto (, de 3 x 2 m,) dos "Mórmones de Fulacunda": o Dino, o Omar, o Meira e o Lee. à esquerda e à direita, dois beliches (quatro camas). Foto do  álbum do José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) (**)

Foto (e legenda): © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Foto nº 4 > Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 4740 > 1973 > "Uma farra das NT"... O fotógrafo, o alf mil at inf Luís Mourato Oliveira,  é o segundo, a contar da esquerda para a direita

Foto (e legenda): © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Qual a diferença entre as duas primeiras fotos de cima, tiradas a cerca de 140 quilómetros de distância uma da outra, mas sensivelmente na mesma época  (1968)? Mansambo ficava a sul de Bambadinca, a meio caminho, na estrada Bambadinca - Xitole - Saltinho (c. 60 km).  O "campo fortificado de Mansambo", como lhe chamava a "Maria Turra"... Foi construído de raiz, a pá e pica, pelos bravos "Viriato" da CART 2339.

Em geral, os alferes milicianos partilhavam um quarto a três, os furriéis a cinco ou seis, nas sedes de Batalhão (Bambadinca, por exemplo, onde só os oficiais superiores e os capitães tinham direito a "quarto privativo")... O "povo", esse, dormia a granel...

Nas unidades de quadrícula, uns viviam em "bunkers" (ou melhor, "bu...rakos"), em abrigos subterrâneos (caso de Mansambo). Mas a decoração não variava muito: fotos de "garotas", "pinups", modelos fotográficos, artistas de cinema, em poses mais ou menos ousadas, tanto quanto a moral e os bons costumes o permitiam nessa época... Eróticas q.b., mas não nunca pornográficas (sexo explícito)... 

A foto nº 3  tem já cinco/seis anos de diferença, bem mais próximas do fim da guerra, c. 1973/74... Já o puritanismo de Salazar & Cerejeira estava a passar à História...  É do quarto (partilhado) do nosso camarada José Claudino da Silva, um dos quatro "mórmones de Fulacunda"... Surpreendentemente, era um aposentotado, minúsculo (, d e 3 x 2 m),  austero, puritano,  com dois  beliche (4 camas ), e um espécie de móvel encostado à parede, a servir de mesa de cabeceira  e estante, e onde ao que parece, só entravam as fotos... das castas... namoradas dos "mórmones" (**).

A foto nº 4 faz parte de um conjunto a que o fotógrafo chamou "farra das NT",   muito reveladores do universo concentracionário em que se vivia na Guiné, nos aquartelamentos e destacamentos das NT. "É a caserna na sua intimidade"...

A  CCAÇ 4740, era constituída por pessoal açoriano.  Centena e meia de homens, machos, na flor da idade, cheios de testosterona, partilhavam espaços reduzidos, geralmente sob a forma de toscos "bunkers", semi-enterrados, construídos de troncos de palmeira, chapa, bidões, terra e argamassa, e onde coabitavam com os bichos (mosquitos e demais insector, roedores, répteis) e a atmosfera era muitas vezes irrespirável, devido à multiciplicidade de cheiros,  à humidade, ao calor, à semi-obscuridade, à sujidade, ao pó ou à lama (conforme a estação do ano: época das chuvas ou época seca)... Noutros casos, eram verdadeiros "armazéns de depósito de material humano", com cobertura de chapa de zinco, onde era quase impossível permanecer durante o dia, devido à temperatura e humidade tropicais...

A ventoinha  era um luxo, só para alguns, e só durante escassas horas da noite, quando se ligava o gerador... Nestas "casernas do mato", os homens viviam, conviviam, comiam e dormiam quase sempre em tronco nu, de calções e chanatas.. O álcool, o tabaco e as cantorias, além das jogatanas de cartas, eram dos poucos escapes que a malta tinha nas "horas vagas"... Os dias sucediam-se aos dias, perdia-se a noção do tempo... Deixa-se crescer o bigode, contra os regulamentos, para se parecer mais bravo e macho.

No meio de toda esta promiscuidade, salvava-se a amizade, a solidariedade, a camaradagem... E cada companhia que chegava procurava melhorar, para si e para os vindouros, as condições de vida que encontrava... Se a guerra tivesse durado 100 anos, como alguns queriam, estou ciente que em Cufar já haveria hoje painéis solares, ar condicionado,   bar aberto e umas "ervas"... (E claro, militares de ambos os sexos, se bem que em aposentos separados; no nosso tempo, as únicas camaradas que tínhamos eram as enfermeiras paraquedistas, que causavam sempre algum alvoroço sempre que  vinham a "terra", isto é, à sede de algum batalhão, presenciei isso em Bambadinca...).

Temos, no nosso blogue, uma série sobre "Os Bu...rakos em que vivemos" que pode ser revisitada e que queremos retomar... Na realidade, não eram "bunkers" de cimento armado à prova de canhão s/r ou morteiro 120 (com raras exceções, como era o caso de Gandembel e de Guileje), mas verdadeiros "bu...rakos" a que  chamávamos pomposamente... "abrigos"... De Cafal Balanta a Mato Cão, de Mampatá a Banjara, da Ponte do rio Udunduma a Ponte Caium, de Sare Banda a Missirá, de Madina do Boé a Copá..., a Guiné era, toda ela, uma terra "es...bu...ra...ka...da". 

Os "posters" / cartazes / capas de revistas com "meninas" mais ou menos "despidas" ajudavam-nos, ao menos,  a "climatizar" os nossos pesadelos (***)..

Vá lá, caros/as leitores/as, arranjem as vossas legendas para estas fotos... dos nossos verdes anos, passados lá na Guiné, quando ela ainda era "verde e rubra. Tínhamos, muitos de nós, "aposentos bunkerizados", daí o necessário  recurso aos "climatizadores de pesadelos" (****)... LG
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Guiné 61/74 - P19712: Historiografia da presença portuguesa em África (160): Relatório para o Sr. Governador da Guiné, assinado em Buba, em 6 de dezembro de 1882, pelo Capitão Caetano Filipe de Sousa (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Agosto de 2018:

Queridos amigos,

Trata-se de uma documentação de valor histórico apreciável. Em diferentes peças, o leitor ficará ciente de que chegara a hora da decadência de Buba e a perda de influência do Rio Grande, guerras étnicas devastam o Forreá, captura-se gente, levam-se reféns. O secretário do Governo envia instruções a Caetano Filipe de Sousa para proceder a um diagnóstico da situação, importa a todo o transe abrir o eixo comercial entre Buba e a região do Futa, estabelecer tratados de paz, fazer retirar os Fulas-Pretos para o Corubal, atrair os chefes do Futa, tratar com deferência o chefe Mamadu Paté, dar presentes, entre outras questões de grande pertinência.

Em termos historiográficos, são peças singulares que dão conta de que no momento em que a colónia da Guiné se autonomiza o Forreá revela uma grande instabilidade, a que não é alheia a pressão dos franceses, eles estão altamente interessados em comprimir o território da colónia, como o comprovará a Convecção Luso-Francesa em 1886. O testemunho de Caetano Filipe de Sousa fala por si.

Um abraço do
Mário


Relatório para o Sr. Governador da Guiné, assinado em Buba, em 6 de dezembro de 1882, pelo Capitão Caetano Filipe de Sousa (3)

Beja Santos

Vamos hoje concluir o resumo do relatório de Caetano Filipe de Sousa, capitão e antigo administrador de Buba, escrito em Buba, em 25 de novembro de 1882 e que está depositado nos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa. Depois de uma longa dissertação sobre os Fulas-Forros e os Fulas-Pretos, prossegue o seu historial do seguinte modo:

“O primeiro chefe a quem os Fulas-Forros tiveram chamava-se Sambali. Todo o chão de Bolola, até 1869, era habitado pelos Beafadas, alguns Fulas-Pretos, antigos aliados dos Fulas-Forros e a pequena tribo Fula-Forro com os seus novos escravos. Um dos chefes dos Beafadas declarou guerra ao seu chefe principal e para o ajudar chamou Sambali. O chefe rebelde venceu a questão, porém, o seu partido entre os Beafadas era pequeníssimo, e Sambali aproveitou esta circunstância, declarou então guerra ao único chefe dos Beafadas que havia em Bolola, isto é, o chão que então era habitado pelos cativos, segundo as suas tradições ficavam entregues aos Forros. Sambali, logo que se estabeleceu, mostrou desejo de estar em boas relações com o Governo Português, realizando-se entre ele e o Governador um convénio que teve lugar no cais de Bolola, no Rio Grande, em 1869, e para cujo fim ali foi a escuna Bissau, havendo a seu bordo, além do Governador do distrito, os principais negociantes portugueses de Bolama e Rio Grande. Este convénio foi realizado com grande pompa que ainda hoje entre gentios e civilizados dá pelo nome de A Paz de Bolola.

