segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26270: Os 50 Anos do 25 de Abril (32): O "virar da página" da revista católica "Flama", cujo diretor era o António dos Reis, bispo de Mardassuma e capelão-mor das Forças Armadas (1967-1975) - Parte II

"O chaimite 'Bula' prepara-se para transportar o ex-Presidente do Conselho que, entretanto, setinha renido incondicionalmente ao General Anónio de Spínola,Presidente da Junta de Salvação Nacional"  (Flama, separata, 10/5/1974, p. III)


"Para os populares aglomerados nas imediações do Largo do Carmo tudo serviu para observar a ação das Forças Armada: estátuas, árvores,blindados".  (Flama, separata, 105/1974, pág. II)




Flama, separata, 10/5/1974, pág. II


Capa da separata da Flama: revista semanal de actualidades, nº 1366, A
ano XXXI, 10 de maio de 1974, XXXII páginas.


Flama documento : 25 de Abril : o virar da página
I II III
25 de Abril : o assumir de um compromisso
IV-V
25 de Abril : uma linha de abertura a soluções de evolução
VI VII
25 de Abril : perfeita coordenação no processo de controle
VIII-IX
25 de Abril : o país despertou com outra face
X-XI
25 de Abril : o Largo do Carmo foi o último reduto do regime
XII-XIII
25 de Abril : uma reacção agonizante
XIV-XV
25 de Abril : durou nove horas a tomada do Carmo
XVI XVII XVIII
25 de Abril : a D.G.S. estrebuchou até rebentar
XIX
25 de Abril : a população lembrava-se (bem) da polícia política
XX-XXI
25 de Abril : presos políticos reencontraram a liberdade
XXII-XXIII XXIV-XXV
25 de Abril : um posto de comando tranquilo
XXVI XXVII
25 de Abril : nunca se desejou o derramamento de sangue
XXVIII-XXIX
25 de Abril : quem com ferro mata...
XXX
25 de Abril : o virar da página
XXXI
25 de Abril : o povo esteve com as Forças Armadas
XXXII

Cortesia da Hemerateca Digital / Câmara Municipal de Lisboa

Este número da Flama e a sua separata também estão disponíveis, em formato digital,   no Centro de Documentação 25 de Abril, Universidade de Coimbra.


"Manter a população ao corrente da evolução dos acontecimentos foi preocupação constante do general Spínola". (Flama, separata, 10/5/1974, pág. IV)



"O generaql Spínola, com as individualidades que formam a Junta, no momento em que lia perante as câmaras de televisão a histórica declaração". (Flama, separata, 10/5/1974, pág. V)



"Os generais Costa Gomes e António de Spínola".  (Flama, separata, 10/5/1974, pág. V)




Aeroporto de Lisboa (Flama, separata, 10/5/1974, pág. VI)



"O Terreiro do Paço e o aeroporto de Lisboa  foram dos dois pontos estratégicos a ser ocupados pelas tropas do Movimento das Forças Armadas. A população transitou calmamente junto aos carros blindados, manifestando total conpreensão e civismo".  (Flama, separata, 10/5/1974, pág. VII)


(Flama, separata, 10/5/1974, pág. VII)





(Flama, separata, 10/5/1974, pág.VIII)


(Flama, separata, 10/5/1974, pág. IX)


"Foi longa a noite, mas às primeiras horas do dia já a esperança reinava entre os militares. Depois veio o povo disse o seu 'sim' apoteótico. O Governo caía às mãos dos militares". (Flama, separata, 10/5/1974, pág. IX)




(Flama, separata, 10/5/1974, pág. IX)


"Primeiro foi a ocupação (militar), depois a proclamação (popular). Estas foram as duas imagens de uma revolta que, em poucas horas, mudou a face de um país e fez reacender as esperanças de um povo desconhecedor, na sua quase totalidade, dos direitos democráticos".(Flama, separata, 10/5/1974, pág. X)





(Flama, separata, 10/5/1974, pág. X)


1. Tínhamos prometido voltar a esta edição (histórica) da "Flama" (*), revista semanal de actualidades que se publicou até 1976.

Alguns de nós recebiam e liam na Guiné esta revista, a par de outras como a "Vida Mundial", e dos jornais diários, de Lisboa e Porto, mais a " Bola"...Um ou outro mais "politizado" assinava a "Seara Nova", o "Comércio do Funchal", o "Notícias da Amadora", o "Jornal do Fundão"... E, excecionalmente, algumas revistas estrangeiras. 

A "Flama"  era uma revista simpática, que sabia conjugar o "light" com os assuntos mais sérios, "respeitada", origtinalmente ligada à Igreja Católica, mas nem por isso menos sujeita à sanha e arbitrariedade  dos "coronéis da censura"... Soube "refrescar-se", e adaptar-se aos sinais de mudança no mundo e na sociedade portuguesa. Era também lida pelo público feminino, com escolaridade de nível médio ou superior.  E conseguiu uma notável qualidade técnica e estética em muitas edições. 

Recorde-se que a "Flama" tinha nascido em 1937, da iniciativa de um grupo da JEC - Juventude Escolar Católica, com a benção de Salazar e do Cardeal Cerejeira. Era então marcadamente "masculina", e de teor "confessional" ou "religioso". Começou a redefinir-se a partir de 1944... Em 1967, apresentava-se como "semanário de atualidades de inspiração cristã" (sic)... Em 1974 era simplesmente uma "revista semanal de atualidades"... Custava 10 escudos o número avulso (17$50, em Angola, 20$00 em Moçambique) (*)

Dizem os estudiosos da história do jornalismo português, que foi também um marco importante no panorama da comunicação social portuguesa, nos últimos anos do Estado Novo: era uma revista em parte feita por mulheres e para as mulheres, mas também foi escola para conhecidos jornalistas da nossa praça.

Era dirigida, desde 1964 até ao fim,  por  um intelectual católico, com prestígio,  o dr. António dos Reis Rodrigues (1918-2009), nascido em Ourém, concelho a que pertence Fátima.  Padre, será, em 1966, nomeado  bispo auxiliar de Lisboa, sob o título de bispo de Madarsuma,  capelão-mor das Forças Armadas (1967-1975)., etc..  Entre 1947 e 1963 tinha sido capelão e professor na Academia Militar (ensinava ética e deontologia militares). Foi também procurador à Câmara Corporativa, na legislatura de 1961/65. 

