segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26434: A extinção dos Conselhos Administrativos dos batalhões de reforço no CTIG (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, Chefe do CA, BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte I

 


Virgílio Teixeira ex-alf mil SAM, Chefe do CA, BCAÇ 1933
 (Nova Lamego e São Domingos, set 67 / ago 69); tem 190 referèncias no nosso blogue;
membro da Tabanca Grande desde 19/12/2017



A EXTINÇÃO DOS CONSELHOS ADMINISTRATIVOS (CA)  DOS BATALHÕES DE REFORÇO (BR) 
NO CTIG

por Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, BCAÇ 1933 
(Nova Lamego e São Domingos, set 67 / ago 69)


I – Introdução

Este tema tem em vista explicar qual foi esta especialidade administrativa militar, que é pouco conhecida da maioria dos nossos militares que estiveram nas guerras de África desde 1961/68

Foi sugerido pelo editor Luis Graça a propósito de um Poste para ser editado nos anos 2017 ou 2018, o qual eu tinha denominado de “A minha fuga de São Domingos” (*) e as peripécias que isto acarretou, e que não gosto de me lembrar, mas nunca as esqueço (1).


II – O que são os CA (Conselhos Administrativos) num Batalhão de Reforço

O CA é formado por uma estrutura Administrativa e Financeira, e é composto por 3 elementos:

Tomamos o caso do CA do BCAÇ 1933 a que pertenci:

  • O Presidente do CA, que é o segundo comandante (no nosso caso o major Américo Correia);
  • O Tesoureiro do CA, com a missão de movimentar os dinheiros, em Cash  (no nosso caso o alf mil inf Joaquim Custódio de Araujo Carneiro) (2);
  • O Chefe de Contabilidade (título que faz parte da estrutura do CA), cujo responsável era o alf mil SAM, Virgilio Teixeira (3),

Como nota explicativa, podemos  fazer um paralelo entre:

  • Os conselhos administrtivos das Unidades Militares (CAM);
  • Os Conselhos de Administração das Empresas (CAE).

As empresas privadas, de um modo geral, as médias e grandes empresas, são sociedades anónimas, que funcionam com uma estrutura, como todos sabem, os chamados os Conselhos de Administração, compostas no minimo com 3 elementos:

  • Um presidente, confundido atualmente com o CEO ("Chief Executive Officer");
  • Um vogal com funções multidisciplinares e que serve para desempatar em caso de litigios;
  • Um Administrador financeiro.

Sem me referir a nenhuma empresa em particular, existem muitas delas, em Portugal, nomeadamente, com unidades do mesmo grupo espalhadas por diversos pontos, e que tudo somado formam a empresa ou Grupo X, as quais devem apresentar as suas contas do exercicio à sua Holding , após devidamente aprovadas por orgãos independentes, normalmente os chamados "Auditores".

Compete ao CAE reunir, e apresentar o relatório e contas   em reunião formal aos Accionistas da Empresa, os quais aprovam ou não.

A grande parte deste trabalho é organizado pelo Administrador Financeiro.

O paralelo entre os CAM e os CAE é muito parecido, conquanto que os CAE são , mais unidades, sejam outras companhias operacionais espalhadas pelo sector que comandam, sejam pelotões independentes – Pel Rec Daimler, Pel Canhões sem Recuo, Pel  de Morteiros, Esquadrões de cavalaria, companhias de milicias, e outras mais subunidades... Tudo podendo perfazer no total mais de 3000 miitares, sob o comando do Comandante do Batalhão e sob a esfera administrativa do CAM .

No caso presente,  em Nova Lamego o meu BCAÇ 1933 tinha anexadas 17 subunidades independentes com um total de mais de 3000 militares para gerir,  o que era uma grande carga e trabalho e organização incompativel para um local de trabalho distante cerca de 300 quilometros da capital e sede da sua Chefia de Contabilidade (os "Auditores" ),

São grandes empresas privadas de até 4000 colaboradores que o aqui narrador teve a oportunidade de gerir na vida civil. Mas quero chamar a atenção que nunca fui Presidente de nada na minha vida toda.

Aliás, e melhorando a ideia, fui nomeado uma vez há muitos anos, para presidente da mesa numa assembleia de condóminos do meu empreendimento. Começaram a chamar-me "Senhor Presidente tem a palavra", meteu-me tanto asco por estas etiquetas que ao fim de uma hora terminou e jamais passei por essa cena vergonhosa.

Voltando ao cargo de CC do CA do BCAÇ 1933:

O paralelo está mais ou menos feito, mas claro que não são todas iguais. O CA do BCAÇ 1933, tinha a seu cargo múltiplas responsabilidades a saber:

  • A gestão do Fundo do Tesouro;
  • A gestão do Fundo Privativo;
  • A gestão dos Fundos Privados ("saco azul");
  • Os Fundos Confidenciais, a cargo do Comandanta do Batalhão (4);
  • A supervisão e acompanhamento dos pagamentos dos vencimentos a todo o pessoal, quer a parte que ficava na Metropole, quer a que recebia no CTIG;
  • Controlar e supervisionar as verbas de alimentação, a cargo dos Vagomestres, mas com prestação de contas ao CA (5);
  • Conferir, e reunir com todas as partes, e decidir de aprovar ou não, os famosos "Autos de Destruição", apresentados pelas Companhias e outras subunidades independentes, e que no fundo era listar e contabilizar os danos sofridos em flagelações do IN aos aquartelamentos, o que era dificil porque era tudo uma grande mentira do tamanho de todo o Sector (6);
  • Os gastos com despesas diversas, sejam de material corrente, sejam de materiais comprados no  comércio local para a protecção das tropas e pessoal civil (arame farpado, cimento, blocos, etc.);
  • As compras de alguns equipamentos de uso especifico, frigorificos, arcas, rádios, ventoinhas, e tanto outro material, as BIC e a Papelada !

Isto significa que não se podia gastar um Peso, sem a autorização formal do CC do CA, embora todos os restantes membros tinham de assinar os documentos de despesas.

O CC do CA também não poderia nunca fazer tudo isto sozinho, nem os outros, havia 3 assinaturas que não podiam faltar.

A prestação da contas, mensalmente, era feita junto da Chefia do Serviço de Contabilidade e Administração no QG em Bissau – pelos CC dos CA.

Este trio do CA era assim responsabilizado, cada um na sua função, pelo bom andamento das contas, e no todo, que teriam de ser aprovadas mensalmente na Chefia de Contabilidade (7).





Foto nº 1 > CTIG > QG > Chefia de Serviço de Contabilidade e Administração > Circular nº 51/68 > Bissau, 16nov68 >  Enviada para todos os Batalhões de Reforço, transcrevendo uma diretiva do Ministério do Exército, que determinava a extinção dos CA dos BR no CTIG, devendo a respectiva liquidação estar terminada em 31 de dezembro de 1968. 


Virgílio Teixeira ex-alf mil SAM, Chefe do CA, BCAÇ 1933
 (Nova Lamego e São Domingos, set 67 / ago 69) 


Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2025). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]


III - O fim  dos CA na Guiné

Feita esta explicação perliminar, vamos resumir como tudo acabou.

Não sei ainda se esta determinação da extinção dos CA dos Batalhões de reforço (BR), era dirigida apenas para a Guiné ou se era geral para todos teatros de operações.

  • No dia 16 nov  68 a Chefia do Serviço de Contabilidade e Administração- Secção do Orçamento, emite uma Circular para todos os Batalhões, trancrevendo uma diretiva do Ministério do Exército, Circular nº 51/68, determinando a extinção dos CA dos BR no CTIG, devendo a respectiva Liquidação estar terminada em 31 de dezembro de 1968. (Foto 1);
  • E as subunidades passariam a ser independentes para efeitos administrativos a partir de 1 janeiro de 1969;
  • E que brevemente seriam emitidas as normas para as subunidades.

E nada foi feito no nosso caso, porque no dia 20 desse mês de novembro o nosso comandante é ferido em combate e evacuado para o HMP na Estrela, e nunca mais apareceu.

Por causa disso, o Presidente do CA , 2º Comandante passa a ocupar interinamente o Comando do Batalhão, e o Oficial de operações major Graciano Henriques ocupa também interinamente a Presidência do CA, ou seja passa a ser o meu Chefe direto, o diabo caiu do Céu, pois este senhor era e sempre foi o meu maior inimigo no CTIG (8).

E assim, após uma fase atribulada com este Senhor, continuãmos no ritmo normal.

Chegamos ao final de 1968, e em janeiro de 1969, chega o novo reforço – O coronel Renato Xavier – a quem o pessoal deu o seu nome original – o "Papaias" (em alegoria ao seu principal modo de vida, a agricultura intensiva no nosso aquartelamento, uma vez que os terrenos eram escassos, e a tropa precisava de frutas e produtos frescos, e ele vendendo para as messes, cantinas e refeitórios, ganhava algum dinheiro extra, era o que diziam, pois já não é do meu tempo).

