CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74
36 - De 21 a 26 de Junho de 1974 (Revisitando Junho de 1974)
Das minhas memórias: Ainda os finais de Junho de 1974
Como dei conta no último poste, o mês de Junho ficou marcado pela conclusão das estradas e pelo incremento das aproximações e contactos dos grupos do PAIGC com os aquartelamentos e as populações. A nossa actividade militar, à medida que aumentava a confiança no cessar-fogo tácito, ficou reduzida ao mínimo, embora nunca deixasse de se fazer patrulhamentos de segurança próxima.
Com tempo de sobra e sem uma data à vista para sairmos dali, a ansiedade e o nervosismo foi afectando quase todos. Foi necessário “inventar” actividades desportivas, mesmo com o patrocínio do Comando do Batalhão, para ocupar o tempo e descarregar tensões. Parece incrível que em tempo de paz se tivesse de recorrer à criatividade para impedir o enchimento da “bolha” das tensões e evitar a afectação da disciplina e o eclodir de conflitos. Só quem não passou por elas... Mas não chegaram a ocorrer desmandos e os mais extrovertidos optaram pela animação, embora nem sempre comedida.
Dos registos que me restam dessa época, transcrevo trechos que confirmam o que ficou dito e muito mais.
Nhala, 21 de Junho de 1974 (sexta-feira)
Faz hoje precisamente um ano que, pela terceira vez, senti por cima de mim o fogo do PAIGC e, desta vez, com bastante intensidade. A esta hora, 23h30, e há um ano, portanto, estava com toda a minha Companhia a dormir no mato nas imediações de Nhacobá sob uma tremenda trovoada e chuva torrencial. As ordens eram passarmos a noite na base de Nhacobá: mas são doidos, ou quê?
Era assim há um ano e assim continuaria ainda por muito tempo. Hoje, tudo é diferente. A única coisa que nos consome os nervos restantes é a expectativa duma situação que nunca mais chega: o regresso a casa. Também a inactividade nos inferniza. Praticamente não há que fazer, mas também não há nada que nos distraia nestas paragens isoladas e remotas no meio do mato. Por vezes temos de ser nós a engendrar actividades ou distracções mas, muitas vezes, não passam de maluqueiras.
Por exemplo, na madrugada de hoje, cerca da uma hora, quando eu me preparava para dormir, bem como os meus camaradas, (o Lopes foi já de férias), chegaram-nos aqui vindos de Aldeia Formosa, (a esta hora!), os nossos camaradas Alferes Amado João e Alferes Mota, mais um furriel madeirense e outro que pertence à Engenharia. Vinham já com os copos e faziam-se transportar numa Mercedes da Engenharia. Continuaram aqui em Nhala a festa deles e começaram a nossa, apesar da hora tardia, que se prolongaria até às 3h30. Bebeu-se, comeu-se e dançou-se. E o tempo passou. Mas encharcaram-se os corpos em uísque e roubaram-se horas ao descanso. (...).
Os mais sensatos e disciplinados passam o tempo de maneira mais saudável: levantam-se cedo e vão para Buba nadar no rio. Depois vêm almoçar e saem logo a seguir para a caça. À noite deitam-se cedo sem necessidade dos comprimidos que eu tomo ou dos copos que encharcam os outros, para recomeçarem tudo na manhã seguinte.
[De seguida dava conta das actividades desportivas. Tinha acabado um campeonato de futebol que envolveu todas as Companhias do Sector, e ia-se iniciar um outro da iniciativa do Comando do Batalhão, bem como um torneio de voleibol para decorrer em paralelo. Curioso é que eu tanto valorizava estas iniciativas por serem benéficas para o actual estado de espírito do pessoal, como as considerava alienantes por envolverem “multidões” que, na hora presente, deviam concentrar as atenções em questões mais importantes. Seria por eu estar a ficar sem “clientela”... Veja-se a seguir].
(...). Ainda no tempo do capitão BC se pensou em fazer qualquer coisa junto dos soldados no sentido do esclarecimento político e, no que me diz respeito, senti-me incentivado quando fui eleito Delegado do MFA em Nhala. Mas desencorajei mais uma vez ao ver a indiferença dos outros. (...). Aguardo determinações do MFA da Guiné que sirvam de orientação e que me dêem carta-branca para agir e, então, é possível que mesmo na situação presente venha a fazer reuniões de esclarecimento com o pessoal, visando o momento político que vivem agora os portugueses e os procedimentos a corrigir por pertencerem ao passado. [?]. Seria bastante útil também a realização de convívios com o diálogo aberto a todos, para se irem acendendo luzes nos espíritos dos mais despolitizados. Espero vir a cumprir tudo o que citei atrás e já estou a dar conhecimento a todo o pessoal, do documento recentemente recebido do MFA da Guiné e que a seguir transcrevo:
[Nem chegou a ser transcrito para o caderninho, nem o possuo para poder divulgar agora, pois fazia parte de todos os demais documentos (incluindo vários Perintrep) que deixei em Nhala sem remédio].