Os Fulas-Pretos que habitavam no Forreá julgaram-se tributários dos Forros e assim estiveram sem se incomodar até 1879, data da primeira guerra entre eles. Os Fulas-Pretos julgaram-se com direito a possuir o Forreá porque o seu chefe descende por parte do pai do chefe principal dos Beafadas, e que tendo este perdido o Forreá, eles o pretendem como sua legítima. Há já três anos que esta guerra existe e eu estou convicto que ela não acaba tão depressa, e até mesmo creio que, à hora em que estou escrevendo este pequeno relatório, estão-se preparando nos limites do Forreá e Cadi grandes massas de homens para se baterem uns contra os outros.

O chefe Mamadu Paté recebeu toda a sua família, excepto um sobrinho de 10 anos de idade, que, por enquanto, não se sabe para onde foi levado; mostrou-se satisfeito e agradecido ao Governo o ter-lhe restituído a sua família, estabeleceu de novo a sua tabanca em Bolola.

O Bacari Quidali, que ainda está na praça, promete fazer encaminhar o comércio do Futa, Timbo e Labé para esta praça logo que os Fulas-Pretos retirem do Forreá.

Neste espírito também se me oferece dizer alguma coisa: o Bacari Quidali chamou em tempo gente do Futa para o ajudar numa guerra que tentava fazer contra os Fulas-Pretos no Corubal, Badora e Firdu, esta gente está a caminho do Forreá, isto é, está reunida em Cadé sobre as ordens do chefe do Futa. Os portadores deste chefe precisam da sua ordem para cumprimentar o Bacari Quidali na sua tabanca, porém, eu, sabedor disto, mandei ali portadores meus a comunicar-lhes para que venham a Buba, quero orientá-los num tratado de paz que acaba de ser realizado entre o Governo e os Fulas-Forros; depois, avisá-los e aconselhá-los a que não prossigam no seu propósito de guerrear os Fulas-Pretos, mas creio nada conseguir porquanto o chefe do Futa chamou para o seu partido a gente do chefe de Timbo, e este mandou o seu próprio filho, de modo que o chefe do Futa não desistirá para não o acusarem de cobarde, como entre eles é costume.

O Bacari Quidali, estou certo, não andou nisto de má-fé, todavia, achava-se já comprometido com o chefe do Futa e agora não sabe o modo de sair desse compromisso, por esta forma os caminhos do Futa para Buba continuarão a estar fechados e apresto-me a dizer a V. Ex.ª que teremos de nos limitar, por enquanto, ao comércio do Forreá, que é do cuidado de não se ofender directa ou indirectamente o Bacari Quidali, cujo melindre é bastante apurado.

Em Buba, não vejo mais que uma pessoa que deseja ir a Futa (pondo de parte o meu nome) e este indivíduo chama-se Pedro Lopes e reside nesta praça. Pela sua ida pede mil réis, acho porém que este sujeito não pode servir para ser representante do Governo aos chefes de Futa e Timbo.

Os Mandingas residentes na praça vivem bem com os Fulas-Pretos e Fulas-Forros, porém, outro tanto não sucede com os Futa-Fulas por serem inimigos, noto mesmo que sempre que lhes falo deles prometem ser implacáveis.

Finalmente diria a V. Ex.ª que me parece que o meio mais pronto para fazer chegar ao mercado de rua o comércio do Futa está em manter as melhores relações de amizade com o chefe daquela tribo. Este chefe é bastante moderado, pouco exigente e mostra simpatia pelos brancos (as pessoas civilizadas, seja qual for a sua cor, são designados pelo gentio pelo nome de Brancos).

Para conseguirmos a sua amizade, é necessário presentes anualmente e mesmo em épocas em que ele venha à praça. Calculo, para estes presentes, a soma 1.200$000 e nesta importância é incluído também o presente que costumamos dar ao Bacari Quidali. Estes presentes, bem entendido, não é para que nos não ataquem a praça de Buba, porque se o tentassem sentiriam os efeitos, Buba propriamente dita está bem defendida”.

Após a descrição dos efetivos na praça e a possibilidade de proteger qualquer feitoria do Rio Grande e depois ter dado informações que no Porto de Buba há uma lancha a vapor ao serviço da praça e do Rio Grande, despede-se nos seguintes termos:

“Com estes elementos, as feitorias têm mais alguma confiança na protecção do Governo, garantem que os chefes do Futa e Forreá façam com que o comércio dali se dirija a Buba e a seguir com que os caminhos do Forreá estejam abertos aos negociantes do Futa, sem que estes receiem perder as suas mercadorias. É este o exemplo que nos é dado pelo Governo Francês, é assim que pratica para com as tribos do rio Nuñes e para com a praça de Timbo”.

Procede a uma larga referência às taxas e impostos municipais e despede-se com a saudação: Deus guarde a Vossa Excelência, Buba, 25 de Novembro de 1882, assina e adiante pode ler-se que está conforme, e temos a data de Bolama, 4 de maio de 1883, Caetano Filipe de Sousa.



Imagens do relatório de Caetano Filipe de Sousa, constante dos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa, com a devida vénia.


Antigo Palácio do Governador, Ilha de Bubaque

Fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.
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Nota do editor

Postes anteriores de:

10 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19665: Historiografia da presença portuguesa em África (157): Relatório para o Sr. Governador da Guiné, assinado em Buba, em 6 de dezembro de 1882, pelo Capitão Caetano Filipe de Sousa (1) (Mário Beja Santos)
e
17 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19688: Historiografia da presença portuguesa em África (158): Relatório para o Sr. Governador da Guiné, assinado em Buba, em 6 de dezembro de 1882, pelo Capitão Caetano Filipe de Sousa (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19711: Parabéns a você (1609): David Guimarães, ex-Fur Mil Art MA da CART 2716 (Guiné, 1970/72)

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Nota do editor

Último poste da série de 21 de Abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19703: Parabéns a você (1608): António Branquinho, ex-Fur Mil Inf do Pel Caç Nat 63 (Guiné, 1969/71)

terça-feira, 23 de abril de 2019

Guiné 671/74 - P19710: Jorge Araújo: Ensaio sobre as mortes por afogamento no CTIG: Parte II - Os três acidentes na hidrografia guineense


Foto nº 1 > Rio Cacheu > Fonte: http://www.gbissau.org/wp2013/blog/2014/04/25/as-tarrafes-do-rio-cacheu-2/ (com a devida vénia).




Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974); coeditor do blogue desde março de 2018


ENSAIO SOBRE AS MORTES POR AFOGAMENTO DE MILITARES DO EXÉRCITO DURANTE A GUERRA NO CTIG (1963-1974): Parte II - OS TRÊS ACIDENTES NA HIDROGRAFIA DA GUINÉ - 



1.  INTRODUÇÃO

Na sequência do texto de apresentação deste novo projecto (P19679) (*), estruturado em quatro partes, titulado de "ensaio" sobre o número de militares do Exército que morreram afogados nos diferentes planos de água existentes na Guiné, durante o conflito armado (1963-1974), acrescentamos que esta questão surge do interesse pessoal pelo seu aprofundamento, onde, na altura própria, teremos a oportunidade de recordar uma experiência única, muitíssimo emotiva e impregnada de uma dor imensa, que teima em não passar, vivida por mim no Rio Geba, em 10Ago1972, acidente considerado como um dos três mais graves registados pelas NT na rede hidrográfica da Guine, durante o período em análise. 

Por outro lado, considerando que estão decorridas mais de quatro décadas desde o seu termo, é de acolher o conceito de que o actual quadro historiográfico, onde consta o que aconteceu, o que foi feito e o que foi dito, muito deve aos textos elaborados, na primeira pessoa, pelos ex-combatentes, ao longo dos últimos quinze anos [faz dia 23], de que são prova pública os cerca de vinte mil postes partilhados na «Tabanca Grande» pelos seus membros. 

Acreditamos que esse quadro vai continuar a ser alterado/actualizado/alterado com a adição de outras "memórias" ainda não divulgadas.  Parabéns por tudo isso… e pela OBRA já construída… PARABÉNS À TABANCA!