Na minha apresentação ao novo Comandante, acho que ele me viu com indiferença, mas não me lembro desse episódio, e eu com mais indiferença para ele.

Penso que o meu ‘amigo’ o major Graciano, que voltou para a sua função normal nas operações, deve ter-lhe enchido os ouvidos e olhos.

Daí por diante começa, um período negro nas relações pessoais, já nada era como antes (9).

O encerramento das contas, não foi obviamente feito no prazo, devido a estas contingências, e em 31/12/68 continuávamos com tudo igual.

Começo a perceber que as coisas vão demorar, não há diretivas internas como proceder.

(Continua)

(Revisão / fixação de texto: LG)

_______________

Notas do autor;

(1) Já foi postado há anos, mas escaparam outros contornos que agora já poderei contar.

Este Poste que o editor alterou o titulo, porque segundo ele explicou, um Militar nunca foge!

É verdade, mas não foi uma fuga à guerra, mas sim aos novos comandos do meu batalhão, face à evacuação do nosso comandante ten cor inf, Armando Vasco de Campos Saraiva, devido a ferimentos graves em combate, no dia 20 de novembro de 1968, a curta distância do fim da pista em S.Domingos.

(2) Nunca percebi porque esta função foi cometida a um militar de infantaria, quando devia ser alguém oriundo da Escola Prática de Administração Militar (EPAM) . Esta Escola Prática de Serviços funcionava na zona de Alvalade e Lumiar. Há poucos anos ainda perguntei a este membro porquê ele foi desviado de infantaria para o CA? Sempre se desviou da conversa, mas julgo que foi uma cunha de alguém, porque já era casado e tinha um filho de 2 anos! 

(3) Esta função em qualquer CA quer seja de Batalhões de Reforço, ou de unidades militares fixas, como seja o caso dos Comandos, Paraquedistas, Adidos, Bases da Força Aérea, Bases dos Fuzileiros, do Quartel General e outros é da responsabilidade máxima da Administração Militar, que no fundo gere os fundos dde todas as subunidades operacionais.

Vou relevar aqui as relações entre eu o CC do CA e o meu comandante de batalhão, por achar dever ser do conhecimento de todos os interessados.

O comandante é o primeiro responsável pelas contas certas do batalhão. Mas essa função é cometida ao segundo comandante, por lei, como presidente do CA. Ele só pode regressar após a  aprovação das contas do seu batalhão.

Ele pode,  se assim entender, ordenar os gastos da sua unidade como quiser, ficando como o seu responsável final,  caso as verbas sejam desviadas para outros fins.

Quando o BCAÇ 1933 se formou em Tomar, no RI 15, julgo que começou por volta de junho 67, ele ficou à espera do seu chefe do CA para tomar decisões quanto às compras de várias coisas, sejam administrativas ou de lazer e conforto.

Já todo o CA estava formado e pronto, no inicio de agosto de 67, mas o CC do CA não aparecia em Santa Margarida onde se encontravam as tropas a fazer o IAO. Quem foi nomeado para esta função fui eu – o alferes Teixeira  , que me encontrava então à espera de alguém no BC 10 de Chaves para fazer o estágio no CA daquela unidade. 

Mas era fim de julho e depois agosto, e como não havia ninguém no CA para dar a tal formação, estava tudo de férias, e com aquele calor sofucante, eu simplesmente deixei de aparecer durante duas semanas, isto é, tecnicamente era um desertor.

Nunca falei com ninguém no BC 10, apenas me apresentei lá ao Comandante no dia em que cheguei e nunca mais falámos. Aluguei uma cama numa vivenda no centro, de uma senhora que vivia sozinha, onde eu dormia no hall de entrada, e tomava banho, tudo o resto era cá fora. 

Tinha o tempo todo livre para poder visitar e estar com umas amigas de Chaves, a minha segunda terra, até hoje continua a ser. Havia muitas ligações, ia com o meu irmão nos camiões militares quando ele ia fazer serviços de Rádio no interior de Trás- os -Montes, as muitas vezes que fomos para festas e aniversários, com um colega do meu irmão que também esteve como ele, prisioneiro no Estado Português da India, e outro amigo também de Chaves, a ligação com as minhas amigas também de Chaves. Nunca passei tanto frio e calor como em Chaves.

Nas ruas nada se via, os meses de verão eram também de férias escolares, e os cafés e outros espaços, não tinham ninguém, exceto a classe idosa que tomava os seus copos nos cafés e tascas, as quais eu também frequentava. E só nos fins de semana havia algum movimento, mas eu estava no Porto, com a namorada. 

Eu tinha um amigo do meu pai, o capitão Gamelas, que às segundas feiras de manhã cedo me apanhava no jardim da Arca de Água, e no seu carocha preto me levava para Chaves por aquelas estradas sinuosas com o rio lá a umas dezenas de metros no fundo, a estrada sem qualquer protecção, e era sempre a abrir, eu aproveitava também para passar pelas brasas e ao fim de umas 3 horas chegávamos ao quartel depois de percorrer uns 180 /200 quilómetros de estrada empedrada e perigosissima.

E às 9 horas estávamos ao serviço.

Na sexta à tarde faziamos a viagem de regresso, sempre com calor abrasador, e com o melhor ar condicionado que havia na altura, as janelas abertas. E assim fizemos umas 4 semanas, e não pagava nada. O capitão Gamelas estava a formar uma companhia com destino à Guiné, onde acabei por me encontrar com ele nos anos 67 ou 68.

Eu pedi para ele dar uma olhada se alguém me procurava no BC10, ou se o meu instrutor já teria chegado. Mas nunca obti nenhuma informação, e ao meu pai disse apenas que estava de licença.

No dia 9 de agosto aparece um telefonema que o meu pai atendeu. Era o comandante do BC10, um coronel que não me lembro do nome. Quando chego a casa ao fim da tarde, depois de ir à praia do Castelo do Queijo, na Foz, o meu pai dá-me logo "uma guia de marcha" para Chaves, imediata. Vou logo para a estação de Campanhã e apanho o comboio da noite e estou no quartel de manhã bem cedo e apresento-me ao comandante.

Ele só não me bateu por consideração, mas deu-me uma daquelas ‘broncas à militar’ que me arrepiou, e lembro apenas do que me disse e fixei:

- Não leva uma porrada por consideração ao seu pai... E também não lhe dou qualquer castigo, porque já tem um bom castigo para cumprir, vai para a Guiné, o pior sitio que lhe podia calhar.

Era o dia 10 de agosto de 1967, a data da minha mobilização oficial, embora já tinha sido no início do mês mas não estava presente. Nesse dia e com a Guia de Marcha oficial, mandam-me apresentar de imediato em Santa Margarida para me juntar ao meu batalhão que se formou e já tinha o número de 1933.

Quando chego a Santa Margarida, e me apresento ao comandante, vejo logo os olhos que me deita. A conversa não me lembra, pois o segundo comandante recebeu-me bem, pois precisava de mim para umas saídas para Bissau, e fizemos um pacto que eu não vejo necessidade de aqui o reproduzir, pois ele há muito que já faleceu, a esposa também, mas tem os filhos ainda vivos.

O comandante desesperado pois queria fazer as compras antes do embarque, foi dizendo que precisava disto e daquilo para conforto das NT, especialmente para a Messe de Oficiais.

Eu nada sabia como fazer isso, e respondi "não" a tudo! Arranjei logo o primeiro inimigo.

Mas eu não sabia mesmo, nem tinha o orçamento dos fundos do tesouro, fui apanhado a zeros, por causa de me baldar no curso e de não fazer estágios nem na EPAM nem depois no BC 10. A culpa não era minha, mas sim deles que me mandaram para a frente do touro sem ter as armas para me defender.

Muitas décadas depois o nosso Tesoureiro, que eu encontrava muitas vezes na Póvoa de Varzim, onde ele tinha segunda casa de férias, veio a contar-me coisas que eu não sabia.

Logo o comandante em Santa Margarida terá dito ao seu confidente, o Tesoureiro, carne e osso , que não sabia como mandaram um rapazito para uma função tão melindrosa. Veio depois a saber que não era assim, quando viu os resultados do meu trabalho. Abeirou-se um dia, um ano depois de lá estarmos no CTIG, e confidenciou ao Tesoureiro: "Afinal temos aqui um militar de administração muito competente, e por isso vou preparar um Louvor para ele".

 Naturalmenteque o nosso tenente coronel Saraiva já teria tido outra comissão e sabia o quanto dificil era esta função naquelas condições longe das chefias.