Nhala, 22 de Junho de 1974 (sábado)
Em Angola já há acordos de cessar-fogo com alguns Movimentos de Libertação e, para o caso de Moçambique, esteve em Lusaca o Dr. Mário Soares em contacto alguns dirigentes dos Movimentos moçambicanos. Tudo indica que se vai chegar a acordo em todas estas negociações, embora pouco transpareça do que se passa nas reuniões. No respeitante à Guiné, há já muito tempo que o cessar-fogo é um facto, mesmo ainda antes de ser conhecido qualquer acordo. No entanto, no Perintrep do último período, ainda se fazia referência a três acções da guerrilha, mas dando conta, por outro lado, de que neste período não houve accionamento de minas nem nenhuma detecção.
Que eu saiba, o PAIGC não reivindica a autoria destas acções, que são uma traição aos princípios que deram forma aos acordos de cessar-fogo. Aliás, um alferes do PAIGC que há dias esteve aqui Nhala a falar à nossa tropa e à população, atribui estas últimas acções de guerrilha aos homens da FLING.
[Creio que até àquela data ninguém ouvira falar desta FLING. (Frente de Libertação e Independência Nacional da Guiné. Foi um movimento independentista da Guiné Portuguesa que resultou da fusão destes: União dos Povos da Guiné; Reunião Democrática Africana da Guiné; União da População Libertada da Guiné. Fonte Wikipédia.
Mas casos de oportunismo sempre aparecem em situações análogas. Cabia ao PAIGC demarcar-se e impedir confusões e ambiguidades. É o que parecem fazer os seus apoiantes na faixa da fotografia em baixo, em que clamam “Abaixo os oportunistas”].
Fotos 1 e 2: Buba, Junho de 1974 – Faixa de apoiantes do PAIGC repudiando o MDG – Movimento Democrático Guineense. Os “oportunistas” eram um dado recente, pelo menos à luz do dia, no período histórico que se vivia.
Os mais sensatos e disciplinados passam o tempo de maneira mais saudável: levantam-se cedo e vão para Buba nadar no rio. Depois vêm almoçar e saem logo a seguir para a caça. À noite deitam-se cedo sem necessidade dos comprimidos que eu tomo ou dos copos que encharcam os outros, para recomeçarem tudo na manhã seguinte.
[De seguida dava conta das actividades desportivas. Tinha acabado um campeonato de futebol que envolveu todas as Companhias do Sector, e ia-se iniciar um outro da iniciativa do Comando do Batalhão, bem como um torneio de voleibol para decorrer em paralelo. Curioso é que eu tanto valorizava estas iniciativas por serem benéficas para o actual estado de espírito do pessoal, como as considerava alienantes por envolverem “multidões” que, na hora presente, deviam concentrar as atenções em questões mais importantes. Seria por eu estar a ficar sem “clientela”... Veja-se a seguir].
(...). Ainda no tempo do capitão BC se pensou em fazer qualquer coisa junto dos soldados no sentido do esclarecimento político e, no que me diz respeito, senti-me incentivado quando fui eleito Delegado do MFA em Nhala. Mas desencorajei mais uma vez ao ver a indiferença dos outros. (...). Aguardo determinações do MFA da Guiné que sirvam de orientação e que me dêem carta-branca para agir e, então, é possível que mesmo na situação presente venha a fazer reuniões de esclarecimento com o pessoal, visando o momento político que vivem agora os portugueses e os procedimentos a corrigir por pertencerem ao passado. [?]. Seria bastante útil também a realização de convívios com o diálogo aberto a todos, para se irem acendendo luzes nos espíritos dos mais despolitizados. Espero vir a cumprir tudo o que citei atrás e já estou a dar conhecimento a todo o pessoal, do documento recentemente recebido do MFA da Guiné e que a seguir transcrevo:
[Nem chegou a ser transcrito para o caderninho, nem o possuo para poder divulgar agora, pois fazia parte de todos os demais documentos (incluindo vários Perintrep) que deixei em Nhala sem remédio].