Entretanto, os resultados que iremos dando conta ao longo dos diferentes fragmentos são corolário da consulta a diferentes fontes "Oficiais", onde o tema foi tratado, mas não serão as únicas, pois continuaremos a alargar os campos de consulta. Pelo exposto acima admitimos a possibilidade dos "casos da investigação" já coletados poderem vir a ser alterados/corrigidos por via da identificação de situações particulares que já estejam, ou não, consideradas. Por outro lado, quanto aos valores já apurados, procederemos à realização de uma análise demográfica, quantitativa e qualitativa. Essa análise, que terá uma dimensão global, apresentar-se-á, ainda, estratificada em dois grupos (amostras), como são os casos dos "corpos recuperados" e "não recuperados" e as suas respectivas Unidades.

Por razões metodológicas e estruturais do desenvolvimento do trabalho, a análise estatística apresentada no primeiro fragmento foi organizada exclusivamente por quadros de distribuição de frequências, simples e acumuladas, conforme se indicou em cada um dos títulos. Em cada um desses quadros relatam-se os valores quantitativos dos diferentes elementos das variáveis categóricas ou quantitativas relacionadas, tendo em consideração os objectivos que cada contexto encerra.
No presente fragmento, esses mesmos quadros terão agora uma representação gráfica de distribuição de frequências, simples e acumuladas, expressa através de gráficos de barras ou de gráficos circulares.

Por último, serão descritas as causas, factos e resultados que fazem parte da "história" de cada um dos três principais acidentes na hidrografia da Guiné, como foram classificados os casos do Rio Cacheu, em 05Jan65, durante a «Operação Panóplia»; no Rio Corubal, em 06Fev69, em Ché-Che, e em 10Ago72, no Rio Geba, no Xime.

Cada uma destas ocorrências será tratada individualmente e em fragmento separado.

2.  ANÁLISE DEMOGRÁFICA DAS MORTES POR AFOGAMENTO DE MILITARES DO EXÉRCITO DURANTE A GUERRA NO CTIG (1963-74)



Gráfico 1 – Distribuição de frequências segundo a variável número de mortes por afogamento (1963-1974)  (n=144 )
 

Recordamos que a análise demográfica que comporta esta investigação, e as variáveis com ela relacionada, incidiu, como referimos no ponto anterior, sobre os casos das mortes por afogamento de militares do Exército durante a guerra no CTIG (1963-1974), identificados nos "Dados Oficiais" publicados pelo Estado-Maior do Exército, elaborados pela Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974), 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II, Guiné; Livros 1 e 2; 1.ª Edição, Lisboa (2001).

O estudo mostra que dos indivíduos que constituíram a população deste estudo, em 81 (56.2%) dos casos de mortes por afogamento os corpos foram recuperados, enquanto 63 casos (43.8%) tal não se concretizou. 


Gráfico 2 – Distribuição de frequências segundo a variável de mortes por ano  (n=144)

O estudo mostra que durante o período em análise (1963-1974) em todos os anos ocorreram mortes por afogamento. Os valores mais baixos foram verificados em 1963 (n=3), 1970 (n=4) e 1974 (n=5). Durante os doze anos em que decorreu o conflito, por quatro vezes (1/3) o número de mortes por afogamento ultrapassou a dezena de casos. Para estes valores muito contribuíram os "acidentes" nos rios da Guiné – Cacheu, Corubal e Geba – como foram os três casos seguintes:

(i) em 05Jan1965, no Rio Cacheu, durante a «Operação Panóplia», com oito mortes do Pel Mort 980;

(ii) em 06Fev1969, no Rio Corubal, em Ché-Che, com quarenta e sete mortes, pertencentes à CCaç 1790 (n=26), CCaç 2495 (n=19) e ao PMil 149 (n=2);

(iii) em 10Ago1972, no Rio Geba, em Xime, com três mortes da CArt 3494.



Gráfico 3 – Distribuição de frequências segundo a variável "Posto" (n=144)


No que concerne à distribuição de frequências relativas ao "Posto" militar dos náufragos, durante o período em análise (1963-1974), constata-se que 113 (78.4%) eram soldados; 22 (15.3%) eram 1.ºs cabos; 7 (4.9%) eram furriéis; 1 (0.7%) era 2.º sargento e 1 (0.7%) era major.


3. OS TRÊS ACIDENTES NOS RIOS DA GUINÉ: CONTEXTO DE CADA UMA DAS OCORRÊNCIA

Para a elaboração deste ponto muito contribuiu o vasto espólio de informação disponível no nosso blogue. Contudo, as maiores dificuldades foram sentidas na obtenção de relatos relacionados com o acidente ocorrido no Rio Cacheu, em 05Jan1965, envolvendo o PMort 980, uma vez que esta unidade não consta no índice de "marcadores". Mas conseguimo-las ultrapassar após termos localizado o P3313 (de 14Out2008), um trabalho do camarada Virgílio Briote, a quem desde já agradeço.

Com efeito, a sequência da apresentação será cronológica com início no acidente no Rio Cacheu, seguido do ocorrido no Rio Corubal e, finalmente, o caso no Rio Geba, conforme se dá conta no gráfico abaixo (elaborado a partir do gráfico 2). 



Gráfico 4 – Identificação dos anos em que ocorreram os acidentes nos rios da Guiné (n=144)


3.1. O CASO NO RIO CACHEU EM 05JAN1965 = O PRIMEIRO

Foto 1 (Rio Cacheu) [imagem acima].. Este rio encontra-se na região norte da Guiné, perto da fronteira com o Senegal. O rio tem 150 kms de extensão, em grande parte é navegável e o seu caudal aumenta drasticamente durante a estação chuvosa, entre Maio e Novembro. O seu estuário é fascinante. A grande extensão do sistema de mangais fez com esta área se tenha tornado no Parque Natural dos Tarrafes do Rio Cacheu. Apesar de ser uma área muito interessante, não é muito frequentada por turistas. No entanto, é um porto seguro para muitos animais como crocodilos, hipopótamos, golfinhos, peixes-boi, gazelas pintadas, macacos verdes e local de acolhimento periódico de aves migratórias.


O CONTEXTO DA «OPERAÇÃO PANÓPLIA» EM 05JAN1965

No âmbito das responsabilidades que recebera de Bissau, após a sua participação na «Operação Tridente», o Batalhão de Cavalaria 490 [BCav 490], sob o comando do TCor Cav Fernando José Pereira Marques Cavaleiro (1917-2012] segue para Farim, em 23MAI64, com a superior missão de preparar a organização, deslocamento e instalação das forças no «Sector 2», que abrangia os subsectores de Cuntima, Jumbembem, Bigene e Farim (a sede), aos quais se juntou, em 24Jun64, o de Binta, então criado.

Contemplado no calendário das acções previstas para aquele Sector, foi planeada para o dia 05Jan1965, 3.ª feira, a «Operação Panóplia», envolvendo as forças da CCaç 461, CCaç 675, CCav 487 e PMort 980, com o objectivo de agir sobre as Tabancas de Sambuiá, Malibolom, Ujeque e Talicó, e respectivos itinerários circunvolventes.

Como apoio logístico às forças terrestres, este contingente contou com a participação da Lancha de Fiscalização Grande [LFG] «Orion», sob o comando do 1Ten Rui Vasco de Vasconcelos e Sá Vaz (comissão: 24Out64/03Dez66), e o oficial Imediato da Reserva Naval; 2Ten RN Virgílio Cabrita da Silva, 6.º CEORN (comissão: 24Out64/02Jun66).



Foto 2 – A LFG «Orion» no Rio Cacheu. Esta Lancha de Fiscalização deixou Lisboa em 01Dez64 com destino a Bissau onde chegou a 13 do mesmo mês, depois de ter escalado os portos do Funchal, S. Vicente de Cabo Verde e Praia. Até ao final do ano de 1964 esteve em patrulha e fiscalização no Rio Cacheu. Fonte:  blogue Reserna Naval, do nosso camarada Manuel Lema Santos, com a devida vénia

Durante o desenrolar da «Operação Panóplia», aconteceu um acidente "grave" no Rio Cacheu, que teve como consequência a morte, por afogamento, de oito militares do Pel Mort 980. Como instrumento de avaliação daquela ocorrência, o Cmdt desta força, Alf Inf. José Pedro Cruz elaborou um «Relatório", que abaixo se reproduz, e cujo original faz parte da História do Batalhão de Cavalaria 490, pp 66-67.