Não teve tempo, pois entretanto teve a mina e emboscada que o mandou evacuado para o Hospital e nunca mais o vi, apenas 15 anos depois num almoço do batalhão em Tomar, andava ele com umas pernas postiças, e tive muita pena dele, apesar de tudo.

E para não deixar outro pormenor para trás, contou-me um dia também o condutor Boubon, impedido do 2º comandante e seu confidente, que tinha muito apreço por mim e ia dar-me um Louvor. Não chegou a dar, porque com o fim dos CA não voltei a S. Domingos e fiquei adido a outros serviços em Bissau. O nosso major presidente do CA não voltou com o seu batalhão no mesmo barco, porque teria de assinar as contas das novas companhias independentes, e por lá ficou.

Disse ao Burbon na despedida, que ele ia voltar para casa, mas o major não, e depois iria novamente para outra comissão. Disse-lhe que lamentava não se despedir de mim, e que ficou em divida comigo e com os louvores. O Burbon, um bem sucedido industrial têxtil de Guimarães, vinha passar férias em Vila do Conde e encontrámo-nos imensas vezes, e por ele vim a saber tanta coisa que me passou ao lado, porque não fazia parte do tal Casino de S. Domingos.

(4) Recebia mensalmente a quantia de 12500$ para despesas com informadores, presentes para os Homens Grandes das tabancas, e outras que nem eu sei. Não tinha de prestar contas.

Quem acompanhava este cofre, era o nosso Tesoureiro, e diz ele que o comandante de uma seriedade sem fim, pouco gastava e o saldo passava de mês para mês chegando a acumular muito dinheiro. Parte desse dinheiro era também entregue aos Comandantes das companhias, e outras subunidades independentes. Mas nada sei em concreto do uso deste fundo.

(5) Falava-se de muita coisa, pois havia sempre uma percentagem de pessoal que não aparecia nas refeições, mas no mapa constava sempre a totalidade, e as refeições eram feitas com menos quantidade, menos gastos, e compensada com outras faturas/papéis de compras locais, que bastava o dedo para a assinatura

(6) Uma companhia no Boé  (a CCAÇ1589),  por exemplo, que tinha mais de 300 ataques e flagelações por ano, todas tinham ‘materias e bens destruidos´que depois teriam de ser substituidos por outros , comprados no mercado local, com assinatura por dedo, e os dinheiros não sei que destino levaram.

Ou, os bens destruidos, alimentares, gasolinas, e afins, podiam ser substituidos por novas remessas da Manutenção Militar e,  como não eram precisos, vendia-se às populações locais cuja receita era revertida para a Unidade, para o seu Fundo Privativo, vulgarmente conhecido pelo famoso nome de ‘saco azul’ ( ninguém quer aceitar e confirmar a sua existência).

Isto não é invenção minha, não só porque se via claramente a sua ilegitimidade, como acabou por ser denunciado pelos próprios beneficiários do esquema.

Não valia a pena levantar a lebre, pois quem ficava mal era o CC e tudo se passava com a maior normalidade. No final faziam parte das contas do Estado e os Fundos do Tesouro.

(7) Isto quer dizer que, no fim da comissão, o CA nomeadamente o CC nunca poderia ter Guia de Marcha para a Metrópole, sem as contas aprovadas, o que era também extensivel ao Presidente do CA e também ao próprio Comandante.

Daí que sendo o CC o responsável final na aprovação das contas, era tratado com cuidado e respeitado por todos. Os comandantes tinham sempre muito medo de no final não poderem embarcar por falta de aprovação das contas.

Mas também, o CC era o único que trabalhava a tempo inteiro, mesmo a dormir e a pensar como resolver muitas situações que não percebia, no meu caso, porque não liguei grande coisa à minha formação, situação que me causou sempre muitos problemas.

Foi a minha experiência anterior de 12 anos que me ajudou imenso.

O Presidente que sempre nutri por ele grande respeito, desde o dia 10 de agosto de 1967, em Santa Margarida, quando me apresentei na minha nova unidade, ele, o major Américo Correia levou-me a Tomar, ao RI 15, para tomar contacto com este Regimento, e acabei por conhecer a mulher e filhos. Acho que aí percebi que tinhamos de fazer um pacto a dois. E assim foi.

Nunca se meteu em nada do serviço do CC, passava por lá bem cedo, nem sempre eu estava presente, muito menos o Tesoureiro, tratava com os nossos amanuenses, furriel Pinto e furriel Riquito, bem como os escriturários cabo Horta e cabo Seixas. Assinava todos os papeis que se encontravam nas mesas, a maioria não era nada, e ia-se embora e dormir mais um bocado.

O Tesoureiro do BCAÇ 1933, não tendo grande trabalho, passava no CA uma hora se tanto, depois ia para o quarto ‘Estudar para os exames’ que fazia nas férias do Curso de História, ou a dormir, porque à noite após o jantar juntavam-se quase todos os oficiais, comandante e 2º comandante incluidos, no chamado ‘Casino’ que funcionava na própria messe, e prolongava-se até madrugada, a jogar não sei quê porque não sei nem sabia jogar a nada.

Jogavam duro segundo o que me contava o Tesoureiro, que dizia que ganhava sempre, e ainda hoje, é incrivel que sempre que falamos conta a mesma coisa que o major Henriques, o nosso Oficial de Operações, lhe ficou a dever 400 escudos que nunca lhe pagou...

(8) Na minha apresentação acho que ele me viu com indiferença, mas não me lembro desse episódio, e eu com mais indiferença.

Penso que o meu ‘amigo’ o major Graciano, que voltou para a sua função normal nas operações, deve ter-lhe enchido os olhos.

Começo logo a ser nomeado para diversas acções que não eram da minha função, nomeadamente a comandar patrulhas à volta do aquartelamento – as rondas -, levando comigo operacionais, e sendo uma secção ia um furriel, que julgo que seriam da companhia de cima,  a CART 1744, do Capitão Serrão, e alferes Gatinho e muitos furriéis que conhecia da messe onde eu passava então as noites nos copos, já que na messe de oficiais estavam todos a jogar.

Comecei a perceber que isto das rondas ao fim do dia, não era para se fazer, pois, uns quilómetros à frente lá haviam os tais abrigos, onde a tropa se acoitava, e depois regressava ao quartel evitando-se prováveis contactos com o IN.

Aqui criei algumas amizades, que ainda hoje são lembradas como tempos inolvidáveis.

Então além disto e outras mais, era frequentemente nomeado para os serviços de oficial de dia, devendo estar presente em todas as etapas do dia, em especial as rondas aos abrigos e postos de vigia, onde se passaram algumas cenas hilariantes.

(9) E nestas nomeações aparece um dia em que vou a comandar uma pequena força, e de Sintex (**) fomos para a companhia de Susana, a CCAÇ 1684, nessa data, para carregar alguns mantimentos pois havia falta de muita coisa , devido não só às chuvas e ciclones que levaram pelo ar os telhados de zinco dos armazéns e ficou tudo estragado, mas também a uma flagelação do IN à noite e que acabou por destruir outros armazéns.

Nesta saída a Susana em inícios de 1969, era a segunda, acabamos por ir mais uma vez a Varela ver aquelas praias excelentes e de Burrito, fardados e armados,  lá fomos pela areia fora até ao Cabo Roxo – fim de linha do nosso território – e fronteira com o Senegal.

Deparamo-nos com um espetáculo impensável, as caravanas vindas de Zinguinchor e Dakar com o pessoal branco, franceses e em especial belas francesas em bikini, que iam apanhar o Ferry para as praias ao largo. As mulheres ficaram um misto de atarantadas como surpresas, verem tanto homem jovem fardado e armado, nem sei se sabiam que existia uma guerra ali aolado. Ficámos a xuxar no dedo e a acariciar as nossas G3.

Isto pode parecer um filme, mas é verdade, e só não sei ainda hoje, porque não tirei umas fotos, pois tenho muitas fotos, antes na praia e depois no regresso. Talvez tive algum tipo de receio. Se as tivesse faziam furor hoje e antes.

Quando após 2 ou 3 dias regressámos no mesmo Sintex, conduzidos pelo piloto que era de Engenharia, e conhecia tudo aquilo como a palma das mãos, apoiado com um soldado da Companhia de Caçadores Nativos, sei bem quem era, mas não me lembro do nome, que empunhava uma arma M6 ou Drise, com fita de carregadores a tiracolo, e uma caixa de madeira cheia de munições, mais dois soldados com G3 e cartucheiras, e eu também armado de G3 e cartucheiras, a comandar aquilo tudo, não sabendo o que fazer em caso de ataque terrorista, ou outra qualquer eventualidade. Hoje penso que, com a nossa mania do desenrascanço, alguma coisa deveria fazer. Mas nada aconteceu.