Nhala, 22 de Junho de 1974 (sábado)
Em Angola já há acordos de cessar-fogo com alguns Movimentos de Libertação e, para o caso de Moçambique, esteve em Lusaca o Dr. Mário Soares em contacto alguns dirigentes dos Movimentos moçambicanos. Tudo indica que se vai chegar a acordo em todas estas negociações, embora pouco transpareça do que se passa nas reuniões. No respeitante à Guiné, há já muito tempo que o cessar-fogo é um facto, mesmo ainda antes de ser conhecido qualquer acordo. No entanto, no Perintrep do último período, ainda se fazia referência a três acções da guerrilha, mas dando conta, por outro lado, de que neste período não houve accionamento de minas nem nenhuma detecção.
Que eu saiba, o PAIGC não reivindica a autoria destas acções, que são uma traição aos princípios que deram forma aos acordos de cessar-fogo. Aliás, um alferes do PAIGC que há dias esteve aqui Nhala a falar à nossa tropa e à população, atribui estas últimas acções de guerrilha aos homens da FLING.
[Creio que até àquela data ninguém ouvira falar desta FLING. (Frente de Libertação e Independência Nacional da Guiné. Foi um movimento independentista da Guiné Portuguesa que resultou da fusão destes: União dos Povos da Guiné; Reunião Democrática Africana da Guiné; União da População Libertada da Guiné. Fonte Wikipédia.
Mas casos de oportunismo sempre aparecem em situações análogas. Cabia ao PAIGC demarcar-se e impedir confusões e ambiguidades. É o que parecem fazer os seus apoiantes na faixa da fotografia em baixo, em que clamam “Abaixo os oportunistas”].
Fotos 1 e 2: Buba, Junho de 1974 – Faixa de apoiantes do PAIGC repudiando o MDG – Movimento Democrático Guineense. Os “oportunistas” eram um dado recente, pelo menos à luz do dia, no período histórico que se vivia.
Prosseguindo a nota de 22 de Junho de 1974.
Ultimamente alguns grupos de combate do PAIGC têm tentado contactos amistosos com os nossos, chegando a esperar em pleno mato junto à estrada, para poderem dialogar connosco. Isso já se verificou no carreiro de Chinconhe [?] do lado de Buba e no de Uane do lado de Mampatá.
Ultimamente alguns grupos de combate do PAIGC têm tentado contactos amistosos com os nossos, chegando a esperar em pleno mato junto à estrada, para poderem dialogar connosco. Isso já se verificou no carreiro de Chinconhe [?] do lado de Buba e no de Uane do lado de Mampatá.
Neste último, esteve há dias um bigrupo que se espalhou paralelamente à nossa estrada, aguardando que aí passasse alguém. Já o tinham feito e voltariam a fazê-lo. Ao passar uma coluna que se dirigia a Buba, o Comandante do Batalhão Ten Cor Ramalheira que seguia à frente, mandou parar as viaturas para poder falar com os comandantes desse bigrupo. Parece que tudo correu cordialmente e pouco depois a coluna retomava a marcha.
Nhala, 23 de Junho de 1974 (domingo)
Hoje tivemos a visita do Alf Mil Médico Herculano, (um progressista que já dorme com a fotografia de Amílcar Cabral à cabeceira), o Eng.º Campos e o alferes das antiaéreas. Trouxeram galinha e batatas de Aldeia Formosa.
Também eu fazia gala em me deixar fotografar, embora sisudo, com uma camisola recém-adquirida com a imagem de Amílcar Cabral, embora não a usasse.
Nhala, 23 de Junho de 1974 (domingo)
Hoje tivemos a visita do Alf Mil Médico Herculano, (um progressista que já dorme com a fotografia de Amílcar Cabral à cabeceira), o Eng.º Campos e o alferes das antiaéreas. Trouxeram galinha e batatas de Aldeia Formosa.
Também eu fazia gala em me deixar fotografar, embora sisudo, com uma camisola recém-adquirida com a imagem de Amílcar Cabral, embora não a usasse.
Foto 3: Buba, Junho de 1974 – António Murta ostentando um dos sinais dos tempos.
Nhala, 25 de Junho de 1974 (terça-feira)
Já os meus camaradas dormiam quando fui surpreendido com a visita do Alf Mil Médico Herculano e do Alf Mil Mota, de Aldeia Formosa. Depois de umas bebidas quiseram ir a Buba beber com os de lá. Como não os consegui demover, fui com eles. Era uma da madrugada. A meio do caminho avariou-se o jeep. Depois de várias tentativas lá conseguiram pôr o jeep a trabalhar e seguimos. O Capitão de Buba, o Brás Dias, ficou indignado mas depois abriu o bar e fez-nos companhia.