Relatório da ocorrência elaborado pelo Cmdt do PMort 980 – Alf José Pedro Cruz
O PMort 980 participava na «Operação Panóplia» que se realizava na Península de Sambuiá, entre o Rio Cacheu e o Rio Talicó.

Para dar cumprimento à missão, o PMort 980 embarcou na LFG [Lancha de Fiscalização Grande] «Orion» às 05h00 como estava previsto e foi transportado por este meio na direcção E-W pelo Rio Cacheu. Como fora planeado, o navio passou pelo local de desembarque, local esse que fora reconhecido na véspera, até um ponto antes de Bigene. Aí, o navio inverteu a marcha e, como também fora planeado, foi então que o PMort 980 desembarcou para o bote de borracha pertencente ao Exército no qual se faria o desembarque na Península de Sambuiá.

Embarcaram para o barco de borracha do Exército 25 militares entre os quais se encontrava o Cmdt do PMort 980 [Alf Inf José Pedro Cruz]. Embarcámos também para esse barco todo o material e armamento necessário para se realizar o desembarque, Como seria mais seguro não embarcaram todos os homens nesse barco, que tem uma lotação aproximada de 30 homens, tendo o Comandante do navio posto à nossa disposição um barco de borracha pertencente à Marinha, no qual embarcaram simultaneamente os restantes homens do PMort (oito), assim como o restante material. Os dois barcos seriam rebocados pela «Orion», de maneira a estarem permanentemente encobertos das vistas de possíveis sentinelas existentes na Península onde se efectuaria o desembarque, junto ao Rio Cacheu. Segundo notícias, essas sentinelas existiam. Os barcos onde eram transportados os homens do PMort 980 seriam afastados da «Orion» ao passarmos pelo local onde se realizaria o desembarque.

Antes do navio se pôr em marcha, foi passado um cabo por baixo do barco onde eram transportados os 25 militares, amarrado a um ferro existente no fundo do mesmo.

O navio recomeçou a marcha e, depois de ter navegado durante alguns minutos, o cabo que fora passado para rebocar o barco maior, rebentou pelo que o navio se afastou um pouco. Foi posto o motor do barco a funcionar e a recolagem fez-se sem qualquer incidente ou dificuldade. Foi então que se passou um cabo mais forte para dentro do barco de borracha, ficando os próprios homens [militares] que o tripulavam a agarrar nesse cabo, sendo nessa altura avisado pelo Cmdt da «Orion» e depois por mim [Cmdt do PMort] que, em caso de emergência, o cabo devia ser largado imediatamente. Foi nessa altura que eu [Cmdt do PMort] chamei a atenção dos homens [militares] para a conveniência de se chegarem o mais possível para a ré, pois o barco rebocado teria a tendência a baixar a proa. Os homens [militares] assim fizeram.

A marcha recomeçou, não podendo eu [Cmdt do PMort] avaliar a velocidade da «Orion», pois ela, necessariamente, difere bastante (aparentemente), devido às diferenças de tamanho da «Orion» e do barco rebocado. Depois de se navegar nestas condições alguns metros, notei que o barco de borracha deixava entrar água pela proa. Coisa sem importância, pois isso seria natural devido à ondulação provocada pela deslocação do navio rebocador [a «Orion»].

Foi nesse momento que à ré do barco de borracha alguns homens [militares] se levantaram, talvez assustados pela água que saltava para dentro do barco. Mandei-os sentar imediatamente, mas o barco já se encontrava desequilibrado de um dos lados e, sem nos dar tempo a qualquer reacção, afundou-se rapidamente. Alguns homens [militares] que se encontravam dentro do barco sinistrado não sabiam nadar e, então, o pânico foi enorme.

Nadei para junto do barco que se encontrava voltado e icei-me para ele. Seguidamente e auxiliado por um soldado, fui aconselhando calma e ajudando alguns homens [militares] a içarem-se para o barco voltado. Foi feito todo o possível para salvar o maior número de homens. Alguns não chegaram a vir à superfície uma única vez, talvez devido ao grande peso do equipamento, armamento e munições. Entre estes, dois eram bons nadadores.

Verifiquei então que se aproximava rapidamente um barco de borracha da Marinha tripulado pelo próprio Cmdt da «Orion» [1TEN Rui Sá Vaz], a qual se encontrava parada, afastada do barco sinistrado cerca de 80 metros. Depois de se efectuar o transporte de todos os sobreviventes para bordo do navio, efectuaram-se pesquisas em todos os sentidos e recolheu-se todo o material que se encontrava a boiar.

Verifiquei imediatamente que tinham desaparecido no desastre alguns homens [militares] do meu PMort 980 e variadíssimo material.

Ao subir para a «Orion» fui informado que dois homens [militares] se salvaram por terem ficado agarrados ao cabo do reboque, o que prova que o mesmo cabo não foi largado como foi aconselhado para o fazerem em caso de emergência.



Foto 3 - Citação: (s.d.), "Guerra da Guiné: exército português em operações.", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_114441, com a devida vénia.


Conclusões:

1 – O desastre [acidente] deu-se, em grande parte, devido ao pânico de que os homens [militares] se apossaram.

2 – O pânico foi devido à entrada da água pela proa do barco. Pânico natural, por muitos não saberem nadar.

3 – Que a água entrou devido à ondulação provocada pelo deslocamento do barco rebocador e ainda devido à tendência do barco em baixar a proa, visto o cabo do reboque não ter sido passado por baixo do barco mas sim por cima, indo agarrado pelos próprios tripulantes do barco rebocado.

Recomendações:

1 – Tanto quanto possível evitar, nas operações em rios, homens [militares] que não saibam nadar.

2 – Nunca rebocar um barco com o cabo de reboque passado por cima do barco rebocado e agarrado pelos próprios homens do mesmo barco.

3 – Sempre que possível, evitar reboques por meio de navio de peso elevado e de elevada velocidade.

Comentário do Cmdt do BCav 490 – TCor Fernando Cavaleiro

Concordo com as conclusões e recomendações apresentadas. N que respeita à escolha dos homens [militares] que saibam nadar, creio que infelizmente é bastante teórica pois na maior parte dos casos terão que ser utilizados os efectivos disponíveis. Aliás, não basta saber nadar, pois como se verificou dois dos desaparecidos eram até bons nadadores. A única solução parece-me que será dotar as Unidades de meios próprios para desembarques.

No caso presente é possível que o acidente se tivesse evitado se não tivesse havido necessidade de tomar medidas motivadas pela grande vulnerabilidade do barco de borracha.

O barco tem sido utilizado inúmeras vezes, nomeadamente no percurso Farim-Binta e na travessia do rio Cacheu em Farim, deslocando-se pelos próprios meios e transportando até cargas mais elevadas, sem que a sua estabilidade desse lugar a reparos.

Quartel em Farim, 10 de Janeiro de 1965.

O Comandante do BCav 490, Fernando Cavaleiro


Relatório da ocorrência elaborado pelo Cmdt do PMort 980 – Alf José Pedro Cruz



Incluído na História da Unidade do Batalhão de Cavalaria 490
NOTA FINAL:
A missão definida para a «Operação Panóplia» prosseguiu, dela fazendo parte as restantes forças mobilizadas: CCaç 461, CCaç 675 e CCav 487.

Continua…
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Fontes consultadas:
 Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 7.º Volume; Fichas das Unidades; Tomo II; Guiné; 1.ª edição, Lisboa (2002); pp 253-254.

Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro 1; 1.ª edição, Lisboa (2001); pp 23-569.

Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro 2; 1.ª edição, Lisboa (2001); pp 23-304.

Outras: as referidas em cada caso.

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

21ABR2019.
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Guiné 61/74 - P19709: Estórias avulsas (94): Coitado do meu primo Lino... ou um regresso às memórias da Páscoa da minha infância (Valdemar Queiroz)



A Casa da minha aavó Maria (que data de 1976)


A casa da minha avó Maria, em ruínas (1994)


Fotos (e legendas): © Valdemar Queiroz (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Mensagem do  Valdemar Queiroz [ex-fur mil, CART 2479 /CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70]:


Date: sábado, 20/04/2019 à(s) 01:27
Subject: Coitado do meu primo Lino


Quando chega Páscoa,  lembro-me sempre do meu primo Lino. Coitado do meu primo Lino.