Comunicações nada, gasóleo pouco, dois motores fora de borda de 50 CV e a "banheira" cheia de sacos de batatas, da MM, bananas e outra coisas que não me lembro, pois, um dos homens devia ser da alimentação, a mando do vagomestre.

Voltámos ao rio, é comunicada a hora da nossa saída, dentro de duas horas deveríamos chegar, mas só chegámos passados dois dias. São muitos rios, pequenos e engolfados que se misturam em enormes tentáculos de polvo, e não andámos muito até que o piloto já não sabia bem por onde ia, parece tudo igual, mas afinal muito desigual. 

Ficámos então perdidos após horas de tentar encontrar a saída, e assim se esgotava o combustível. Não havia modo de comunicação, os comeres e beberes iam faltar. E, dada a minha forma de ser não me atrapalhei, e dei confiança ao resto do pessoal. Não sei o que falámos, talvez nada.

Esperávamos que fosse dado o alerta pela hora, e eu pelo menos deitei-me por cima dos sacos de batatas, e fui dormitando, e ainda bebi uma cervejola, quente, mas útil face às condições.

Acabámos por ir parar a um sítio, esse mesmo no cu de judas, pois ainda hoje não sei a que aldeia aportámos. Ao longe fomos avistando um sitio inacreditável, e fui tirando fotos. Quando já estamos a chegar vemos um "pelotão" de Felupes, quase nus e armados até aos dentes,  com arco e flexa do tempo dos índios americanos.

O cais de desembarque não havia, era tipo "Normandia em África", e qundo a pata sai do barco e enterra-se num lamaçal lodoso, ficámos com as botas cheias de tarrafo ou porcaria.

A população amiga recebe-nos com sorrisos mas nada percebemos, estes eram mesmo naturais da "Felupelândia". Umas fotografias para o Álbum, e lá estou eu no meio de crianças dos seus 5 anos até homens com 2 metros de altura, eu ficava abaixo do ombro deles.

E fomos esperando (sentados !) dentro do barco, mas não desesperando. Passados dois dias, vemos um Heli lá em cima, depois aparece uma avioneta e somos encaminhados pelos rios com o pouco combustível que restava, com certeza foi alguém a nadar e a puxar o barco, e assim chegámos ao Rio São Domingos, que faz parte do Grande Rio Cacheu já nosso conhecido. Acho que eles perceberam isso, e foram embora, também não havia sítio para aterrar aeronaves.

Nunca se falou no assunto, não veio na ordem de serviço nem na História da Unidade. Muito pouca gente veio a saber desta aventura.

Muitos anos depois venho a ter conhecimento, por um ex-1º cabo telegrafista, que num almoço de batalhão me veio contar como ele me safou a mim e aos outros "perdidos",  não deixando de contactar sempre a Força Aérea que assim nos encontrou. 

E fica a pergunta: e se não nos encontravam, o que seria feito dos 5 aventureiros perdidos no cu de Judas?

Boa pergunta sem resposta!

©  Virgílio Teixeira (2025)


(Revisão / fixação de texto: LG)

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Notas do editor:

(*) Tema T008 – A minha fuga de Sáo Domingos ao estilo do Papillon (que não chegou publicado ns série  "Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)".

6 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18180: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte VII: Perdidos no rio Cacheu, em maio de 1968 (2)

Guiné 61/74 - P26433: Fichas de unidade (38): BCAÇ 507 (Bula, 1963/65)



Batalhão de Caçadores nº 507

Identificação: BCaç 507

Unidade Mob: RI 2 - Abrantes

Cmdt: TCor Inf Hélio Augusto Esteves Felgas

2.° Cmdt: Maj Inf João Luís Freire de Almeida | Maj Inf José António Monteiro de Oliveira Leite

OInfOp/Adj: Cap Inf Carlos Elmano Rocha

Cmdt CCS: Cap Inf Agostinho da Costa Alcobia

Divisa: -

Partida: Embarque em 14Ju163; desembarque em 20Jul63 | Regresso: Embarque em 29Abr65

Síntese da Actividade Operacional

Foi constituído e organizado a partir do BCaç 239, do qual transitaram os elementos de recompletamento. Era apenas composto de Comando e CCS, não
dispondo de subunidades operacionais orgânicas.

Em 20Ju163, sucedendo ao BCaç 239, assumiu a responsabilidade da zona NO e N da Guiné, designada por Sector B, após a remodelação do dispositivo de 2Ag063, desde a costa atlântica à linha Cuntima-Porto Gole e até aos rios Mansoa e Geba, com a sede em Bula e integrando as companhias estacionadas em Teixeira Pinto, Mansoa, S.Domingos e Farim e os pelotões de reforço, cujos efectivos se encontravam disseminados por várias localidades. 

Com a chegada de novas companhias, foram, sucessivamente, criados os subsectores de Mansabá e Ingoré, em 28Jul63 e Bissorã, em lAg063.

Em 1Set63, por entrada em sector do BCaç 512, a zona de acção foi reduzida dos subsectores de Mansoa, Farim, Mansabá e Bissorã, sendo, entretanto,
criados, em 8Mai64, mais o subsector de Binar e, em 02Mar65, ainda o de Có.

Desenvolveu intensa actividade operacional de patrulhamento, de reconhecimento,
batidas e emboscadas, com o objectivo de desarticular e limitar as acções do inimigo e barrar o alastramento da subversão para Oeste e garantir a segurança e protecção das populações, quer actuando sobre as bases de refúgio, quer sobre as linhas de infiltração do inimigo.

Pelos resultados obtidos em armamento e material capturado, destacam-se
as operações "Fisga" e "Beja", entre outras.

Dentre o material capturado mais significativo, salienta-se: 
  • 2 metralhadoras ligeiras, 
  • 5 pistolas-metralhadora,
  • 8 espingardas,
  • 3 minas
  • 2832 munições de armas ligeiras.

Em 28Abr65, foi rendido no sector de Bula, então já designado por Sector
01, desde 11Jan65, pelo BCav 790 e recolheu seguidamente a Bissau, a fim de
efectuar o embarque de regresso.

Observações -  Não tem História da Unidade.

Fonte: Excerto de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pp. 49/50.
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Nota do editor:

Último poste da série > 20 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26404: Fichas de unidade (37): BCAÇ 599 (Tite, 1963/65)

Guiné 61/74 - P26432: Notas de leitura (1767): A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Setembro de 2023:

Queridos amigos,
Entre os historiadores estrangeiros que se debruçaram aturadamente sobre o império marítimo português, Charles Ralph Boxer é um dos nomes mais sonantes. Convidado a fazer um texto sobre o balanço da colonização portuguesa, em 1975, centrou as suas observações em África, entre 1415 e 1800. Começa logo por dizer que as praças-fortes semeadas ao longos das costas africanas eram essencialmente entrepostos de escravatura, houve uma contradição de base jamais resolvida: a apregoada propagação da fé e conversão das populações africanas, isto enquanto se escravizam as mesmas almas que eram objeto de cuidados dos missionários. Havia singularidades como Cabo Verde e S. Tomé, onde se assistiu à destribalização e à cristianização, mulatos e negros livres trabalhavam a terra e mesmo em S. Tomé possuíram a maior parte da ilha, daí o massacre de Batepá, em 1953, quando o Estado Novo se pôs ao lado dos roceiros e os seus propósitos capitalistas; Boxer chama a atenção para a fanfarronice dos monarcas portugueses intitularem-se "Senhores da Guiné", coisa que nunca foram; e dá-nos um quadro admirável da presença portuguesa no Congo, não deixando no final do artigo de recordar que a ocupação efetiva do interior e as tentativas bem-sucedidas da colonização branca datarem apenas dos fins do século XIX.

Um abraço do
Mário



A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (3)

Mário Beja Santos

Iniciativas Editoriais foi uma editora altamente conceituada dirigida por José Rodrigues Fafe, os temas sociopolíticos foram o seu polo atrativo. Lançou um projeto aliciante, o de juntar um conjunto de profundos conhecedores da historiografia da colonização portuguesa e pedir-lhes uma apreciação em jeito de balanço. Demos a palavra já aos professores Banha de Andrade e Frédéric Mauro, excluímos Eric Axelson dado que este se focaliza na colonização portuguesa no sudeste africano entre 1505 e 1900, e damos agora a palavra a Charles Boxer que se irá centrar no tema As raízes de Portugal em África, 1415-1800. Este eminente historiador recorda que a presença portuguesa em África foi objeto de grandes divergências entre diferentes historiadores. Houve críticos que clamaram que durante mais de três séculos o interesse primacial de Portugal era o comércio negreiro. “As praças-fortes portuguesas semeadas ao longo das costas africanas de Arguim (1445), na Mauritânia, a Mombaça (1593), no Quénia, eram essencialmente entrepostos de escravatura. Mesmo após a sua relutante abolição da escravatura no decurso do século XIX, os portugueses continuaram a depender fortemente de várias categorias de trabalho forçado ou contratado, que frequentemente eram formas ligeiramente disfarçadas de servidão.”