[Quando transcrevi esta nota fiquei surpreendido por omitir o que se passou a seguir e que foi o “melhor da festa”. Contudo recordo muito bem esta ida a Buba já de madrugada, a avaria do jeep, o Cap. Brás Dias todo chateado, enfim, talvez me recorde por ter já narrado isto antes. Também omiti, sem que o compreenda, que a acompanhar os alferes de A. Formosa vinha um tenente do QP, que ainda conheci como Sargento Ajudante, mais velho do que nós e que era um bonacheirão incorrigível. Foi o homem da noite, pelos piores motivos. Protagonizou uma cena que deixou o capitão de Buba furioso e nós perplexos.
Bebíamos no bar, entre conversas, quando o tenente se “desenfia” direito ao quarto dos alferes. Pensávamos que tivesse ido à casa de banho e não ligámos. Só quando ouvimos burburinho e protestos indignados nas acomodações próximas do bar percebemos o que ele andava a fazer. Dirigimo-nos logo para lá a fim de o trazermos e impedirmos algum incidente. Tinha acendido a luz do quarto dos alferes que estavam a dormir e estava junto da cama de um deles a insistir para que se levantasse para nos acompanhar no bar. O alferes resistia, o capitão exaltou-se, já nos queria dali para fora e o tenente, como se não fosse nada com ele, continuava a rir e a gozar, afinal, com todos nós.
Face aos protestos mal-humorados do capitão, o nosso tenente, de súbito, ficou com o semblante inexpressivo, o olhar vago, e cai redondo no chão onde ficou inanimado. Ó caraças, só faltava mais esta, vira daqui, vira dali, mais uns estalos na cara, mas não havia qualquer reacção. Chamava-se, abanava-se mas continuava a não reagir. Quando o capitão, visivelmente preocupado, já mandava alguém ir chamar o enfermeiro, de repente, o nosso tenente virou-se para o lado e levantou-se de um salto, a rir à gargalhada de braços no ar como quem diz não tenho nada. Primeiro foi a estupefação geral, depois a indignação.
Estava a noite estragada. Quer dizer, mais estragada. Apressámo-nos a sair dali empurrando o tenente para o jeep e a pedir desculpas de circunstância aos camaradas de Buba. Estrada fora em silêncio, cada um a cogitar apenas para si. Fez-nos bem a frescura da noite. Deixaram-me em Nhala, muito sóbrios, e seguiram para A. Formosa. Cenas e aventuras impensáveis há apenas dois meses. Estes excessos não eram, de modo nenhum, comuns à maioria, mas traduzem um certo “clima” pós cessar-fogo].
Nhala, 26 de Junho de 1974 (quarta-feira)
Fui a Mampatá assistir a um jogo de voleibol dum torneio que se está a realizar. Da borda do campo acompanhei os olhares da assistência que se viravam para a estrada atrás de nós, e não muito longe dali. Era um bigrupo do PAIGC que se aproximava numa longa fila vindo do lado de Cumbijã. Passaram sem se manifestar na direcção da tabanca de onde acorreram, sobretudo mulheres e a miudagem, a aclamá-los com palmas e alguma euforia, mais movidos pela curiosidade. Eles, muito dignos e quase indiferentes, continuaram a sua marcha e só pararam depois de atravessar a povoação.
Era a primeira vez que eu assistia a uma recepção tão calorosa da população. Em Nhala nunca observei nada disso. Em comum com o que já observara antes, apenas o porte e a disciplina dos guerrilheiros: sempre em silêncio, bem fardados e muito comedidos. Vinham bem armados, como sempre.
[Hoje, Janeiro de 2016, não imagino como veria isto um nosso camarada antigo combatente dos anos sessenta, que ali fosse largado sem aviso. Julgaria que estava a sonhar?].
Viria a surgir um problema. O Comandante do aquartelamento, (não recordo se lá estava na ocasião o Cap. Luís Marcelino), recusou-se a dar-lhes alojamento para pernoitarem, alegando que não tinha ordens para os tratar como amigos. [Uma atitude cautelosa e sensata, diria eu hoje]. Eles continuaram sentados no chão até ao anoitecer, mas depois o problema resolveu-se com a intervenção do Comandante do Batalhão.
Entretanto, ainda durante o jogo de voleibol – que não foi interrompido devido à chegada dos guerrilheiros -, todos vimos com tristeza passar na estrada o resto da CCAV 8351 para Buba, com destino a Bissau e à Metrópole.
Foto 5: Mampatá no tempo da guerra, quando até ir à fonte era perigoso, mesmo ali ao fundo onde a estrada prossegue para Colibuia-Cumbijã-Nhacobá. (Panorâmica sem primores técnicos e com alguma batota, feita com a junção de duas fotografias que nem sequer eram coincidentes).
(continua)
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Nota do editor
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