A casa da minha avó Maria ficava à borda da estrada principal. Havia pouco espaço para espalhar rosmaninho e alecrim, no chão, até à estrada, mas o sacristão sabia que a casa da minha avó Maria queria receber a Cruz do Senhor na visita da Páscoa e que lá haveria umas moedas para a côngrua do senhor padre da aldeia.

A minha avó Maria já tinha posto numa pequena salva de prata uma moeda de 25 tostões (2$50) coberta com um paninho bordado. Uma pequena importância guardada para este dia que o meu primo Lino sabia lá se encontrar e antes que o sacristão a recolhesse ele tirou-a e escondeu no bolso do blusão.

O sacristão estranhou não haver nenhuma oferenda e nem sequer moedas na salva de prata e, embora, tivesse um olhar interrogativo para minha avó, permanecemos ajoelhados de olhos cerrados..

Pouco tempo depois, já o meu primo Lino corria para a Loja do tio Pinto, pra comprar lápis de chocolate e uns rebuçados de bonecos da bola. Pagar seis tostões ($60) com uma moeda de 2$50 seria a mesma coisa que agora pagar um café com 20 €, com a diferença que o Lino teria muita dificuldade em ter uma moeda de vinte e cinco tostões para gastar em guloseimas.

O tio Pinto não lhe vendeu nada e disse-lhe que queria falar com a sua avó. O Lino voltou, a correr, a pôr a moeda no mesmo sítio de onde a tirou.

A minha avó Maria nunca percebeu por o sacristão não ter levado a moeda. E eu nunca soube se o tio Pinto chegou a falar com a minha avó.

O meu primo Lino foi paraquedista na FAP e arranjou lá um problema com pena de prisão. Fugiu para as Ilhas Canárias e alistou-se na Legião Espanhola. Já lá está há mais de 50 anos.

Coitado do meu primo Lino, nunca mais soube dele.

Valdemar Queiroz
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Nota do editor:

Último poste da série > 4 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19549: Estórias avulsas (93): Histórias do vôvô-Zé - As nossas andorinhas (José Ferreira da Silva, ex-Fur Mil Op Esp)

segunda-feira, 22 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19708: Manuscrito(s) (Luís Graça) (154): Viva o compasso pascal em visita à Tabanca de Candoz


Tabanca de Candoz. Foto de LG (2011)




Viva o compasso pascal
na visita à Tabanca de Candoz!

Mais um ano, mais uma visita
Deste compasso pascal,
É uma festa bem bonita,
E que nunca é igual. 

E que nunca é igual
Logo vem outro, se falta algum,
Renova-se o pessoal,
Que aqui somos todos por um.

Que aqui somos todos por um,
Na alegria ou na tristeza,
Na fartura ou no jejum,
Cabendo todos à mesa.

Cabendo todos à mesa,
Onde não falta o anho assado,
Nesta casa portuguesa,
Onde honramos o passado.

Onde honramos o passado,
O presente e o futuro,
Se alguém está adoentado,
Tem aqui um porto seguro.

Tem aqui um porto seguro,
Damos valor à amizade,
Às vezes o rosto é duro,
Mas o resto é humildade.

Mas o resto é humildade,
Viva o compasso pascal,
E a nossa fraternidade!... 

Boa Páscoa, pessoal! 

Boa Páscoa, pessoal,
Boa saúde e longa vida,
À Ti Nitas, em especial,
Que nos é muito querida!

Quinta de Candoz, 
segunda feira de Páscoa,

22 de abril de 2019
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Nota do editor:

Último poste da série > 19 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19603: Manuscrito(s) (Luís Graça (153): Lembrando hoje o pai, o meu, o teu, o nosso pai...

Guiné 61/74 - P19707: (In)citações (129): Feliz e santa Páscoa, com um abraço transatântico do nosso camarada da diáspora luso-americana José Câmara (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73)

1. Mensagem do nosso camarada da diáspora luso-americana José Câmara (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de ontem, di 21,  16h49:

Caros a migos e familiares,

Ao longo dos anos, nos trilhos das nossas vidas, fomos presenteados com o nosso crescimento para a vida de homens, com a formação das nossas famílias, com a responsabilidade de sermos pais, com o dever sublime de transformarmos a sociedade em que vivemos num mundo melhor.

Nesta quadra Pascal podemos recordar os nossos primeiros passos na Mata dos Madeiros, a manifestaçåo de solidariedade e amizade ao Fur Mil Fernando Silva pelo seu casamento, o acidente do nosso malogrado Manuel Veríssimo de Oliveira. E muito mais!

O Cordeiro Pascal, símbolo da Páscoa, a mais importante manifestação de fé no quadro liturgico das famílias açorianas, porventura de Portugal, não se come nem se bebe. Ele sente-se com a alma, com o coração. Para os crentes Deus é a Vida a Ressurreição.

Nós podemos estar desencorajados pela violência que grassa um pouco pelo mundo, pela falta de cuidados ambientais que atingirão a vivência das gerações futuras. Também podemo-ns sentir desencorajados pela falta de diálogo nos diversos sistemas políticos, pelo divisionismo que isso cria entre os cidadãos, pela separaçåo volenta das famílias, pela fome que graça pelo mundo. Que dizer das mortes provocadas pela droga, flagelo que mais atinge a nossa juventude? Mas nem tudo está perdido. Esperança da Vida, Jesus ressuscitou dos mortos.

Na Ressurreição de Jesus temos o exemplo que tudo é possível se soubermos ser fortes nos únicos direitos que Ele, na sua infinita bondade, nos legou: amar, respeitar, cumprir.

Que todos vós tenham uma Feliz e Santa Páscoa.

Abraço transatlântico,

José Câmara
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P19706: Notas de leitura (1171): Um luso-cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Novembro de 2016:

Queridos amigos,

Prossegue a análise da tese de doutoramento de Benjamim Pinto Bull sobre a obra de Fausto Duarte.

Como se recordam, Benjamim Pinto Bull foi o único dirigente nacionalista recebido por Salazar, Pinto Bull era o líder da FLING, organização que aceitou fazer parte de um governo de transição, em 1963. Como escreveu o embaixador Luís Gonzaga Ferreira, cônsul em Dakar, montou-se a Operação Camaleão, Silva Cunha e Pinto Bull, entre outros, estavam em Bissau, a aguardar uma declaração pública de Salazar sobre política ultramarina. Para surpresa de todos, Salazar definiu uma linha de intransigência onde não sabia uma governação com a FLING.
São coisas da história.

Pinto Bull veio a morrer em Lisboa de acidente rodoviário.

Um abraço do
Mário


Um luso-cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné (2)

Beja Santos

Fausto Duarte pertence à vasta lista de escritores, divulgadores e investigadores injustamente esquecidos. Homem de uma cultura medularmente europeia, orgulhava-se das suas origens cabo-verdianas e vai revelar-se como o nome mais sonante da literatura colonial guineense e o investigador e divulgador de mérito das coisas guineenses. Continuamos a abordar a tese de doutoramento de Benjamim Pinto Bull sobre a obra de Fausto Duarte.

Torna-se conhecido em Portugal quando o seu romance "Auá" ganha o primeiro prémio da literatura colonial, em 1934. Como se disse em texto anterior, o tema do romance é um conflito permanente entre duas civilizações, conflito que é protagonizado por Malan, um jovem Fula que trabalha em Bissau como criado, e Abdulai que permanece enraizado nas suas tradições e convicções. Malan é um admirador de tudo quanto fazem os brancos e orgulha-se de oferecer a Auá novas lembranças compradas nas lojas frequentadas pelos brancos, em Bissau, como sejam lenços e pulseiras, e não se esquece de juntar folhas de tabaco e cola para conquistar a simpatia da família da Auá. A vestimenta de Malan é também esclarecedora: “Tinha na sua bagagem um belo par de sapatos que o administrador lhe oferecera. Sobre a sua camisa, pendia um amuleto em prata, contendo um versículo do Alcorão”. Em Fausto Duarte pareciam convergir estas suas forças, a Europa e África, trata-se de uma tensão que perpassa toda a sua obra literária.