Em oposição, houve quem escrevesse e argumentasse que os portugueses eram mais humanos no trato dos escravos do que quaisquer outros europeus, não tinham barreiras de cor nem preconceitos sexuais. Nesta observação havia um dado histórico irrefutável: “Os portugueses tinham sido parte integrante da cena africana por mais de quatro séculos.” E lembra um depoimento de Cunha Leal, um crítico de Salazar, que assim escrevia: “É preferível, mil vezes preferível, o nosso colonialismo honrado e progressivo, ao colonialismo de certos anticolonialistas, em especial ao da Rússia, com os seus campos de concentração, e ao dos EUA, com o seu odioso racismo interno.” Há em tudo isto uma dicotomia nas atitudes portuguesas com os africanos nunca resolvida: por um lado, o propósito de converter os africanos ao cristianismo e, por outro, a ânsia em escravizar os tais pagãos ignorantes.

Quando os portugueses chegaram a Terra dos Negros, a Senegâmbia, rapidamente compreenderam que era muito proveitoso obter escravos através de permuta com os Mandingas, os Jalofos e outros povos, independentemente de as navegações irem descendo a caminho do Cabo da Boa Esperança. A grande maioria destes chefes africanos não puseram dificuldades em permutar homens, mulheres e crianças capturados em guerras intertribais. E Boxer também observa que os escravos africanos trazidos para Portugal eram relativamente bem tratados, apesar das práticas discriminatórias (por exemplo, os negros livres não podiam tornar-se aprendizes da corporação dos ourives). Nalguns lugares (caso de S. Tomé) os africanos destribalizaram-se e cristianizaram-se. E nasceu uma nova realidade: “Os brancos guardaram o controlo dos altos postos do governo, da Igreja, e da economia; mas os mulatos, mestiços ou filhos da terra, obtinham por vezes posições de poder ou influência, bem como boa parte da terra (…)"

As ilhas de Cabo Verde eram descritas pelo seu governador em 1628 como sendo o cemitério e a estrumeira do império português. Em contrapartida, um jesuíta português que visitou a ilha de Santiago durante a semana de Natal de 1652, ficou muito impressionado com o alto nível do clero indígena. Escreveu o Padre António Vieira: “São todos pretos, mas somente neste acidente se distinguem dos europeus. Têm grande juízo e habilidade e toda a política que cabe em gente sem fé e sem muitas riquezas, que vem a ser o que ensina a natureza. Há aqui clérigos e cónegos tão negros como azeviche, mas são compostos, tão autorizados, tão doutos, tão grandes músicos, tão discretos e bem morigerados, que podem fazer inveja aos que lá vemos nas nossas catedrais.”

Refere igualmente Boxer que embora os monarcas portugueses se intitulassem “Senhores da Guiné” desde 1481, a Coroa não fez qualquer tentativa para ocupar mais do que uns quantos postos de apoio costeiros com vista ao comércio de escravos, ouro, marfim, cera, malagueta, entre outros. A língua portuguesa passou a ser língua franca por muitos nos Rios da Guiné, muitos topónimos da costa ocidental africana são também de origem portuguesa. Os portugueses permaneceram em S. Jorge da Mina até 1637, estavam acantonados, mas permutavam bacias de latão, braceletes, contas, têxteis e outras mercadorias por ouro, marfim e escravos trazidos por mercadores africanos do interior. Mantiveram contactos de grande significado, caso do Benim, que era então o mais importante Estado do que é hoje a Nigéria. A presença portuguesa ficou atestada pelos bronzes a marfins artísticos produzidos no século XVI, representando soldados portugueses, mercadores de escravos, e por pequenos artigos tais como pimenteiros, saleiros que vieram a ser transacionados no mercado europeu. A ação missionária a norte do Equador não conduziu a resultados duradouros, mas os missionários foram mais bem-sucedidos no velho reino do Congo, e Boxer alarga-se em considerações sobre a presença portuguesa na região.

Pelo adiante, dirá que os portugueses nunca tentaram estabelecer-se no Cabo da Boa Esperança e observa que as suas praças-fortes costeiras no atual território de Moçambique, Sofala (1505), ilha de Moçambique (1507) e Quelimane eram escassamente povoadas e só a ilha era fortemente fortificada. E dá conta de como se processou entre os séculos XVI e XVII as formas de ocupação no vale do Zambeze e na região de Manica. Ajeitando as conclusões neste seu artigo, Boxer dirá que as raízes portuguesas em África até tempos recentes da ocupação efetiva do território foram sempre muito fracas. “Por exemplo, em meados do século XIX havia apenas 1800 brancos em Angola, a maioria dos quais em Luanda. Bissau tinha só 16 europeus; e a ilha de Moçambique, que se manteve continuamente na mão dos portugueses desde 1507, tinha só 6 famílias brancas em 1822.”

É evidente que as doenças tropicais, particularmente a malária, a disenteria infeciosa, a febre biliosa, a doença do sono e a triquiníase fizeram de África o que se designava pelo túmulo do homem branco antes das descobertas científicas e médicas de fins do século XIX. E Boxer adianta uma outra observação: “O homem português emigrava sozinho para África. Raramente o acompanhava uma mulher branca até mesmo ao século presente.” E, mais adiante: “E é por demais sabido que as tribos africanas e os povos para além da franja costeira opunham uma resistência muito forte (…) As raízes portuguesas em África limitaram-se por séculos aos estabelecimentos costeiros e a alguns vales insalubres. A ocupação efetiva do interior e tentativas bem-sucedidas de colonização branca datam apenas de fins do século XIX e particularmente dos tempos da Segunda Guerra Mundial.”

Findo o texto de Charles Boxer, Joel Serrão reserva-nos um texto admirável, datado de janeiro de 1975.

Charles Ralph Boxer (1904-2000)
Castelo de São Jorge da Mina, Gana, imagem recente
Saleiro bini-português, século XVI
Saleiro bini-português, século XVI
Fortaleza de Cacheu, Caminho de Escravos
Cabo Verde, desenterrada a igreja mais antiga dos trópicos. Imagem do Público, com a devida vénia

(continua)
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Nota do editor

Vd. post de 13 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26385: Notas de leitura (1764): A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 24 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26421: Notas de leitura (1766): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, os acontecimentos posteriores à campanha de Teixeira Pinto, 1917-1919 (11) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P26431: Prova de vida (9): Padre José Torres Neves, ex-alf grad capelão, BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71), nosso grão-tabanqueiro nº 859 (Ernestino Caniço)


Lisboa > 18 de janeiro de 2025 > O dr. Ernestino Caniço e padre José Torres Neves


Foto (e legenda): © Ernestino Caniço (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71),.
nosso grão-tabanqueiro nº 859


Foto (e legenda): © José Torres Neves (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Ernestino Caniço, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2208 (Mansabá e Mansoa) e Rep ACAP - Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica, (Bissau) (Fev 1970/Dez 1971) (médico, foi diretor do Hospital de Tomar, 6 anos, de 1990 a 1996, e diretor clínico cumulativamente 3 anos, de 1994 a 1996, vivendo então em Abrantes; hoje vive em Tomar).

Data - sexta, 24/01/2025, 19:08  
Assunto - Padre Zé Neves
 
Caros amigos

Votos de ótima saúde.

O contacto de hoje tem por fim fazer uma “prova de vida” do meu amigo Padre Zé Neves. Depois de flanar por vários países pelas Missões da Consolata, “poisou” em Lisboa. O facto permitiu que nos encontrássemos e do qual anexo uma fotografia.

Do seu valioso álbum de fotografias, com o qual me brindou, vou continuar a enviar-vos sempre que oportuno.

Um abraço,

Ernestino Caniço

2. Comentário do editor LG:

Ernestino e Padre Zé Neves:

Fiquei/ficámos feliz(es) por saber novas do nosso capelão e grão-tabanqueiro.  Bom filho à casa torna. E também já é tempo de ele voltar a montar o bivaque cá na nossa santa terrinha. 

Fica feita a "prova de vida". E prometemos continuar a publicar mais fotos do álbum do padre Zé Neves, carinmhosamenet "guardadas" pelo dr. Ernestino Caniço, seu amigo dos tempos da Guiné.

Recorde-se que o José Torres Neves (Padre), natural de Penamacor, missionário da Consolata, tem mais de 3 dezenas de referências no nosso blogue, para o qual entrou em 22/3/2022, oi alf graduado capelão, BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71)...