Foi também com o  António dos Reis, enquanto diretor, que a revista conheceu o seu apogeu e  sucesso da "Flama". Foi também ele que "virou" e "fez virar" a página da revista (seguramente sob  a pressão dos seus jornalistas que, em 17 de maio de 1974, elegeram, "democraticamente" e "por voto secreto",  um "conselho de redação")...  Mas também com ele e a nacionalização da banca, que a revista conheceu a snetença de morte.

Com o 25 de Abril de 1974, os jornalistas portugueses, libertos do lápis azul da censura, tiveram que "reaprender" a pensar e a escrever...(Não só os jornalistas, como todos nós.) E a prova disso é a separata que o semanário "Flama" dedica, tardiamente, em edição de 10 de maio de 1974, ao histórico dia de 25 de Abril. É sobretudo um trabalho de fotojornalismo, com relativamente pouco texto (para além da declaração histórica do MFA, lida nesse dia perante as câmaras da televisão pelo presidente da Junta de Salvação Nacional, gen Spínola)... 

Infelizmente não sabemos  quem são os autores individuais da fotos,quer a preto, quer a cores, mas quisemos fazer aqui uma seleção desse documento, quer para os nossos camaradas que nessa data estavam ainda na Guiné,  quer para os outros que não tiveram, na altura,  oportunidade de ler este número especial da  "Flama". 

A reportagem é assinada coletivamente por António Amorim, Alexandre Manuel, Fernando Cascais, e Dionísio Domingos (texto), e António Xavier, António Vidal e Carlos Gil (fotografia). (O deparatmento de fotografia da "Flama" era considerado pioneir0.)

A revista vai ter, de resto,  uma vida efémera no pós-25 de Abril: encerrou em 2 de setembro de 1976, por decisáo unilateral e arbitrária  da administração, ligada à banca.

(Seleção, revisão / fixação de texto, reedição das imagens: LG)

domingo, 15 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26269: Blogpoesia (802): "O sonhador é um fazedor de carências", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

O sonhador
é um fazedor de carências


Tu és uma profunda sonhadora
a minha carência
de um belo sonho de uma noite de luar
à beira de um imenso mar azul
o colo cintilante de estrelas
e os lábios húmidos de poemas.

Os olhos são os mesmos
a boca não mudou de lugar
e os beijos ainda lá estão
a atear a última chama do verão.

Diz-me onde tens a alma
gostava tanto de saber
gostava tanto de beber
um cálice de Vodka
ou de Porto
à saúde da tua alma
Ou de fel…não importa.

Vagueio horas a fio
preso aos dias e às noites
se calhar a vida inteira
à procura de um verso que perdi
não sei onde nem quando…
não sei se na vida errando
não sei se dentro de ti.


adão cruz
_____________

Nota do editor

Útimo post da série de 2 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26002: Blogpoesia (801): "Preso à cidade", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

Guiné 61/74 - P26268: Timor Leste: passado e presente (29): Uma viagem de mais de um mês de Lisboa a Díli, no N/M holandês Sibajac, em agosto/setembro de 1936 (Cacilda dos Santos Oliveira Liberato, "Quando Timor foi notícia: memórias", Braga, Pax, 1972)



N/M Sibajak > Navio de passageiros que fazia a carreira das Índias Orientais Holandesas (Roterdão - Batavia, hoje Jacarta). Teve uma longa vida (1928-1959) (durante a guerra foi convertido em navio de transporte de tropas). Com 154,4 metros de comprimento, o seu nº de passageiros (em 3 classes) era 527. Tripulação: 209. Fonte: Wikimedia Commons (com a devida vénia)


Timor (c. 1936-1940), porto-cais de Díli 

Foto do Arquivo de História Social > Álbum Fontoura. Imagem do domínio público, de acordo com a Wikimedia Commons. Editadas por blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)



Capa do livro "Quando Timor foi Notícia: Memórias", de Cacilda dos Santos Liberato (Braga, Editora Pax, 1972, 208 pp.). Encontrei um exemplar na Biblioteca Municipal da Lourinhã. Já o li de um fôlego. Tem um prefácio patrioteiro, propagandístico, algo despudorado e completamente datado,  do escritor  António de Seves Alves Martins: 

"Estar, agora, Portugal  vitoriosamente em armas, como vitoriosamente esteve em paz na segunda grande guerra, dá plena atualidade a este livro bem revelador da força moral de um povo que não abdica dos seus direitos porque também não se demite dos seus deveres" (pág. 12).

Cacilda foi uma "mãe coragem: viúva de Júlio Gouveia Leite, secretário da administração de Aileu (vítima do massacre de Aileu, em 1/10/1942) (*), irá casar depois com o tenente António Oliveira Liberato, também ele viúvo, na "zona de proteção" de  Liquiçá em 1943 (nome eufemístico dado pelos nipónico para  o campo de concentração dos portugueses). 

Com dois filhos pequenos, viu a morte à sua frente por diversas vezes. Publicou as suas memórias trinta anos depois (com alguns retoques, acrescente-se,  de gente erudita do regime que se quis aproveitar do seu testemunho singelo de "mãe coragem").

Estranha-se que o livro só tenha sido publicado em 1972. O manuscrito vem datado de dezembro de 1971. A autora vivia em Portalegre.

Era casada em segundas núpcias com António Oliveira Liberato, cap inf ref, ex-comandante da PSP de Portalegre, oficial da Legião Portuguesa e responsável pela censura a nível distrital. Era autor  de dois livros de memórias: "O caso de Timor" (Lisboa, Portugália Editora, s/d, c. 1946, 242 pp.) e "Os Japoneses estiveram em Timor" (Lisboa, 1951, 336 pp.). (Também dois livros, de difícil acesso, só disponíveis em alguns alfarrabistas e numa ou noutra biblioteca pública.)