Voltando a Auá, todos os Fulas da tabanca criticam Ançatu que, desprezando a lei muçulmana, aceitou não somente viver com um funcionário de alfândega, um português branco, e de ter dele um filho. Auá também vive dividida, sente o choque das duas civilizações. Dividida entre Abdulai, jovem Fula que ficou na aldeia e que lhe oferece presentes genuinamente africanos; e Malan, seu noivo, que lhe envia lembranças fabricadas pelos brancos. E Fausto Duarte escreve: “Sentia uma invencível inclinação por Abdulai, um moço Fula que habitava ali próximo, em Saré-Boilela, e que lhe trazia mel de abelhas bravas e leite coalhado em boas cabaças… Era, senão com desdém, pelo menos com indiferença que, de vez em quando, recebia de Bissau alguns presentes enviados por Malan, que se mesclara no convívio permanente dos brancos do governo”. Malan irá novamente trabalhar em Bissau, quando regressa à sua aldeia para se casar é já em desenraizado, um abismo separa os seus valores dos da aldeia, então decide emigrar para Dakar. Aqui sente o aguilhão da nostalgia.

Aquilino Ribeiro, no seu prefácio, exalta o romance Auá, é fulminante: “Está dito, o primeiro que viu a Guiné foi Nuno Tristão, o segundo o autor de Auá”. Na introdução, muito didaticamente, Fausto Duarte contextualiza a cultura dos Fulas à luz dos conhecimentos da época e trata o seu livro como um documentário etnográfico, um novo capítulo de psicologia indígena. Mas o contraste vem na escrita, Fausto Duarte é um homem de cultura europeia com uma testa da sua prosa inequívoca:

“Era meio-dia quando a camioneta chegou a Nhacra. As águas tranquilas do Impernal acariciando o debrum da paisagem dormente, anquilosada pelo sol adusto, áscua viva que se reflectia na opacidade plúmbea dos céus, espreguiçavam em torcicolos ocultando-se entre o tufo emaranhado dos mangais. A vazante tinha posto a descoberto a orla mádida e lamacenta do rio, e uma variedade abjecta de moluscos deslocava-se sobre a terra lodosa, aquecendo-se ao calor estuante de Novembro”.

Prosa mais naturalista não pode haver. A crítica literária do tempo embandeirou em arco com o romance Auá: “O primeiro grande romance português inspirado em motivos coloniais”; “A arquitectura da obra é um sólido equilíbrio e a cena do conselho dos anciãos coroa-se como cúpula magnífica”; “O escritor que entre nós melhor sabe traduzir o profundo mistério da alma negra”.

O romance conheceu três edições e hoje praticamente ninguém fala dele.

Passemos agora para a conferência proferida por Fausto Duarte no Porto, no âmbito da primeira exposição colonial, em 1934. Começa por referir a atitude dos escritores da sua época face a África e prossegue com comentários sobre a música dos negros, centrando-se na morna, dança tipicamente cabo-verdiana e aqui procura retratar o cabo-verdiano:

“Como poeta e músico, o cabo-verdiano é um eterno apaixonado. O amor, ponto de convergência desses dois estados de alma é tema que não cansa e antes rejuvenesce em cada morna, vai de aldeia em aldeia, surpreende epidermes virgens, sobe à cumeeira dos montes, transpõe o mar e abraça as ilhas no desejo insatisfeito de unir corações enamorados. E para fugir a uma vida de resignação e renúncia, o cabo-verdiano, poeta e místico, artista de provocação, baila e canta”.

A novela “Um crime” foge ao contexto africano. Versa o regresso de um prisioneiro da I Guerra Mundial, Hans Weiss, regressado do exílio da Sibéria. Perdeu toda a sua família. É num grande estado de revolta que comete um crime.

“O negro sem alma”, datado de 1935, publicado na Livraria Clássica Editora, é o regresso ao conflito entre duas civilizações. Bubacar Djaló recusa as pretensões de Songá à mão da sua filha Aminienta, porque Songá não é Mandinga. No final, vamos ser confrontados com a vitória dos princípios africanos sob os princípios ocidentais.

“O negro sem alma” também aborda o exílio e a separação. Momo deixa a sua aldeia no Tombali, atravessa a fronteira e entra na Guiné Francesa para vender dois sacos de arroz. Vive-se em plena I Guerra Mundial e todos os indígenas são apanhados para marchar em direção às trincheiras ocidentais. Momo, na confusão, é mobilizado à força, temos aqui um novo exílio forçado. Vemo-lo num campo de concentração com o uniforme soldado francês, irá combater nas trincheiras, será condecorado. No regresso, assistimos a novo choque de valores. Momo regressou com modos afetados, maneirosos, afrancesados. Atrai a curiosidade dos seus compatriotas, mas é nítido que há desenraizamento.

Antes de regressar à Guiné, Fausto Duarte escreve em 1936 novo romance, "Rumo ao degredo", publicado pela Guimarães Editora. Põe a seguinte dedicatória: “À minha mulher e ao meu filho”. Manuel da Gaita, inocente, é condenado ao exílio. Regressa 15 anos depois à sua aldeia, no Ribatejo. João Gaspar Simões, então sumidade da crítica literária, não foi meigo com Fausto Duarte, diz que "Rumo ao degredo" é um romance que ficou a meio o que devia ser. “Onde seria necessário pôr à prova o talento do romancista, Fausto Duarte sucumbiu”.

Veremos no próximo texto referências as seus últimos trabalhos literários e à sua atividade no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.

(Continua)


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Notas do editor:

Poste anterior de 15 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19682: Notas de leitura (1169): Um luso-cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série  de 19 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19697: Notas de leitura (1170): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (2) (Mário Beja Santos)

domingo, 21 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19705: A galeria dos meus heróis (28): Alfa Baldé, apontador de dilagrama, morto por "fogo amigo"... (Luís Graça)

A Galeria dos Meus Heróis > Alfa Baldé, apontador de dilagrama, morto por "fogo amigo"


por Luís Graça 




1. A guerra. Essa coisa tão primordial que é a guerra. Que estaria inscrita no teu ADN, a acreditar nos sociobiólogos para quem o  comportamento humano seria geneticamente determinado.

A guerra é a continuação da evolução por outros meios, dirão os entomólogos, especialistas em insetos sociais,  para quem a morte de um ou de um milhão de formigas ou de seres humanos, é-lhes totalmente indiferente. Desde que triunfe o ADN, um projecto de ADN musculado,uma "raça" nova e superior...

Para ti, a guerra é a aprendizagem da morte. Aos vinte e dois anos. É a inocência que se perde para sempre, ao ver morrer pela primeira vez um homem. Como o teu camarada, Alfa Baldé, que morreu a teu lado. A guerra... é o impossível luto. É a descoberta do mal absoluto.

Fight or flight. Luta ou foge. Não precisaste de fugir nem de lutar. Recusaste o egoísmo genético. Recusaste a lógica absurda de matar ou morrer. Recusaste o cinismo. Recusaste a G3 em posição automática. Recusaste a fria e calculista resignação com que se juntavam e amortalhavam os cadáveres seguintes. E se contavam nas paredes da caserna os dias que faltavam para a peluda.

Cinquenta anos depois, meio século, dois terços da esperança média de vida de um homem do hemisfério norte, vens dizer as palavras que ninguém disse ao Alfa Baldé, no  grotesco enterro que lhe fizeram em Sinchã qualquer-coisa, a sua terra natal.

2. Descansa em paz, Alfa Baldé, meu herói, soldado do 2º pelotão da minha companhia, de tropa-macaca, a minha companhia, os meus camaradas, o meu bando de primatas sociais, territoriais, predadores, filhos das mais desvairadas gentes.

Fazíamos parte da nova força africana, de Herr Spínola, o prussiano, como eu gostava de chamar-lhe, ao nosso Comandante-Chefe. Lembras-te ainda do "Caco Baldé" e da sua voz de ventríloquo ? Tinha o teu apelido, e usava um monóculo, ridículo...

Não, não tens que te lembrar, não ligues a esta minha provocação, são outros contos, outras estórias, outras lendas e narrativas, outros ajustes de contas com as nossas doridas memórias.

Descansa em paz, Alfa Baldé, debaixo do poilão secular, na tua tabanca, no chão fula, belíssimo poilão de uma triste tabanca fula, cercada de arame farpado, trincheiras e valas de abrigo, por causa do Mamadu Indjai, o Terrível, que jurou pôr o teu "chão" a ferro e fogo.


Julgo que eras do regulado de Badora. Ou seria Cossé, lá para os lados de Galomaro? Desculpa-me ter esquecido o nome da tua tabanca. E a cara dos teus filhos. E o rosto das tuas mulheres, agora órfãos e viúvas, sozinhos neste mundo. Ou talvez não: ficaram a cargo do teu mano mais novo, seguindo os usos e costumes do teu povo.