Ernestino, gostei desse verbo intransitivo, "flanar" (dem francês, "flâner"), que se lê ou ouve tão poucas vezes. Quem me dera a mim, poder "flanar" como o padre Zé Torres, por essa África, com a bonita idade que ele já tem. Ele merece o nosso apreço, admiração e amizade.  Um alfabravo e saúude para os dois, Luís.

PS - Flanar=Passear sem destino e sem pressa, por mera distracção

Fonte: "flanar", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2025, https://dicionario.priberam.org/flanar.

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Guiné 61/74 - P26430: O segredo de... (49): António Medina (1939-2025) - Parte V: Comentários (2014): (I) Vasco Pires / Luís Graça / Manuel Carvalho / António Graça de Abreu / Joaquim Luís Fernandes / Júlio Costa Abreu / Manuel Luís Lomba / António Rosinha / António Medina / César Dias / Carlos Pinheiro / João Lemos



Guiné > Região do Cacheu > Zona Oeste > Sector 01 (Teixeira Pinto) > Jolmete > "Eu com o Dandi Djassi, futuro capitão de milícia, em pose para a foto".

Foto de Manuel Resende.  ex-alf mil, CCaç 2585/BCaç 2884, Jolmete, Pelundo e Teixeira Pinto, 1969/71.

Foto (e legenda): © Manuel Resende (2012). Todos os direitos reservados, [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Major General Hélio Esteves Felgas (1920-2008): duas comissões na Guiné  (Bula, 1963/64; Mansoa, Tite, Bafatá, 1968/69); um dos militares portugueses da sua geração mais condecorados, autor de dezenas de livros e artigos sobre a "luta contra o terrorismo", a guerra ultramarina... Comparou a Guiné ao Vietname. Também considerava que a solução para a Guiné não era militar mas política... Foi, todavia, um crítico de Spínola que lhe terá roubado, entretanto, a ideia dos reordenamentos (aldeias estratégicas) (1). Um oficial intelectualmente brilhante mas controverso, dizem alguns dos seus pares, mais novos. (Foto gentilmente cedida ao nosso blogue pela filha, Dra. Helena Felgas, advogada, que era amiga do prof Jorge Cabral.)
 


1. Na altura, a "partilha do segredo" do António Medina (1939-2025) (*) provocou diversos comentários (**) que merecem ser aqui revistos, incluindo a resposta do autor (que infelizmente acaba de nos deixar no início deste ano). Também o Vasco Paris (1948.2016), camarada da diáspora lusófona já não está entre nós (morreu no Brasil).

Outro camarada da diáspora lusófona é o Júlio Costa Abreu, é contemporâneo dos acontecimentos tal como o Manuel Luís Lomba. Camnaradas de épocas diferentes, mas que conheceram o "chão manjaco": Manuel Carvalho, António Graça de Abreu, Joaquim Luís Fernandes e João Lemos, além do António Medina.


(i) Vasco Pires (1948-2016) (ex-alf mil. cmdt, 23º Pel Art, Gadamael, 1970/72),

"War is hell,"

"You cannot qualify war in harsher terms than I will. War is cruelty, and you cannot refine it; and those who brought war into our country deserve all the curses and maledictions a people can pour out. I know I had no hand in making this war, and I know I will make more sacrifices to-day than any of you to secure peace."


General William Tecumseh Sherman

Parabéns, Camarada, por conseguires exorcizar os teus "fantasmas".

terça-feira, 24 de junho de 2014 às 20:25:00 WEST 

 PS -  (...) Fiz a citação do major-general Sherman, por se tratar de um militar da terra de adoção do camarada Medina.

Citei-o também, por ser o autor da célebre frase "War is hell", repetida até hoje à exaustão.

Transcrevi a frase seguinte, por ter sido feita, por um militar considerado intransigente, num momento de decisão particularmente difícil - a evacuação e incêndio de Atlanta.

Quanto a juízos de valor,nada tenho contra quem os faz, contudo, eu tento não os fazer. (...)


(ii) Luís Graça, editor

Nunca é demais recordar uma das regras básicas do nosso blogue, sem a qual não pode haver "partlha de memórias e de afetos":

(...) "recusa da responsabilidade coletiva (dos portugueses, dos guineenses, dos fulas, dos balantas, etc.), mas também recusa da tentação de julgar (e muito menos de criminalizar) os comportamentos dos combatentes, de um lado e de outro" (...)


(iii) Manuel Carvalho Manuel Carvalho (ex-fur mil armas pesadas inf, CCAÇ 2366 / BCAÇ 2845, Jolmete e Quinhamel, 1968/70)


 
(...) Cerca de quatro anos depois junho de 68 a minha companhia 2366 chegou a Jolmete e aí permanecemos cerca de um ano. O Blog tem fotos minhas desse mesmo barracão que era o edifício com mais qualidade que existia em Jolmete.A pouca população que havia tinha sido recuperada no mato. O régulo atual de Jolmete julgo que é o Cajan Seidi. Por acaso não te lembras do nome desse régulo? (...)


(iv)  António Graça de Abreu ( ex-alf mil, CAOP1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74):

Diz o António Medina:

"Não se trata de nenhuma minha criatividade ou ficção, mas sim a descrição verdadeira de factos sucedidos, contados a mim na altura por quem foi testemunha e participante de uma acção bastante degradante e vergonhosa."

Portanto o António Medina não assistiu aos "fuzilamentos", ouviu contar.

Não digo que não possam ter acontecido, todas as guerras são sujas, tudo é possível, até o assassínio de três majores e um alferes, mais dois guias, gente do meu CAOP 1, em 1970, militares desarmados que iam em negociações de paz, exactamente na estrada do Pelundo para o Jolmete.

Estive sete meses em Teixeira Pinto, em 1972/73, estive no Jolmete em 1972, jamais ouvi esta história. Eu sei que já haviam passado oito anos, mas "fuzilamentos" deste tipo costumam deixar lastro na memória das gentes.

Gostava que estes "fuzilamentos" fossem confirmados por mais pessoas que se possam pronunciar com verdade, com factos, não de ouvir contar. (...)
 

(v) Joaquim Luís Fernandes (ex- alf mil, CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973, e Depósito de Adidos, Brá, 1974):
 
(...) Eu sou um sentimentalão! E se calhar muito ingénuo.

Ao ler esta narrativa sentia uns arrepios e um desgosto profundo e interrogava-me: Como terá sido possível tão medonho ato por parte de um corpo do exército português, formado e enquadrado por valores éticos,que condenariam em absoluto tal procedimento? Ou havia nesse tempo outra doutrina que eu desconheço?
E porque duvidar da verosimilhança da descrição do camarada António Medina?...

Tudo isto mexe comigo. Porque vivi aí os meus primeiros medos e pisei esse chão incerto e instável,sou remetido para as questões que tantas vezes coloquei a mim próprio: Porquê a antipatia que via espelhada nos rostos dos manjacos e a sua desconfiança e má vontade?

Teria a ver com a memória desses factos, ou eram memórias bem mais antigas, do tempo de Teixeira Pinto ou ainda mais antigas do tempo dos escravos do Cacheu?

Em 1973, em Teixeira Pinto, coabitávamos em paz aparente com a população local,(velhos, mulheres alguns jovens adolescentes e crianças) mas sentia que eramos "personas non gratas". Toleravam-nos enquanto os serviamos Diziam-me os meu soldados: "Eles fazem de nós seus criados".

Também ainda não consegui encaixar bem toda a tramoia dos assassinatos dos três majores, do alferes e dos acompanhantes, em 1970. Apesar de tudo o que li, ficaram-me vários hiatos sem explicação. Agora fico com mais esta dúvida: Será que um acontecimento não tem nada a ver com o outro? A minha intuição diz-me que sim. Pelo menos o local escolhido foi o mesmo. Porquê?... Esta história tem muito por contar! (...)


(vi) Júlio Costa Abreu (ex-1º cabo 'cmd', Grupo Centuriões, Cmds do CTIG, Brá, 1964/66)

(...) Ser ou não ser , e questão ter ou ter razão.

E de quem foi na culpa de terem fuzilado em Banbandinca depois do 25 de Abril tantos soldados Comandos, como por exemplo o Jamanca e muitos outros, ou será que depois de eles terem confiado nos novos donos da Guiné foi a paga que lhes deram? 

Isso também motivo para serem assassinados ?  E guerra realmente nunca foi limpa mas isso e normal.

Julio Abreu (
Crupo de Comandos Centurioes, ex-Guiné Portuguesa)


(vii) Manuel Luís Lomba (ex-fur mil cav, CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66):

(...) Terei sido contemporâneo destas circunstância.Chegamos a Bissau (BCav 705) em 26/7/64 e a minha subunidade (CCav 703) foi de intervenção para Bula em Agosto, fez o seu baptismo de fogo em Naga e durante 20 dias reforçou a atividade operacional o BCaç 507, comandado pelo então tenente-coronel Hélio Felgas - que alinhava no mato.