1. O que é que os portugueses dos anos 30 do século passado (para mais em plena década do triunfo político das teorias racistas, e do nazismo  em particular)  pensavam do "outro" que estava lá longe, no "além-mar" das Áfricas, das Ásias, das Oceanias ? Enfim, em terras tão distantes como Timor, a 20 mil quilómetros de Lisboa, e a mais de um mês de viagem por mar ? E sobretudo as portuguesas, ainda poucas, que acompanhavam os maridos, funcionários civis ou militares destacados para funções nas colónias.

Cacilda está de "abalada para o Extremo-Oriente, rumo ao longínquo Timor " (p. 13). Estamos em agosto de 1936. Não sabemos exatamente o dia. Mas terá sido na primeira quinzena. 

O navio era holandês, e  elegante", o N/M Sibajac (p. 15).  E o dia "límpido, radioso", em Lisboa (p. 14). (Portugal não tinha um navio da marinha mercante que, nessa época, fizesse a ligação entre a metrópole e a sua colónia mais longínqua, nem havia movimento de carga e passageiros que o justificasse.)

Antes de entrar no Mediterrâneo, por Gibraltar,  o navio faz uma primeira paragem, curta, ao largo, em Tânger, "o tempo suficente para levar o correio à cidade" (p. 14).  Inevitável associar Tânger ao "drama do Infante Santo" (...) "desastre a toldar o brilho da epopeia gloriosa da nossa expansão pelas sete partidas  do Mundo" (p. 15). 

Mas há uma granada, disparada não se sabe donde, que vem rebentar "a reduzida  distância da proa" do Sibajac. Confusão, se não mesmo pânico,  a bordo. Cacilda  vem lembrar, entretanto,  que "estávamos em 1936" (...): "a guerra civil espanhola eclodira  havia apenas  um mês" (p. 16). Em boa verdade, a 17 de julho de 1936, dizem os historiadores.

A viagem até Timor vai demorar mais de um mês... Cacilda e o marido chegariam a Díli em 17 de setembro de 1936. O marido é  um médio funcionário da administração colonial,  Júlio Gouveia Leite, secretário de circunscrição,  que irá encontrar a morte, na tragédia de Aileu, em 1 de outubro de 1942 (*). Era um homem com alguma cultura literária,  acima da média, tendo inclusive sido cofundador, na colónia, de um jornal de vida efémera, em 1938, de que se publicaram três edições  (**)

O que leva esta mulher da pequena burguesia lisboeta a perseguir "o sonho que há muito tempo acalentava" (p. 13), desde as precoces leituras da sua adolescência ?  Acompanhava, desta feita,  o marido que, por "rotineiro despacho ministerial", ia ocupar um lugar do Quadro Administrativo da Província" (o livro é publicado em 1972, pelo que em 1936 a terminologia era outra: Timor era uma colónia; a autora é traída por estes pequenos pormenores, o que sugere que terá tido ajuda de "copywriter" ou revisor de texto, o próprio marido, cap inf QR António Liberato ou o filho, Henrique, que era licenciado).

E logo Timor!... Familiares e amigos em vão a quiseram dissuadir: Timor, "que horror!", Timor, "a lendária antecâmara do Inferno, terra de degredados e de febres, de biliosas e  perniciosas" (p. 14)... Advertências de "sabor resteliano" (sic) (outra referência de sabor erudito, alusiva ao "velho do Restelo", a personagem camoniana que personificava o pessimismo de alguns portugueses em relação à aventura marítima) que provocavam também dúvidas e receios no espírito desta jovem mulher, recém-casada e com já um filho pequeno.

Nada a demoveu. E lá vai ela decidida a "conhecer as fascinantes  regiões das essências e especiarias, o exotismo dos usos  e costumes das suas gentes" (p. 13).

"Demandados Gilbraltar e Marselha, lobrigadas das águas  do estreito as cidades de Régio e Messina, atingiu-se Port-Said " (p.  16).

É "o primeiro contacto com terras do Oriente". E as primeiras descobertas do "exotismo", o caleidoscópio de "toas raças", tão caro ao viajante da época, vindo da Europa, e para mais ,"supremacista".... Travessia do canal do Suez em comboio (dez navios), Mar Vermelho,, "atmosfera de fornalha" (p.17).,,

Ao fim de sete dias de viagem "sob torreira inclemente", atingem Ceilão (hoje Sri Lanka), fundeando em Colombo, a capital da ilha (p. 18). Foi ocasião para alguns portugueses e "3 missionários holandeses" meterem-se a fazer uma curta exploração da cidade, em sete "rickshaws",  puxadas por "coolies", cuja reputação nem sempre era a melhor, conforme aviso feito a bordo... 

Calcilda e o companheiro ( e seguramente o filho) quase que perdem o navio, com as voltas que o seu "coolie" deu,  alongando o passeio, mas afinal "bem intencionado", ao querer mostrar a zona mais "excêntrica" da cidade,... Tiveram de se meter numa "gazolina" (sic) para apanhar o navio já ao largo, a caminho de Malaca (p. 21).

A descrição pitoresca da viagem continua por mais três páginas: o N/M Sibajak acerca-se de Sabango (ou Sabang, na ilha de Sumatra, Indonésia), navega ao longo de ilhas e ilhotas de vegetação luxuriante, que a autora descreve como "lugar(es) paradisíaco(s)" (p. 22).

"De novo em marcha, escalámos sucessivamente, Belawan, Singapura e Batávia". Aqui terminava a viagem do navio holandês. "Três portos, três empórios, em que os navios abundavam e o tráfico era intenso" (p. 22).

Batávia era o nome então da atual "Djakarta" (sic), "uma cidade de marcado estilo colonial": "vasta e muito povoada, de ruas amplas e largos espaçosos" (...), "edifícios grandes e opulentos" (...), "avenidas alfaltadas" (...), "airosas moradias, cercadas de jardins tratados com esmero e bom gosto" (pp. 22/23). 

O  que chocou o olhar português e lisboeta da Calcilda ?... "O espetáculo vergonhoso de multidões de indígenas" (sic),  que se banhavam e lavavam a roupa em cursos de água barrenta, avermelhada, correndo junto a algumas artérias da cidade...

