Guiné > Região do Cacheu > Carta de Pelundo (1953) (Escala 1/50 mil) > Posição relativa de Jolmete e Ponta Nhaga, na margem esquerda do rio Cacheu. Pelundo ficava a sudoeste de Teixcira Pinto. E Bula a leste.
Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)
O António Medina na mata da Caboiana (c. 1964) |
Foi fur mil inf, OE, CART 527 (Teixeira Pinto, Bachile, Calequisse, Cacheu, Pelundo, Jolmete e Caió, 1963/65).
Trabalhou no BNU em Bissau (até à independência) e depois em Lisboa.
Emigrou para os EUA em 1980.
Guiné > Zona Oeste > CART 527 (Teixeira Pinto, Bachile, Calequisse, Cacheu, Pelundo, Jolmete e Caió, 1963/65) > s/l > s/d > O fur mil OE António Medina e a sua secção.
António Medina,2016 |
I. Já lá vão precisamente cinquenta anos que carrego um facto bastante sombrio e macabro que a minha memória, vencendo o tempo e as mazelas deixadas em mim pela doença do Parkinson, conseguiu preservar no silêncio até hoje, pela maneira desumana e cruel que um julgamento sumário foi executado, ditado pelo Comando do Batalhão de Caçadores 507, de Bula [sendo na altura seu comandante o tenente coronel Hélio Felgas].
Por questão da minha própria ética procurarei evitar denunciar aqueles responsáveis que estiveram diretamente envolvidos em tal processo.
II. Por determinação do Comando de Bula, assiduamente as tabancas de Ponta Nhaga e de Jolmete eram visitadas pelas nossas forças, dentro do espírito do programa de reconhecimentos como retenção a possíveis infiltrações inimigas.
Sentiamo-nos confiantes e familiarizados, mais com os residentes de Jolmete, pela simpatia e maneiras com que éramos distinguidos, muitas vezes dando-nos as boas vindas, exibindo as suas danças e cantares na cadência de um bater de palmas e pés no chão, ao som de um batuque não ensurdecedor, pelo contrário harmonioso no qual um ou outro soldado por graça se juntava.
No clima amistoso que se vivia, [a gente] se estendia no chão de papo para o ar em qualquer sombra, as cartucheiras debaixo da cabeça para melhor conforto e a arma ao lado, conversa amena entre soldado e nativo, negociando particularmente um frango para um delicioso churrasco no regresso ao quartel, um ou outro apreciando em silêncio as curvas de uma bajuda de “mama firmada” que bem parecia mais ter sido talhada a canivete, comportamento que fugia às regras e normas de segurança exigidas pelo status da guerra e que bem poderiam custar a nossa própria vida, o que estávamos ignorando.
A pedido do sargento encarregado do rancho e sob a discrição e consentimento do régulo que fixava os preços, quantas vezes se comprou frangos, ovos, cabritos e bananas que tivessem disponíveis, oferecendo-nos o gostoso e fresco vinho de palma (seiva da palmeira) sem todavia pressioná-los.
A nível de pelotão, repetitivamente e em roulement, lá íamos em coluna auto pela estrada de terra batida totalmente despreocupados, sem qualquer referência a minas ou outras armadilhas porque delas ainda nada ou pouco se falava, de Teixeira Pinto, passando por Pelundo, seguindo em direção de Ponta Nhaga, depois regressar a Teixeira Pinto passando por Jolmete, e vice-versa na semana seguinte.
De madrugada chovia a potes, encharcados mas agora conscientes da presença inimiga, cautelosos e com medo, reforçados, regressámos a Jolmete, com um percurso a fazer a pé depois de Pelundo, para que o factor surpresa nos beneficiasse na operação sob o comando do capitão de Teixeira Pinto.
Conhecíamos o neto do régulo de Jolmete, de nome Celestino, rapaz de cerca de 22 anos de idade, simpático, vestido e calçado, expressando-se bem em português, com o segundo ano dos liceus já feitos no Honório Barreto em Bissau onde dava continuidade aos seus estudos. Sempre que chegava a Teixeira Pinto era ele hóspede da nossa messe para uma refeição e bate-papo connosco, furriéis. Acontece que naquela manhã o Celestino estava na Tabanca do avô e também foi preso.
III. Levados para Teixeira Pinto ficaram fechados no edifício do celeiro que se situava dentro da área do quartel, cedido pelo Administrador do Concelho, numa estadia de quase dois meses sob nossa guarda.
Pelos resultados colhidos nos interrogatórios se constatou que o grupo armado planeava atacar na nossa hora de ociosidade, com receio de alguma represália da tropa a posteriori, o régulo e o neto felizmente convenceram-lhes que alterassem seus planos para uma acção fora da tabanca, o que de nada serviu mais tarde como atenuante para lhes poupar a vida.
Entretanto o Comando de Bula [BCAÇ 507] ditou-lhes a pena capital, para que todos fossem fuzilados em local secreto, com exceção do Celestino que continuaria preso em Teixeira Pinto. Que fossem transportados pela estrada de Jolmete em dia a indicar onde estaria tudo já preparado pelos participantes de Bula.
Eram eles cerca de vinte homens, o régulo de Jolmete já homem velho, de barbas e cabelos brancos, fraco pela má alimentação, outros mais novos, todos sendo transportados em GMC sob escolta do segundo pelotão [da CART 527].
De mãos atadas, os prisioneiros foram alinhados de costas para a vala. O capitão de Bula ali estava como oficial mandante da ordem. Através de um intérprete explicava a razão daquele procedimento, quando um dos presos consegue se soltar e fugir em direcção à mata.
A vala comum foi fechada e armadilhada com minas anti-pessoal plantadas por sapadores de Bula. No dia seguinte essa acção da tropa colonial foi revelada pelos órgãos do PAIGC .
O Celestino continuou preso em Teixeira Pinto até que um dia a sua pena também capital não tardasse a chegar.
O facto foi consumado por um colega furriel miliciano e sua secção nas imediações do pequeno aeródromo de Teixeira Pinto.
Regressámos algum tempo depois à tabanca de Jolmete e constatámos que tinha sido destruída, suas palhotas queimadas não pela tropa, abandonada pelos sobreviventes que se puseram em debandada para local desconhecido.
Uma vasta área foi limpa do capim, árvores e arbustos para que fosse construído para a nossa defesa e logística um verdadeiro ”fortim” com troncos de cibos, chapas de bidões e zinco, terra batida, conforme as fotos em anexo.
António Medina, Medford, Massachusetts, USA, junho de 2014
Último poste da série > 25 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26424: O segredo de... (45): António Medina (1939-2025) - Parte I: "Uma história de terror que me atormentou toda a vida (Jolmete, junho / setembro de 1964)