Sem pretender sindicar a memória do camarada António Medina, acho algo de estranho. Aquele comandante exortava-nos à implacabilidade em relação à gente que nos recebesse à bala ou granada, mas incitava-nos ao cuidado de poupar populações. Enfatizava o dilema das mesmas - colocados entre a tropa e os "terroristas". 

Havia bastantes presos, junto à casa da guarda que recebiam o rancho geral e não me apercebi de maus tratos. Isto dois meses após esses eventuais factos. Cercar tabancas e fazer capturas foi o nosso dia a dia nosso de cada dia operacional. 

Aconteceram atos lamentáveis? Com certeza. Mas o fuzilamento dos capturados diferido dois meses suscita melhores provas. Luís Cabral não refere esse evento no seu livro "Crónica da Libertação". E aquele foi o tempo da prisão de importantes paigcistas, como Rafael Barbosa, Fernando Fortes, sem esquecer os que vieram a conspirar e assassinar Amílcar Cabral que não foram eliminados. (...)


(viii) António Rosinha (ex-fur mil, Angola 1961/62, e topógrafoda TECNIL, Guiné-Bissau, 1987/93)

(...) Todos os crimes e fuzilamentos e atrocidades cometidos pelos tugas estão adaptados ao discurso anticolonial conveniente às autoridades revolucionárias que tomaram conta do poder em toda a África.

Isto desde o início da guerra em 1961, sempre se acreditou em tudo o que vinha de Argel, Moscovo e Brazaville e Conacry.

Desde os números arredondados tipo os 50 mártires do Pidjiquiti até aos milhares de turras da UPA lançados ao mar, pelos luxuosos PV2 da FAP, tudo está "provado" e "comprovado".

Só falta descobrir o segredo das valas comuns e da contagem dos respectivos cadáveres. (...)

quinta-feira, 26 de junho de 2014 às 13:51:00 WEST 
 
(ix) António Medina (1939-2025) (ex-fur mil,
OE, CART 527 /  (Teixeira Pinto, Bachile, Calequisse, Cacheu, Pelundo, Jolmete e Caió, 1963/65).

 (...) 
Acabo de tomar conhecimento de comentários feitos por alguns camaradas, mostrando certa relutância em aceitar a narrativa dos factos acontecidos na área de Jolmete. Cada um tem o direito de aceitar ou discordar e até pedir provas mais concretas desde que estejam disponíveis.

Segundo a teoria aplicada pelo comandante do Batalhão de Bula , ver comentaário do camarada Manuel Lomba porque assim reza o seu segundo parágrafo:

” Aquele comandante exortava àimplacabilidade em relação às gentes que nos recebessem à bala  ou granada mas incitava-nos ao cuidado de poupar populações" ,

Ora, o que foi feito em Jolmete ?

Pouparam, sim, a vida das mulheres e crianças. Mas sem condescendência, como vingança, exterminaram os homens da tabanca,considerando o facto que talvez fossem coniventes com os autores da tal emboscada ou assim evitar o perigo de virem a pegar em armas. Foi uma ação bastante secreta como é obvio.

Se enquadra ou não na teoria operacional daquele comandante  ?

Sabemos que casos semelhantes aconteceram não só na Guiné mas também em Angola e Moçambique, em grupos ou a nível individual.

O camarada Manuel Carvalho se refere ter estado em Jolmete em 1968, quatro anos depois , assim como que a pouca população que havia em Jolmete tinha sido recuperada no mato. isto vai ou não ao encontro do que escrevi, da fuga da população que restou e se refugiou no mato?

Estava eu em Bissau como empregado do BNU quando em 1970 se deu o caso dos três majores, um alferes e outros na estrada de Jolmete. Não obstante fossem militares e em guerra, o caso consternou os civis da cidade de Bissau. Teria sido vingança do PAIGC sobre a tropa colonial ?  (...)
 

(x) César Dias, ex-fur mil sapador, CCS/BCAÇ 2885, Mansoa, 1969/71)

(...) Camaradas, não tenho dificuldade nenhuma em considerar veridica a narrativa do António Medina, já era diferente se estes episódios se tivessem passado durante a era de Spinula, tanto quanto me apercebi não era possivel uma situação destas, com ou sem PIDE. (...)
 
segunda-feira, 30 de junho de 2014 às 13:06:00 WEST 


(xi) Carlos Pinheiro (ex-1.º cabo trms op msg, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, Bissau, 1968/70):

(...) Fiz a minha comissão na Guiné de outubro de 68 a novembro de 70. Desembarquei cá no dia da Operação Mar Verde.

 Ao longo daqueles 25 meses tive conhecimento de tanta coisa mas, como respondi ao inquérito, dessas cenas macabras nunca ouvi falar com consistência. Estava lá quando os 3 Majores e o Alferes foram selvaticamente assassinados nessa zona de Jolmete. Um horror. 

Mas estava lá também quando foi a evacuação de Madina de Boé quando morreram aquelas dezenas de militares na jangada que se virou. Mas uma coisa conclui hoje. O comandante de Bula falado no poste foi o mesmo que coordenou o abandono de Madina de Boé. E no ano seguinte levou uma Torre e Espada ao peito no Terreiro de Paço. Coincidências? Não sei. (...)


(xii) João Lemos  (ex-alf mil sapador, CCS/BART 6521/72, Pelundo, 1972/74)


(...) Pertenci à CCS do BART 6521/72, onde era alferes miliciano sapador. Estive no Pelundo desde 1972 até à entrega deste quartel, tal como os de Có e o de Jolmete, ao PAIGC, em 1974. Em Jolmete estava a 3ª Companhia do BART 6521/72. 

Fui muitas vezes a Jolmete, pois comandei muitas vezes as escoltas entre Jolmete e João Landim. Passei muitas vezes na “2ª bolanha”, onde foram assassinados os Majores, o Alferes e os dois guias negros em 1970.

 Cheguei portanto a esta zona 8 anos depois dos factos narrados pelo camarada António Medina. Convivi muito com Dandi Djassi que veio a ser fuzilado, tal como o “Sete”, pelo PAIGC, depois da saída das tropas portuguesas da Guiné Bissau. 

Dandi Djassi era de Jolmete, mas vivia no Pelundo, onde, juntamente com as milícias desta localidade, combatia o PAIGC ao lado das tropas portuguesas. 

Nunca ouvi falar dos factos narrados pelo camarada António Medina, mas, tal como diz o comentário anterior do camarada Cesar Dias, "não tenho dificuldade nenhuma em considerar verídica a narrativa do António Medina, já era diferente se estes episódios se tivessem passado durante a era de Spínola, tanto quanto me apercebi não era possível uma situação destas, com ou sem PIDE”. (...)

(Revisão / fixação de texto: LG)

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Notas do editor:

(**) Vd,. poste de 5 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P18988: Blogues da nossa blogosfera (103): "Memórias de Jolmete", de Manuel Resende: Cajan Seidi, o atual régulo de Jolmete, neto de Cambanque Seidi, o régulo de Jol que, em 1964, foi uma das cerca de 20 vítimas de represálias das NT (Manuel Resende / Eduardo Moutinho Santos)

Guiné 61/74 - P26429: As nossas geografias emocionais (36): Fulacunda, sempre!... (Henk Eggens, médico neerlandês, a viver em Portugal)





Foto nº 1 e 1A > Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) >  Vista aérea da pista, do heliporto, do aquartelamento e da tabanca de Fulacunda... São visíveis o perímetro do aquartelamento, os espaldões do obus 14 e outras armas pesadas (que já identificámos noutro poste)... Podem-se contar inclusive as moranças civis e as instalações da tropa...  Tinha também valas e abrigos... Assinalada a amarelo, a "morança" que o nosso amigo dr. Henk Eggens, médico, cooperante, neerlandès, habitou em 1980/82 (e que integrava as antigas  instalaçóes das NT).

Segundo informação recente do nosso amigo e camarada Jorge Pinto, a população de Fulacunda andaria à volta de 400 pessoas de etnia biafada, em 1972/74 . Havia uma família balanta e outra fula,   "Toda esta população tinha familiares nas tabancas do mato que rodeavam Fulacunda e que muitas vezes vinham de visita, nos davam algumas 'informações' sobre o movimento do bigrupo de Bunca Dabó, levando em troca uns quilos de arroz"... Não havia comerciantes, nem colonos... A atividade agrícola era residual,,, "O alimento da população era basicamente o arroz fornecido pela tropa".


Foto (e legenda):  © Jorge Pinto (2025). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: LG/HE]



 Foto nº 2> Guiné-Bissau > Região de Quínara > Fulacunda > 1980 >   "Casa do médico, Land Rover do projeto,  mota da noiva e carro 404 privado".