Apanham outro barco, o Melchior Treub, seguindo viagem até Macassar, nas Celébes, para depois embarcarm no Reisgnears que os levará a Díli. Barcos mistos, de cabotagem, que "em digressão pachorrenta" os transportam  por "aqueles mares coalhados de ilhas"...

"Entrei na baía de Díli. Ancorava-se ao largo. Pequena ponte de madeira servia de cais, onde os passageios eram conduzidos em botes e 'gazolinas'. Ali pisei a primeira vez terras de Timor, na manhã de 17 de setembro de 1936" (.p23).

E quais as primeiras impressões de Díli  (cap. II, pp. 27-29) ?

"A Capital era, naquela época, um aglomerado sem importância" (...): "o traçado dos edifícios era simples, vulgar, a tender para a uniformidade"... Exceção para "a catedral, de construção recente", destacando-se da "trivialidade do conjunto" pelas suas "linhas modernas" e pela sua "torre, apontada ao céu" (...) e "dominando o modesto burgo" que se espreguiçava "indolente, sob a densa mata de coqueiros, palmeiras e 'gondões' (imbondeiros)"... (p. 27)

O movimento era "diminuto". O comércio local era apenas alimentado pelo "magro orçamento da Província" (sic). A "população não aborígena" (sic) (p. 27) resumia-se ao funcionalismo público, civil e militar, que comia à mesa do Estado... De fora só  "meia dúzia de empregados do setor privado" e um ou outro,  raro e próspero, "plantador". 

E quem era esse funcionalismo ? De origens diversas: europeus, indianos. macaístas bem como um "elevado número de nativos"... (p.28).

"A colónia chinesa detinha o monopólio do comércio" (p. 28). Fora a firma portuguesa "Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho"  e o "indiano Wadoomahl", "as lojas e quitandas" de Díli e  do resto da ilha "pertenciam aos sorridentes filhos do Celeste Império" (p. 28).

Era no bazar do Wadoomahl que o "elemento feminino" (sic) da colónia gastava as economias com artigos importados de Macau e  Índia... "Coisas de sonho" (p. 28): "tecidos, louças, objetos de laca e obras de cânfora e de sândalo, 'bijouteries' e outros artefactos de aparato e valor"

De 3 em 3 semanas, com a chegada do "vapor holandês da carreira", a loja do indiano tornava-se local obrigatório de visita e encontro  das "senhoras da sociedade de Díli" (p. 28).

Pontos de reunião, festas, receçóes e bailes, eram os clubes Benfica e Sporting, tão rivais entre si localmente como em Lisboa.

Em Díli, Cacilda, o marido e o filho pequeno ficaram numa moradia à beira-mar (p. 29). Mudaram-se pouco depois para Lahane, onde existia o bairro do funcionalismo, a 3 km da capital, com clima mais salubre. 

Ao fim de 3 anos, com o filho Henrique de sete anos, foram para Bobonaro, sede da circunscrição de fronteira, que confinava com o Timor holandès. Voltam para Díli em abril de 1941, quando nasce o segundo filho, Rui Nuno. 

Em agosto vão para Aileu (também conhecida na época como a "vila general Carmona", sendo Baucau a "vila Salazar"...), descrita pela autora como "uma pequena vila habitada por meia dúzia de europeus, outros tantos comerciamtes chineses, alguns mestiços, e nativos evoluídos " (sic) (p. 29). Um pequeno grupo de sipaios "assegurava a guarda à tranqueira, fornecia as ordenanças,as estafetas e outro pessoal paar serviço da Administração" (p. 29). 

Dispersos pelas redondezas, alcandoradas no "cume das montanhas" (p. 30), em pequenos aglomerados viviam os "indígenas"... A "civilização" em Aileu resumia-se  âs instalaçóes da secretaria da Administração, Central telefónica, moradia do secretário, e â saída, já na estrada para Maubisse, os edifícios do Presídio e da casa chamada dos Passageiros (p. 30)... Enfermaria, armazéns, capela, e algunas vivendas isoladas completavam o quadro de Aileu.

E será justamente em Aileu que a Cacilda ouvirá a notícia do início da II Guerra Mundial (1 de setembro de  1939) na  Europa (p. 33)  e depois no Pacífico, com a entrada de novos beligerantes, o Japão e os EUA, em 7 e 8 de dezembro de 1941, respetivamente  (p. 35). 

E seria ainda em Aileu que a Cacilda e a família apanhariam as duas invasões estrangeiras do territória, a dos Aliados e depois dos "matan-bubu" (olhos inchados, a alcunha dada aos japoneses pelos timorenses) (p. 48). 

As suas memórias mais dolorosas (mas também heróicas)  são justamente da longa, cínica e cruel ocupação japonesa (de 20 de fevereiro de 1942 a  5 de setembro de 1945). (***)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 5 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25809: Timor: passado e presente (16): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte VII: As chacina de Aileu e Ainaro, em outubro de 1942... E a coragem da jovem Julieta Lopes, de 17 anos, que gritou aos assassinos, em tétum: Quétac óhò feto ò labáric! (Na guerra não se matam mulheres e crianças!)

.(**) Timor - Publicação eventual de carácter literário e científico. Díli, 1938-1939. Impresso na Imprensa Nacional de Timor. Publicação fundada por Júlio Gouveia Leite e João da Costa Freitas, e como editor João da Costa Freitas. Os colaboradores são Virgilio Castilho Duarte, Lorenço de O. Aguiar e Alberto Rodrigues Paizana. Registaram-se três exemplares. Fonte: Biblioteca Nacional de Lisboa.

In: Vicente Paulino e Lúcio Sousa - Contribuição para um roteiro da imprensa periódica de Timor-Leste (1900-2002). Veredas: Revista da Associação Internacional de Lusitanistas, nº 40, p. 166-183, jul./dez. 2023.