Apercebi-me que os teus campos estavam tristes e inférteis. Já não davam o milho painço nem o fundo, nem a mancarra, nem a noz de cola, nem o arroz de sequeiro. Os homens partiram para guerra. E os mais velhos eram milícias, na tua tabanca organizada em autodefesa. A guerra era agora a principal ocupação de todos. Compravam o arroz ao Rendeiro com o "patacão" da guerra. Nem os "djubis" guardavam já os campos de mancarra, das investidas dos macacos-cães. De Mauser em punho, que a milícia agora usava a G3.

Alguns dos jovens guerreiros, como tu, voltavam agora numa caixão de pinho. Restavam os macabros "jagudis" poisados no alto da morança dos mortos, cheirando a morte, pressagiando a desgraça.

Setembro de 1969. Operação Pato Marreco. Ou era a Ganso Pimpão ? Ou a Pavão Real ? Que importa, agora, o nome de código da operação!... Morreste em linha. Aprumado como o teu poilão. No assalto a um aquartelamento temporário do IN ("barraca", diziam eles), próximo do Poindom / Ponta do Inglês, o "matadouro" do Xime.

IN ? Que estranho termo ou expressão… Uso-o por força do hábito, por comodidade, por lassidão, por economia de análise. IN, abreviatura de inimigo. Para ti, era o "turra". Para muitos de nós, "tugas", era o "turra".

Curioso, nunca soube a tua idade, mas eras dos mais velhinhos, dos que não tinham idade bem definida. Não tinhas bilhete de identidade de cidadão português. Eras um fula preto, um fula forro, não creio que fosses futa-fula. Mas eu levei-te a enterrar na tua aldeia, mais os nossos camaradas do 2º pelotão, fomos dizer-te o último adeus. Com honras militares, tiros de salva, e a bandeira verde-rubra dos "tugas" por cima do teu caixão. De pinho. Do verde pinho de Portugal. Talvez do pinhal de Leiria, que ardeu no verão passado.

Nem isto te deixaram fazer à maneira dos teus. Afinal, eras um soldado, regular, do exército português. Colonialista, dizia a "Maria Turra", na rádio lá de Conacri... Cumprias o teu serviço militar obrigatório, como qualquer cidadão português. Eras do recrutamento local. 


Todos os exércitos têm normas, regulamentos, protocolos... O teu enterro fez-se segundo a NEP não sei quantas... Mas tenho uma dúvida: não chegaram a chumbar o teu caixão, não houve de esperar pelo "coveiro" de Bissau, fomos no "gosse gosse", a caminho da tua aldeia, em dois ou três Unimog, com medo que o teu cadáver começasse a cheirar mal. E o "pavão real" do teu "alfero", ia à frente, de peito feito ao vento, pela estrada fora... Na brincadeira, chamávamos-lhe também o "Pimpão"... E ele até nem desgostava do epíteto...Fez um discurso patriótico, que ninguém terá entendido, crianças, mulheres e velhos da tua aldeia: "Honra e Glória ao bravo soldado Alfa Baldé, que deu a vida pela Pátria!"...

Portugal ? Ainda te lembras ? Os senhores que vieram do Norte e do lado mar ? Não, não vieram pelo deserto. Esses, foram outros, árabes, bérberes, tuaregues, mandingas do reino do Mali, abrindo as rotas subsarianas do ouro e da escravatura. Depois é que vieram os "tugas" e os outros europeus... Os teus antepassados foram escravizados, muitos foram parar ao Novo Mundo, aos engenhos de açúcar e às plantações de algodão. Outros, quiçá, trabalharam nos arrozais do rio Sado. Ou eram escravos domésticos em Lisboa.

Não, não tens que saber de geografia. Nem de história. Nem de geopolítica. Nem de antropologia. No sítio onde tu agoras moras, debaixo do teu poilão, já não te servem para nada os conhecimentos de geografia, história, geopolítica ou antropologia. Só espero que algum senhor da guerra, do teu país, não venha um dia destes autorizar o abate do teu poilão, a troco de um punhado de iuanes, o patacão chinês.  Sabes, dizem que estão a dar cabo das florestas da tua terra, da tua África. O deserto do Saara já espreita às portas do "chão" felupe, mais a Norte. Os "madeireiros" não têm pátria nem ideologia.

Bolas!, mas eu, mesmo ao fim destes anos todos, eu deveria recordar-me do nome da tua aldeia, no "chão" fula. Passámos lá uma semana ou duas, com a nossa secção, um mês antes de morreres. Já não te lembras ? Creio que a tua tabanca, pelas notas,amarelecidas,  do meu diário, ficava no limite do regulado de Badora, a sul, já a confinar com o regulado do Corubal.

O teu nome, esse não esqueci, Alfa Baldé, apontador de dilagrama, o melhor da companhia. Esqueci foi o lugar onde nasceste, talvez Sinchã ou Saré qualquer-coisa, mas não faz mal.

Passei lá uns belos dias, contigo e a nossa secção. Felizmente que o Mamadu Indjai não nos importunou nessa altura, mas andou a pôr o regulado do Corubal a ferro e fogo, como ele jurou, cumpriu e fez cumprir. Mamadu Indjai, um senhor da guerra do PAIGC, que acabará também miseravelmente fuzilado nas matas do Boé, depois de atentar contra a vida do seu chefe, o "pai da Pátria"... Mas era um "cabra" valente, "herói da luta de libertação"...É assim, querido Alfa, todas as revoluções devoram os seus filhos: Cabral, Indjai, Mané, 'Nino'... Ontem, como hoje. Na tua terra ou na minha.

Lembro-me que o chefe da tua tabanca deu-me uma morança e arranjou-me uma espécie de "impedida", que tu me apresentaste como sendo tua "irmãzinha". Vinha-me acender o lume à ao fim da tarde. (À noite apagágavmos todas as fogueiras, por causa dos "snippers" do Mamadu Indjai. Estava em vigor o "black out" total. Até o cigarro era proibido.)


Não falava uma única palavra de português, a minha "impedida". Não cheguei a perceber qual o seu papel naquele filme. Creio que era uma das quatro mulheres do chefe das milícias. Já devia ter sido mãe, já não tinha a "mama firme" das bajudas. Mas foi amorosa e gentil comigo. Tratei-a sempre, delicadamente, como uma "irmãzinha", tua, e minha. Nunca esquecerei a massagem que me fez à coluna, com mezinhas tradicionais, depois de uma estúpida queda que eu dei na cambança de um riacho que corria ali perto, quando fomos os dois à caça, tu e eu.

Pude também, na ocasião, aperceber-me como eras um exímio caçador, e um terrível "snipper"... Das lebres às galinhas do mato, dos javalis às gazelas, não falhavas um tiro, emboscado na orla da bolanha, ao lusco-fusco. Eu, que sempre detestei a caça, acompanhei-te pelo menos uma vez, ao fim da tarde.

Mas o que agora queria dizer-te, e é isso que importa, é que chorei por ti, confesso que chorei por ti, que morreste a meu lado,e que levavas um prisioneiro, teu irmão, pela mão. E tu que nem sequer eras meu irmão, nem grande nem pequeno. Eras apenas meu camarada de armas. Nem tinhas a mesma cor de pele. Nem a mesma religião. Nem a mesma língua. Nem talvez a mesma pátria. Nem o mesmo continente. Não comias carne de porco. Nem bebias "água de Lisboa". Eras apenas um guinéu, soldado de 2ª classe, exímio caçador e o melhor apontador de dilagrama da companhia. E o primeiro a morrer em combate, "vítima de fogo amigo", que estranha ironia!

Ganhavas 600 pesos de pré, o equivalente a um saco de arroz por mês para alimentar a tua família, mais 24$50 por dia, por seres desarranchado. 

Não eras homem de grandes falas, e o teu léxico em português era bem escasso para a gente poder manter um diálogo aprofundado sobre a tua vida e a do teu povo. Eu fazia muitas perguntas, às quais nem sempre sabias responder.

Para mim, eras apenas um homem, da subespécie Homo Sapiens Sapiens. A única que chegou até aos nossos dias. E que, convém recordá-lo, nasceu na Mãe África. Somos todos descendentes de africanos que acabaram por colonizar e povoar o planeta.

Tu foste o primeiro homem, género Homo, espécie Homo Sapiens,  subespécie Homo Sapiens Sapiens, que eu vi morrer a meu lado. Nunca mais chorei por ninguém, por mais nenhum morto, acredita. Chorei por ti, Alfa Baldé. Chorei de raiva, de impotência e de dor.