Foto: (e legenda) © Henk Eggens (2024). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: LG/HE]




Foto nº 3 > Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) >  Uma "peladinha"... em frente à futura casa do dr. Henk Eggens.

 
Foto (e legenda);  © Fernando Carolinbo  (2025). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: LG/HE]


1. Mensagem do nosso amigo Henk Eggens (*), com data de  18/1/2025, 16:53

Olá Luís, kuma di kurpu? 

Gostei de ver mais fotografias da minha tabanca de então.(**)

A primeira fotografia que mando junto, com círculo a amarelo,  mostra onde morei; um ano fiquei sozinho, depois um ano vivi com a minha 'noiva', que depois ficou esposa/companheira de vida durante 26 anos antes de falecer há 19 anos.

A "morança" compostaq de duas casas, nós uma, e o chefe da aldeia, Carlitos, com a sua família na outra.

Não sei quem ocupava este prédio durante a época colonial. Como o prédio era dentro do quartel, seria um oficial do exército português? Ou era um escritório?

A segunda fotografia mostra a nossa casa em 1980, com os meios de transporte disponíveis para nós.

Também achei interessante a fotografia e o comentário sobre filhos de povos mistos (mulheres guineenses e soldados portugueses) (**). O que aconteceu com a maioria destas crianças? Os pais reconheceram a paternidade? Ficaram na tabanca ou foram para Portugal para serem criadas e educadas? Tens informação sociológica sobre este assunto?

Na altura tinha um assistente de laboratório, Manuel, de origem cabo-verdiano, que me ajudava em Fulacunda. O povo lhe chamou de burmedjo. Foi totalmente aceite na tabanca. Mas ... quando houve o golpe de Estado em 1980, liderado por 'Nino' Vieira, com tendências anti-caboverdianas (o presidente Luís Cabral foi preso por um ano depois do golpe), o pobre Manuel ficou em baixo da sua cama por três dias, com medo. Depois tudo voltou ao normal.

Em Cabinda (Angola, onde vivi, de 1976-1978), pessoas de cor mais clara (podiam ser mestiços) eram chamados mwana mundele (na língua Lingala), criança do branco. De vez em quando estas palavras eram utilizadas como insulto.

Bem, mando-te um AB e mantenhas (mantenha-se),

Henk.

PS -  Podes publicar este texto no blog se quiseres, na esperança de ter respostas às minhas perguntas.

(Revisão / fixação de texto, pontual: LG)


2. Comentário do editor LG:

Obrigado, Henk, pelo que temos falado, és cidadão do mundo, e um grande "africanista" (cem qualquer conotação colonial)... Para além da Guiné-Bissau, trabalhaste em Angola, Indonésia, etc,. como especialista em medicina tropical, e muito em particular na área da prevenção e controlo da lepra. Tens uma visão integrada e global da saúde pública.  E depois escreves muitissimo melhor o meu portuguès do que eu o teu neerlandês...

Deixa-me,  antes de mais dizer-te que lamento que tenhas ficado viúvo tão cedo e com duas filhas órfãos... Tens, no entanto, uma história de vida rica...Vamos "partindo" (partilhando, em crioulo)  memórias, boas e más, das nossas "geografias emocionais": é o que eu e todos nós aqui, "amigos e camaradas da Guiné", te podemos oferecer... (***)

Acabo de publicar a tua mensagem com a tua autorização. É bom para todos: cá está a tal blogo...terapia, que tu querias saber o que era:  tens que acompanhar o nosso blogue...para perceber uma dos "slogans"; "O Mundo é Perqueno e a nossa Tabanca é Grande"... (Tabanca é a nossa tertúlia, ou comunidade virtual, que se se reune à sombra de um simbólico poilão, e onde cabemos todos com tudo o que nos une e até cm aquilo que nos pode separar...)

Sem querer dar uma definição (sempre redutora), direi que esta "terapia" ou "catarse", pela palavra e a imagem, pela partilha de memórias e afetos, num grupo de pares (antigos conmbatentes), funcionou muito bem nos primeiros anos do blogue...

Como sabes,  os antigos combatentes são sempre mal tratados em todas as guerras, aqui, na tua terra, em Timor, na Guiné, em Angola, em Moçambique, em França, nos EUA... Como deves imaginar, a guerra colonial, a seguir ao 25 de Abril de 1974, foi silenciada, esquecida,. branqueada, escamoteada... O mesmo aconteceu, pelo menos, aos guineenses que pagaram um elevado "imposto de sangue" na luta pela independência da sua terra (e, por tabela, de Cabo Verde).

Sobre as rivalidades (e graves conflitos) entre os guineenses e a nomenclatura cabo-verdiana do PAIGC,  não vou falar agora. Nem sobre os filhos que os militares portugueses deixaram na Guiné (uma estimativa aponta para umas escassas centenas, infelizmente um valor demasiado alto: o Portugal, democrático0, do pós-25 de Abril, não teve nem a coragem nem a lucidez  nem a compaixão de reconher estes filhos da guerra, eufemisticamente também conhecidos como "filhos do vento", por analogia com os "dust children" daa guerra do Vietname)... 

Ficará a conversa para mais tarde, que os dois assuntos são c0mplexos e delicados.

(Revisão / fixação de texto, superficial: LG)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 28 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26209: Ser solidário (275): Quatro anos como médico cooperante (1980-1984), em Fulacunda e em Bissau (Henk Eggens, neerlandês, consultor internacional em saúde pública,
reformado, a viver em Santa Comba Dão)

(**) Vde. poste de 18 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26400: Por onde andam os nossos fotógrafos ? (35): Jorge Pinto (ex-alf mil, 3.ª C / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74) - Parte V

(***) Último poste da série > 20 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26292: As nossas geografias emocionais (35): Helsínquia, Finlândia (António Graça de Abreu)

domingo, 26 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26428: O segredo de... (48): António Medina (1939-2025) - Parte IV: Acredito na versão do Cajan Seidi sobre a vala comum de Jolmete (Manuel Carvalho, ex-fur mil armas pes inf, CCAÇ 2366 / BCAÇ 2845, Jolmete, 1968/70)


Guiné > Região do Cacheu > Zona Oeste  > Sector 01 (Teixeira Pinto) > Jolmete > CCaç 2366 / BCAÇ 2845 (1968/70) >  "Eu, com o Dandi e o Martins na chegada da operação em que apanhamos o RPG2 e três armas". (Dandi, natural de Jol, no chão manjaco, capitão da companhia de milícias do Pelundo, agraciado com Cruz de Guerra pelo Gen Spínola em 1972, será fuzilado pelo PAIGC em 1975)

Na foto, as armas capturadas ao PAIGC, de origem soviética: ds esquerda para a direita, uma pistola-metralhadora PPSH-41 ("costureirinha", na gíria da NT), um LGFog RPG2 e uma pistola-metralhadora Sudaev PPS-43 (vd. postes P5690 e P5682).



Guiné > Região do Cacheu > Zona Oeste  > Sector 01 (Teixeira Pinto) > Jolmete > CCaç 2366 / BCAÇ 2845 (1968/70) >  Foto sem legenda: as "mulheres grandes" e a NT... Apoio médico-sanitário ?...  Nesta altura, a pouca população que existia, tinha sido "recuperada do mato"... Depois dos trágicos acontecimentos de junho/setembro de 1964, os sobreviventes (mulheres e crianças), ter-se-ão refugiado no mato...


Guiné > Região do Cacheu > Zona Oeste  > Sector 01 (Teixeira Pinto) > Jolmete >  CCaç 2366 / BCAÇ 2845 (1968/70) >  Vista (parcial) da tabanca (terá sido incendiada pela própria população em meados de 1964, segundo a informação do António Medina)
 

Fotos (e legendas): © Manuel Carvalho (2012). Todos os direitos reservados, [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. C
omentário do nosso camarada Manuel Carvalho (ex-fur mil armas pesadas inf, CCAÇ 2366 / BCAÇ 2845, Jolmete, 1968/70) ao poste P18988 (*):



(...) "Pois o Cajan foi um dos nossos valentes milícias de Jolmete,  conhecia muito bem a zona e foi muitas vezes o homem da frente, é bom vê-lo ainda com alguma saúde, também não andará longe dos setenta anos.

A Amélia que está na segunda foto de vestido rosa,  continua muito franzininha como era há 50 anos mas tratava muito bem da roupa de muitos de nós e até julgo que tinha algumas mais velhas,  suas colaboradoras. Quem quiser ver como ela era há 50 anos,  tenho uma foto com ela ao colo no poste P10191 (**).

Sou dos que acreditam na história que o Cajan conta sobre o aniquilamento de cerca de vinte Homens Grandes da população de Jolmete.

(Revisão / fixação de texto: LG)