 (***) Vd. poste de 5 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26234: Timor Leste: passado e presente (28): O concelho de Sardoal homenageou, em 15/9/1946, um dos seus filhos, Augusto Leal de Matos e Silva (1905-1944), chefe de posto administrativo de Laga, um dos heróis da resistència aos japoneses, morto da prisão de Díli

Guiné 61/74 – P26267: (Ex)citações (432): Noite de descontração (José Saúde)

 

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


Noite de descontração

Camaradas,

Numa declinar fase das nossas existências que queremos, e desejamos, que seja ainda longa, pois ninguém é eterno, e não vamos olvidar esta evidente realidade, mas onde os nossos já “débeis” corações se apressam para o reviver de um passado no qual proliferaram sentimentos de alegrias e de tristezas, sendo que esta dicotomia de vida nos envia para um fugaz reencontro com memórias que o tempo, sem termo, ousa desafiar, eis-nos perante pequenos retratos que a nossa passagem por terras da Guiné registou e que nós guardaremos eternamente no baú das recordações.

Éramos jovens, com sangue na guelra, corpos marcados pela elegância e de cabelos abastados, não temíamos, por vezes, a imprevisibilidade que uma ida para o mato impunha, alimentávamos, e sempre, esperanças num futuro que todos perspetivávamos de faustosos, mas, a vida, aliás, as vidas remetem-nos para uma ida ao confessionário e de mansinho implorarmos ao universo que, por enquanto, continuamos a fazer peso à terra.

Perante o que atrás descrevo, deixo-vos uma foto e o texto adiante narrado, acerca de uma noite de batuque no nosso quartel e que ainda recordo com extrema nostalgia.  

Batuque na tabanca e na messe de sargentos

 Noite de descontração  

O som do batuque deliciava-me! Encantava-me a alma. Noite de batuque era noite de ronco na tabanca. A população, numa correria louca, desfazia-se em contactos e os nativos, sempre faustosos, marcavam presença no local do aconselhado e de atrativo ronco. O tocador, ou tocadores, bem cedo diziam presente. As bajudas, sempre destemidas, envergavam indumentárias garridas e davam cor ao espetáculo. Os rapazes, com vestes compridas, impunham a sua condição de machos negros e as pomposas donzelas esculpiam os seus salientes rabos ao toque do tambor. 



Ao lado, homens e mulheres já entrosados na idade, agitavam-se com os estrondos vindos dos instrumentos das mãos dos tocadores. Os corpos do pessoal do batuque desenhavam figurinos encantadores. Descalças e descalços o pessoal da tabanca obsequiava com humildade os convivas. Paulatinamente os corpos joviais, alguns divinais, iniciavam o processo da transpiração. Um processo que não colocava senãos a gentes que por teimosia ousavam desafiar o calor da noite. Os cheiros não importavam! Conhecíamos já esses velhos odores. Faziam parte do nosso quotidiano. O perfume Hugo Boss, deixado, entretanto no baú das recordações, era um esmero anfitrião, mas para outros momentos de afirmação social. Naqueles instantes a festa era outra! De arromba. Os cheiros natos da jovialidade apresentavam-se para nós como mais uma página a acrescentar ao calendário de uma comissão que paulatinamente evoluía no tempo, mas devagarinho. 

Recordo as minhas saídas noturnas com outros camaradas a caminho de tabanca para ouvirmos e vermos ao vivo as maravilhas de um batuque das gentes guineenses. Em noite de luar era mais fácil a aproximação à manga de ronco. A pequena multidão, em círculo, faturava momentos ímpares de incontidos prazeres.

O toque do batuque generalizou-se aos quartéis, não obstante admitir uma opinião quiçá contraditória, ao interior dos quartéis, porém, era pressupostamente usual os militares terem nas suas instalações os respetivos tambores, sendo alguns deles comprados a quem fazia da arte um esmerado primor. Numa noite de plena descontração a rapaziada juntou-se e toca a batucar. Nesta perspetiva, um grupo de tocadores improvisados brindou a malta da messe de sargentos do quartel de Nova Lamego, um aquartelamento localizado à beira da estrada que nos levava a Bafatá, com os melodiosos sons oriundos de caixas feitas pelos ilustres mestres negros.

A recetividade da iniciativa mereceu honras dos camaradas que a seguir, e à nossa volta, se predispuseram para ofertar refrescantes bebidas aos tocadores. Numa noite de batuque, e sem danças feitas por corpos ondulantes, uma cuba livre foi divinal!  


Abraços, camaradas
José Saúde
Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523

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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em:  

29 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26212: (Ex)citações (431): Ainda o caso do nosso saudoso António da Silva Baptista (1950-2016), o "morto-vivo": nas vésperas do "verão quente de 1975" era herói da literatura de cordel nas feiras e romarias do Norte

 

Guiné 61/74 - P26266: Parabéns a você (2337): Sousa de Castro, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista da CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1971/74)

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Nota do editor

Último post da série de 12 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26258: Parabéns a você (2336): Francisco Palma, ex-Soldado CAR da CCAV 2748 / BCAV 2922 (Canquelifá, 1970/72) e Luís Dias, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 3491 / BCAÇ 3872 (Dulombi e Galomaro, 1971/74)

sábado, 14 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26265: Os nossos seres, saberes e lazeres (658): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (183): From Southeast to the North of England; and back to London (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Agosto de 2024:

Queridos amigos,
Começo agora a perceber por que razão os ingleses ganharam um ódio de estimação a viajar pelas autoestradas, seis faixas permanentemente repletas, camiões gigantescos, um ruído infernal do rodado de veículos de todas as dimensões, fico com a sensação de que toda a gente está a viajar em grande velocidade para sair de um inferno e entrar noutro; daí o prazer que se sente em andar em estradas secundárias, como é o caso das Dales, em Yorkshire. Houve uma alteração de última hora, seguiu-se para perto de Wakefield, aproveitei para dar um salto a uma cidade que muito aprecio, Leeds, é dessa curta viagem que aqui registo algumas imagens, o passeio continuará para uma zona de natureza exuberante, o Peak District, já não tenho arcabouço para subidas e descidas íngremes, em caminhos pedregosos, mas vou contente pelas caminhadas em terreno plano, em Dove Dale, e tudo a partir de um local com um casarão vitoriano, mesmo neogótico, Ilam Hall, aí sim, senti-me à solta nessa Inglaterra rural, longe das medonhas autoestradas.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (183):
From Southeast to the North of England; and back to London – 3