Nascemos meninos, tu e eu, mas fizeram-nos soldados. Azar o meu e o teu, por termos nascido no sítio errado, no tempo errado.
Imagino-te "djubi", à volta da fogueira, na morança do marabu ou do "cherno" da tua tabanca, decorando o Corão. Uma das cenas mais lindas que eu trouxe da tua tabanca, e que eu guardo na minha memória, os "djubis" à volta da fogueira, ao fim da tarde, soletrando as letras das tabuínhas em árabe. 

E tu, seguramente, nunca me viste "menino de coro", a cantar, de sobrepeliz branca, nas cerimónias da Semana Santa na igreja matriz  da minha terra, "reconquistada aos mouros", em 1147, que eram tão seguidores de Alá como tu e os teus.

Lembro-me de ainda teres querido aprender as letras dos "tugas", o alfabeto latino, para poderes ser soldado arvorado e um dia chegares a 1º cabo como o Suleimane Baldé, fula-fula, ou o Vitor, que era mancanha de Bissau, o Lopes, que era cabo-verdiano da ilha da Brava. Mas a nossa atividade operacional era intensa e muito pouco tempo sobrava para poderes frequentar a escola, o posto escolar militar, do furriel Veloso. Além disso, tinhas uma família, duas mulheres, dois filhos... Chegavas cansado e esfomeado à tua morança, fora do quartel onde estávamos sediados.

3. E de repente, o capim. O capim alto. O sangue. O capim pisado e empapado de sangue. Pobre Alfa, morto por um dilagrama dos nossos. Alguém branqueou a tua morte no relatório da operação. Alguém salvou a honra da companhia. Alguém safou o teu/meu comandante de uma porrada do Spínola. Um dilagrama rebentou no ar, na tua cara, nas nossas caras. Um dilagrama dos nossos. O teu dilagrama, empunhado pelo nosso "alfero"... 


Não, não sei o que lhe deu, ao "alfero", para à última hora ter decidido tirar-te o dilagrama e ter-te confiado o prisioneiro, que estava à guarda do Mamadu Camará.

Não posso julgá-lo, era um meu superior hierárquico, meu e teu, nosso comandante de pelotão. Mas só sei que vai morrer na cama, ele (e o nosso capitão...), sem qualquer remorso na consciência "por te ter morto", e ter provocado vários feridos graves, quando estávamos em linha no assalto a uma "barraca" dos "turras"... 

"Homicídio involuntário" ? Não, "acidente com arma de fogo", é mais indolor... Muito provavelmente vai morrer em paz e contar aos netos que foi um "herói de guerra"...

"Acidente com arma de fogo" (segundo o relatório elaborado pelo capitão...) no auge da batalha, quando avançávamos em linha, no assalto ao acampamento do IN, levando tu pela corda o teu turra, o teu guia, o teu prisioneiro, que te fora confiado à última hora. Porque o teu posto era o de soldado apontador de dilagrama. E eras o melhor da companhia. O que se passou na cabeça do "alfero" que empunhou indevidamente o teu dilagrama e largou-o no ar quando, inadvertidamente,  saltou a cavilha de segurança ?... Podia ter-nos morto a todos!...

Ainda mais jovem do que tu, o teu "turra" era um jovem mandinga, que apanháramos a norte do Enxalé, tão crente como tu, tão observador dos preceitos corânicos como tu, meu querido "nharro". (Desculpa tratar-te assim, sei que o termo tem hoje uma conotação racista, mas era coloquial entre nós, "tuga" e "nharro" eram usados sem sentido de ofensa...)

Rebentou, de imediato, a fuzilaria quando o dilagrama explodiu nas nossas caras. A nossa secção já não pôde avançar mais. Tu tiveste morte quase instantânea, ainda balbuciaste umas palavras em fula, que eu mal consegui ouvir e muito menos fixar. Quando chegou o 1º cabo auxiliar de enfermagem, para te estancar o sangue e pôr o soro nas veias, já era tarde demais... Um estilhaço varara-te o coração. O "turra" mandinga, esse, ainda sobreviveu e foi depois evacuado de helicóptero com mais alguns feridos nossos...

E agora, Alfa Baldé, que foste poupado à humilhação da "derrota" e não viste o teu país sentar-se de pleno direito à mesa do mundo... Que farias tu com esta independência e com esta bandeira, a da Guiné-Bissau, contra a qual lutaste sem querer, sem saber, sem poder ?

Onde estarão os teus filhos, e as tuas mulheres ? E os teus netos ? E os homens grandes da tua tabanca de Badora ? E os líderes do teu povo que te obrigaram a combater ao lado dos "tugas" ?

Herr Spínola, o homem grande de Bissau, esse já morreu há uns largos anos atrás, ainda no século passado. Há vinte e tal anos.

Não lês os jornais, não chegaste a aprender o alfabeto latino e a juntar as letrinhas e a poder ler o livro da 3ª classe, com a torre de Belém ao fundo: "Esta é a minha pátria amada"…

Pois é, o homem grande de Bissau morreu, não de morte matada, como a tua, ou a do Amílcar Cabral ou a do 'Nino' Vieira, mas de acordo com a lei natural das coisas, com 86 anos. Soubeste, com certeza, da morte do Cabral e do 'Nino'. Ou talvez não.

Quanto ao teu régulo, sei que foi miseravelmente fuzilado na parada de Bambadinca, o poderoso régulo de Badora, tenente de milícias, Mamadu Bonco Sanhá, que havia trocado o cavalo branco da gesta heróica do Futa Djalon, por uma prosaica motorizada japonesa de 50 centímetros cúbicos... 

Não sei se foi oferta do Schulz ou do Spínola (que chegou à tua terra em meados de 1968). Pois o Mamadu Bonco Sanhá, dizia-se, era dono de centenas de cabeças de gado e de um harém, mas era mentira, de cinquenta mulheres, uma em cada aldeia de Badora… Fantasias dos "tugas" que pouco ou nada sabiam da história e da cultura do teu povo.

Também se dizia, mas era mentira, que o puto Demba era filho dele,o Demba e mais outros "djubis" da nossa companhia. O Demba já morreu, também, o puto Demba, não sei se sabias. Era de Taibatá e andou fugido pelo Senegal e por todo o Norte de África até chegar a Portugal. Acabou por morrer cá, na minha terra, no hospital, o terminal da morte.

Hoje os heróis do passado sucumbem sob o peso das cruzes de guerra. Ou pedem esmola nas ruas de Bissau, tal como os teus filhos e netos. Ou morrem de desespero e insolação às portas do templo da deusa Europa, em Ceuta, em Melilha, em Lampedusa...

Que voltas o mundo deu, meu soldado, desde esse dia já distante em que a tecnologia da guerra ou a lotaria do ADN ou a insensatez de um oficial "tuga" te ceifou a vida.

Porquê tu, meu herói, três meses depois de jurares bandeira, em Bissau, na presença do general Spínola, e te comprometeres, por tua honra, a defender uma pátria que, afinal,  não era a tua, até à última gota do teu sangue ?

E do "turra" mandinga não tenho notícias, se é isso que queres saber, mas a princípio duvidava que ele tivesse podido sobreviver, aos graves ferimentos do teu dilagrama, mal manejado pelo "alfero", comandante do nosso pelotão. Mas parece que sim, safou-se pelo menos daquela vez: alguém o viu no hospital, em Bissau, ainda no 4º trimestre de 1969. Foi tratado no hospital como um dos nossos, e o Spínola deve ter mandado libertá-lo, depois de jurar arrependimento e prometer nunca mais pegar numa Kalash ou num RPG 2.

Afinal, a avaliar pela idade dele, mais novo do que tu, devia ter sido arrebanhado pelo Mamadu Indjai, o Terrível.

E agora deixa-me dizer-te, amigo,à laia de despedida: não sei se um dia ainda terei forças para voltar à tua terra, ao teu chão. Já estou a ficar velho demais para poder viajar para esses sítios de África. Mas se porventura o fizer, gostaria de perguntar pela tua aldeia, e de procurar-te e de ter tempo para conversar contigo, só tu e eu, debaixo do teu poilão. Nunca mais lá voltei, à Guiné, à tua terra.  Ando a ver se ainda arranjo uns restos de coragem e de dignidade. Tenho uma dívida para contigo.
 
© Luís Graça (2019).

Última vetrsão: 12/6/2023

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Nota do editor:

Último poste da série > 15 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19683: A galeria dos meus heróis (27): Éramos todos bons rapazes!...(Luís Graça)