Mário Beja Santos


Estamos a sair de Faringdon, é uma verdadeira correria por estradas até alcançar a famosa M40, em direção ao Norte. Trânsito assustador, não há pausa para automóveis e camiões, num sentido e noutro, barulheira alucinante para quem se atreva a abrir os vidros, então o rodado dos camiões TIR até provocam angústia. Na véspera à noite fico a saber que houve alteração de planos, quem nos irá receber no condado de Yorkshire pede para partirmos imediatamente, há meninos que nos querem ver e que vão para uma excursão, é só um afinar de agulhas, comunica-se para Ilam Hall que seguiremos depois, estamos todos de acordo por um belo passeio pelo Peak Park. Após a estafadeira da M40 envereda-se por estradas secundárias, chega-se aos arredores de Leeds, receção calorosa, terei o dia seguinte por minha conta, inevitavelmente vou pôr-me ao caminho de autocarro até esta cidade que me fascina, e por várias razões.
A primeira, observo que há no planeamento urbano medidas sensatas na complementaridade entre a chamada arquitetura vitoriana e eduardiana com a contemporânea. Basta conferir o que me foi dado ver à saída do terminal rodoviário, construções modernas que prosseguem até à entrada do centro de Leeds, são edifícios que não ferem pela escala, que embrincam tanto pelo volume como pela cor, como procuro pela imagem exemplificar.

Mercado multiétnico, uma estrutura asseada que poderá um dia ser removida, sem danos urbanísticos
Do lado direito de quem sobe, uma conjugação acertada entre o antigo e o moderno, o lado esquerdo a seu tempo será demolido e seguramente que irá adquirir harmonia na escala.
Estrutura residencial antiga, não há destruições ao nível do espaço comercial do rés do chão
Leeds tem tradições industriais e comerciais. É, depois de Londres e Glasgow, uma praça financeira forte, que dinamiza todo o tipo de mercados, incluindo o cultural. O seu conjunto de galerias é de uma impressionante beleza, faz mesmo parte da rede europeia das galerias cobertas.
Era inevitável, depois de andar embasbacado a ver fachadas de edifícios, procurar polos artísticos. O Instituto Henry Moore está em obras, fiquei triste, dou-me muitíssimo bem com o génio deste grande escultor britânico. E resolvi mergulhar na Leeds Art Gallery, eis-me na sua sala maior, abarca o romantismo, o naturalismo, o realismo, não há aqui propriamente arte contemporânea, temos uma cópia desta escultura de Rodin no Museu Nacional de Arte Contemporânea, há muito para contemplar aqui, e com prazer. Vou fixar-me em duas obras.
O título deste óleo, John Atkinson Grimshaw (1836-1893) é Reflexos no rio Aire – em greve. Grimshaw parece focar-se nos seus efeitos de luz noturna na sua pintura que contrasta com a silenciosa fundição de ferro no lado oposto do rio Aire. Grimshaw era inequivocamente um adepto da pintura realista-social, procurava temas industriais, cenas de trabalho industrial e de condições de vida. O que mais aprecio são as tonalidades do céu e a riqueza da luz que partindo da Lua se espalha pelo rio.
Este quadro de Arthur Hacker (1858-1919) intitula-se A Tentação de Sir Percival, 1894. Hacker foi um bem-sucedido retratista, consagrado pela Royal Academy, a sua pintura, como se pode ver neste quadro reflete o movimento pré-rafaelita. Espelha, aquele movimento de desencanto com a vida moderna e o desejo de que a arte pudesse expressar um sentido moral. Obviamente que esta tentação de Sir Percival coincide com o interesse pela lenda arturiana, muito comum ao tempo.
Pago de bom grado mais de 5 euros para um cafezinho aqui, naqueles tempos vitorianos os espaços públicos de museus ou bibliotecas deviam possuir toques de requinte quase palaciano, o povo devia ser acolhido em construções de elevado gosto artístico. Este movimento fez escola, quando se implantou o comunismo na Rússia, Lenine fez questão de designar as estações de metropolitano em Moscovo como espaços quase palacianos, o povo merecia o melhor. Mas esta ideia já tinha antecedentes, como aqui se pode ver.
Não é a primeira vez que me deito no chão ou acocoro para tirar efeito de certo ângulo, estou no rés do chão da Leeds Art Gallery e gosto muito desta mistura de um estilo clássico e pintura contemporânea.
Como resistir a esta estatuária pomposa (trata-se da rainha Ana) ao lado de produtos de merchandising artístico?
Vou agora passear para o rio Aire, outrora um espaço azafamado pela ocupação de armazéns comerciais. Esse comércio morreu e houve o bom senso de reaproveitar estes esplêndidos equipamentos para habitação. O sucesso está à vista
Despeço-me de Leeds, ainda vou até à biblioteca e a dois edifícios religiosos, mas tenho quase a certeza de que numa viagem anterior deles já vos fiz o registo. Volto para junto de gente amiga, está mesmo garantido que amanhã rumamos para Ilam Hall, já não tenho pernas para a clássica peregrinação no Peak District (39 milhas), mas há pormenores de Dove Dale em que poderei cirandar sem martirizar a coluna e os joelhos. Depois eu conto.

(continuar)

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Nota do editor

Último post da série de 7 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26244: Os nossos seres, saberes e lazeres (657): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (182): From Southeast to the North of England; and back to London (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P26264: Bom dia desde Bissau (Patrício Ribeiro) (50): A velha fortaleza do Cacheu, com os seus inúteis canhões de bronze, e o triste Diogo Gomes lá aprisionado, a ver o pintor de canoas nhomincas...

Foto nº 13


Foto nº 14A


Foto nº 14

Foto nº 15

Foto nº 16A


Foto nº 16


Foto nº 17


Foto nº 17A


Foto nº 2 

Guiné-Bissau > Região do Cacheu > Cacheu >  4 e 5 de dezembro de 2024 >  

Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Aqui vai o resto das fotos da  última viagem ao Cacheu, em 4 e 5 do corrente,  partilhadas pelo  Patrício Ribeiro, nosso amigo e camarada, histórico membro da Tabanca Grande, nosso "embaixador em Bissau",  cicerone, autor da série "Bom dia desde Bissau" (*)...

Legendas:

Foto nº 13 > Ele, o Diogo Gomes, lá dentro, fechado, a assistir às pinturas das canoa nhomincas 

Foto nº 14 >   Os canhóes apontados para o rio

Foto nº 15 > O portrão da fortaleza

Foto nº 16 > Lateral oeste da fortaleza

Foto nº 17 > Igreja de Cacheu (ou de Nossa Senhora da Natividade)  

Foto nº 2 > Canoas nhomincas, com pinturas originais, no porto de manutenção, na margem esquerda do rio Cacheu

Sobre a foto nº 17, o fotógrafo escreveu, já com data de 8 do corrente:


"Hoje está a decorrer a peregrinação anual entre Canchugo e Cacheu.

"A peregrinação é a pé. Normalmente, é nesta altura de Dezembro, com o tempo frio, em que alguns milhares de pessoas percorrem a estrada durante a noite, onde o capim tem cerca três metros de altura e o cheiro da palha anima os corações dos fiéis crentes. As pessoas, durante a maior parte do tempo vão a cantar cânticos religiosos. No percurso passam em cima da ponte metálica antes do Bachil, e da mítica floresta de Cobina [ou Caboiana, segundo a nossa antiga carta militar de 1953],  local onde os Manjacos fazem as cerimónias ao irã ."


Igreja do Cacheu. Fonte: HIPP

2. Comentário do edit0r LG:

Sobre esta igreja, lê-se no portal HIPP - Património de Influência Portuguesa, este apontamento de Manuel Teixeira:

"Historicamente, constitui a primeira igreja portuguesa erigida na costa ocidental africana, padroeira da urbe. Em 1680 ruiu, devido a uma inundação do Rio Cacheu, sendo mandada reconstruir pouco depois pelo bispo de Cabo Verde, D. António de São Dionísio. Encontra‐se hoje relativamente bem preservada".



Guiné > Bissau > Região de Cacheu > Forte de Cacheu (séc- XVIII) > Restos da estátua de Diogo Gomes, que até à Independência, estava em Bissau, frente à ponte cais de Bissau...


Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




(...) "Edificado à beira‐rio, em 1641‐1647, é de pequena dimensão, consistindo num quadrado de cerca de vinte metros de lado, defendido nos cantos por pequenos bastiões, e uma muralha com quatro ou cinco metros de altura. 

"Em 1822 há notícia da sua existência, com estrutura de paredes em adobe. 


Forte do Cacheu (séc. XVII).
 Fonte: HIPP
"Em 1988 foi assinado um protocolo de geminação com Viana do Castelo, que contribui para diversos melhoramentos da vila, nomeadamente a recuperação do forte e o restauro da Capela de Nossa Senhora da Natividade. Mais recentemente, por iniciativa da União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa e da Câmara Municipal de Lisboa, procedeu‐se a nova reabilitação do forte. A reabilitação incluiu o interior e as muralhas exteriores, danificadas pelo tempo e pelas correntes do Rio Cacheu, que em alguns pontos lhe corroeram os alicerces. 

"A zona adjacente ao forte é o local onde as autoridades da Guiné‐Bissau, após a independência, vieram depositar as estátuas ligadas ao período colonial. Estão há trinta anos no meio da vegetação, desmontadas, à beira do forte."



Guiné > Região de Cacheu > Carta de Cacheu / São Domingos (1953) > Escala 1/50 mil > Pormenor dos rios Cacheu e seus afluentes: Pequeno de São Domingos (margem norte); Caboi, Caboiana e Churro (margem sul), a montante da vila de Cacheu.


Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2015).

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26263: Notas de leitura (1754): Ex-combatentes açorianos da Guiné falam das suas tatuagens (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Setembro de 2023:

Queridos amigos,
Ao fazer a minha ronda habitual na Biblioteca da Liga dos Combatentes, o solícito bibliotecário pôs na secretária este livro e, embora sabendo que a temática tem vindo a ser tratada com alguma proficiência, não hesitei em pôs estes antigos combatentes açorianos da Guiné a falarem calorosamente do que guardam na pele, simples infantes, enfermeiros, condutores, paraquedistas, explicam ao pormenor quando e como foi tomada a decisão, alguns arrependeram-se de pôr um nome e 50 anos depois vão a um estúdio de tatuagem para apagar o que os incomoda. 

Hesito em formular um comentário quanto à importância dos signos da tatuagem, curiosamente vi que na internet há gente a mexer no assunto. Não escondo que me comoveu a ternura desta iniciativa, uma viagem ao passado, à intimidade daqueles que quiseram selar na pele a memória de um tempo de guerra. E que não fique dúvidas de que é a frase "amor de mãe" ou "amor de pais" a que mais pesa.

Um abraço do
Mário



Ex-combatentes açorianos da Guiné falam das suas tatuagens

Mário Beja Santos

O livro intitula-se "Ultramar na Pele", texto de Diana Gomes e fotografia de Rui Caria, edição do Instituto Açoriano de Cultura, 2020. Testemunham ex-combatentes das três frentes da guerra, guardam memórias do que viram e experimentaram, deles sobrevive uma lembrança, sobretudo um braço tatuado, identificam lugares, datas, amor de mãe ou da mulher. 

Recorda um escritor açoriano de quem hoje tão pouco se fala e que combateu na Guiné, Cristóvão de Aguiar, legou-nos uma obra expressiva, "Braço Tatuado", tem a ver com um militar ressabiado pelo repúdio da namorada, quer à viva força retirar-lhe o nome do seu braço, tudo se consumará em tragédia. O que se gravava na pele, graças a três agulhas de costura juntas e enroladas em linha, molhadas em tinta-da-china, era fixar no corpo a saudade, o afeto pela mãe, a fidelidade à mulher ou à potencial noiva, tudo em desenhos de básicos, a dimensão ou perspetiva pouco contavam. Podem ter a forma de um coração, de um paraquedas, de uma palmeira, pode meter-se areias ou corações com setas – mas prevalece a palavra “mãe”. 

Como escreve Diana Gomes, estas tatuagens são impossíveis de copiar, parecem possuir vida própria, não exigem explicação e hoje em dia quem as observa é imediatamente invadido pelo sentimento de respeito por quem a carrega na pele.

Há de tudo para explicar estas tatuagens. Rui Teixeira, que esteve na Guiné entre 1968 e 1970, na Companhia “Os Furiosos”, tinha no braço “Viva Salazar”, volvidos 45 anos entrou num estúdio de tatuagem, cobriu as antigas e agora pode exibir “Viva Portugal”. 

Francisco Nunes Martins Nogueira, que combateu em Moçambique entre 1972 e 1974 ter-se-á lembrado de uma frase mítica de Churchill e tem no braço “Sangue, suor e lágrimas”. 

Francisco Melo partiu em 1971 para a Guiné, era condutor de carros de todo-o-terreno. A sua tatuagem é inusitada, como se pode ver na imagem: “God bless me with peace and love”. 

A autora explica a operação: 

“O algodão embebido em álcool foi passando pela pele várias vezes para limpar o sangue da luta que as três agulhas enroladas em linha foram metendo. Ao tatuar a pele, acontece, por vezes, um pequeno sangramento, no entanto, o efeito do álcool no sangue, faz esse sangramento ser mais acentuado, fazendo com que o sangue fique mais diluído. Nestas condições o pigmento poderá não ser tão fácil de aplicar ou o resultado não ser tão sólido.”

Há uma âncora no braço de Fernando Simas que partiu em 1967 para Angola. A autora esclarece: 

“A âncora é um símbolo que se vê frequentemente nas tatuagens dos soldados. Está associado à firmeza, força e fidelidade. É a âncora que garante a estabilidade.”

Vejamos agora Manuel Valadão, foi paraquedista na Guiné, a Companhia 121, quis deixar no braço o comprovativo de que foi paraquedista, Valadão, apesar da sua tatuagem estar desgastada, tem para ele um valor precioso. 

Há quem teve comissões benignas. José Fernando Lima, condutor em Angola, dirá à autora: 

“Foram as melhores férias da minha vida, gostei de estar lá e tinha muito gosto em poder voltar e ver como está agora aquela terra que nunca esqueci.” 

Norberto da Silva Goulart especializou-se na condução de lanchas rápidas em Bissau. Fez duas tatuagens. A primeira em homenagem à pátria, “Guiné 1973-1974”. Na segunda tatuagem, no antebraço direito, quis ver gravadas as iniciais do seu nome e as iniciais da sua namorada, tudo adornado com duas flores.

José Luís Correia de Azevedo seguiu para Bula. No seu pelotão havia um soldado que para além de adorar tirar fotografias fazia tatuagens quando lhe pediam, fez das tatuagens um negócio. Pediu para que lhe tatuassem as palavras “Amor de pais” e “Guiné 70-72”. Pagou ao camarada, ficou a promessa de que este lhe iria oferecer outra tatuagem, quando o José Luís fizesse anos. E no antebraço direito, desde o cotovelo até quase ao pulso está tatuado em letras maiúsculas “Micelina meu amor”. Micelina era o nome da mulher que ele namorava. Regressou a casa em outubro de 1972 e pediu Micelina em casamento. Um amor que já conta mais de meio século.

João Lourenço Oliveira conheceu um outro açoriano em Sare Bácar, na fronteira com o Senegal, foi Mário quem o tatuou com a frase “Justiça Lealdade Guiné 71-73”. Mais tarde, Mário tatuou no braço direito com o nome da sua madrinha de guerra, “Grimanesa”. Acabou por não casar com a Grimanesa, cobriu o nome com tinta-da-china. Pouco tempo depois, apaixonou-se por Isabel e estão casados até ao presente.

Quanto a açorianos, estamos falados. Diana encontrou aspetos muitos versáteis e impressivos nas entrevistas que fez, Rui Caria mostra as tatuagens, mãos calejadas, há mesmo rostos devastados, capta o que eles dizem à entrevistadora, como o tempo passava muito devagar, como a saudade apertava, como se sonhava regressar ao local onde se vivia. 

Diana Gomes terá razão quando escreve que “a tatuagem não deixou de ser uma pequena ajuda na expiação das más lembranças destes homens, que, por mais vulneráveis que se sentissem não viravam o rosto à luta.” Fizeram confissões, são captados pela máquina fotográfica a apontar a dedo fotografias dos álbuns, há mesmo Mário Areia que foi para Angola em 1970 que mostrou um poema popular, que ela transcreve: 

“Onze dias levámos/Naquela triste solidão/E à noite nos deitávamos/Lá no fundo do porão. /Quando a Luana chegámos/Era um tal chover/Ficámos todos molhados/E nada podíamos ver/Lá fomos para o Grafanil/Com grande tristeza no coração/Enquanto lá estivemos/Foi sempre a dormir no chão/Depois fomos para o Bom Jesus/Com o corpo a tremer/Fiz o sinal da cruz/Julgando que ia morrer.” 

E assaltou-me ao espírito o livro que escrevi com o poeta popular António dos Santos Andrade, do BCAV 490, continuo a pensar que é indispensável procurar-se fazer a recolha desta poesia e procurar contextualizá-la.

Saúdo este levantamento de tatuagens em gente açoriana, a escolha de depoimentos singelos, como o de Belmiro Miguel, que combateu em Xai-Xai, Moçambique, e cuja tatuagem, ele não esqueceu a data, foi feita no dia em que Portugal, no campeonato do mundo de futebol de 1966, venceu a Coreia por 5-3. E a entrevistadora usa frases oportunas como a propósito de uma palmeira e de uma cubata no braço de Belmiro Miguel, a necessidade de marcar aquele lugar no corpo, pelos medos que sentiu, pela força interior que tinha de encontrar para enfrentar aquela guerra. E escreve: 

“O cabo-enfermeiro Miguel é dono de uma imensa simpatia, sorriso e energia contagiante: um herói desconhecido que apenas se revela na sua tatuagem.”

Que se pode dizer mais? Uma terna viagem pelas tatuagens de guerra, um aviso claro que ainda se podem encontrar muitos mais testemunhos.


José Luís Correia de Azevedo
Francisco Melo
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Nota do editor

Último post da série de 9 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26249: Notas de leitura (1753): A Guiné Que Conhecemos: as histórias sobre unidades do BCAV 2867 (3) (Mário Beja Santos)